As Colinas dos Mortos

(Por Robert E. Howard)

Originalmente publicado em Weird Tales, agosto de 1932


1) Vodu

Os pequenos galhos que N’Longa lançou ao fogo se quebraram e crepitaram. N’Longa, feiticeiro vodu da Costa dos Escravos, era muito velho. Sua estrutura encarquilhada e retorcida era curvada e frágil, seu rosto marcado por centenas de rugas. A luz vermelha da fogueira brilhava nos ossos, de dedos de mãos humanas, que compunham seu colar.

O outro era um inglês, e seu nome era Solomon Kane. Ele era alto, de ombros largos, e vestia roupas negras e fechadas, a vestimenta do puritano. Seu implume chapéu desalinhado estava puxado sobre sua fronte pesada, sombreando seu rosto misteriosamente pálido. Seus frios olhos profundos meditavam na luz do fogo.

- Você vem novamente, irmão. – disse o feiticeiro em voz monótona, falando no jargão que era usado como língua comum entre negros e brancos na Costa Oeste – Muitas luas brilharam e morreram, desde que fizemos conversação de sangue. Você vai ao sol poente, mas você volta!

- Sim. – a voz de Kane era profunda e quase fantasmagórica – É uma terra sombria a sua, N’Longa; uma terra vermelha, obstruída com a negra escuridão do horror e as sombras sangrentas da morte. No entanto, eu retornei.

N’Longa atiçou a fogueira, sem dizer nada, e após uma pausa, Kane continuou:

- Lá, na imensidão desconhecida – seu longo dedo apontou a Selva silenciosa, que meditava além da luz do fogo –, lá existe mistério, aventura e terror sem nome. Uma vez, eu desafiei a selva e ela quase reclamou meus ossos. Alguma coisa entrou no meu sangue, alguma coisa adentrou minha alma, como um sussurro de pecado inominável. A selva! Escura e pensativa... a muitas léguas do salgado mar azul, ela havia me puxado, e ao amanhecer eu busco o coração dela. Talvez eu encontre curiosa aventura... talvez meu destino me encontre. Mas é melhor a morte do que o eterno anseio, o fogo que vem queimando minhas veias com amargo desejo.

- Ela chamar. – sussurrou N’Longa – À noite, ela se enrosca feito serpente ao redor de minha cabana e me sussurra coisas estranhas. Sim! A selva chamar. Nós ser irmãos de sangue, você e eu. Mim, N’Longa, poderoso artífice de mágica sem nome! Você vai à selva como vão todos os homens que ouvem seu chamado. Talvez você viva, ou mais provavelmente morra. Você acredita em meus feitiços?

- Eu não os compreendo – disse Kane sombriamente –, mas eu já lhe vi enviar sua alma, de seu corpo para um cadáver.

- Sim! Mim, N’Longa, sacerdote do Deus Negro. Agora observe, eu fazer mágica.

Kane encarou o velho feiticeiro vodu que se curvava sobre a fogueira, fazendo movimentos alinhados com as mãos e murmurando encantamentos. Kane observava, e ele parecia estar ficando sonolento. Uma bruma ondulava diante dele, e através dela, ele viu vagamente a forma de N’Longa, desenhada de forma escura contra as chamas. Então, desapareceu.

Kane acordou sobressaltado, com a mão se precipitando em direção à pistola em seu cinto. N’Longa sorriu para ele através do fogo, e houve um cheiro de início de amanhecer no ar. O feiticeiro pegou um longo bastão de madeira negra em suas mãos. Este bastão estava entalhado de forma estranha, e uma das extremidades se adelgaçava numa ponta afiada.

- Isto, bastão vodu. – disse N’Longa, colocando-o na mão do inglês – Onde suas pistolas e sua longa faca falharem, isto salvar você. Quando você me quiser, ponha isto em seu peito, entrelace suas mãos nele e durma. Eu chegar a você em seus sonhos.

Kane pesou o objeto em sua mão, altamente desconfiado de magia negra. Ele não era pesado, mas parecia tão duro quanto ferro. Uma boa arma, pelo menos, percebeu ele. A aurora estava justamente começando a se aproximar da floresta e do rio.


2) Olhos Vermelhos

Solomon Kane ergueu o mosquete de seu ombro e deixou a coronha cair por terra. O silêncio o cercava como um nevoeiro. O rosto riscado de Kane e sua roupa esfarrapada mostravam o resultado de longa viagem pelo matagal. Ele olhou os arredores.

A alguma distância atrás dele, aparecia a selva verde e enfileirada. Pouca distância à sua frente, se erguia a primeira de uma cadeia de nuas colinas sombrias, alastradas de matacões, tremeluzindo sob o impiedoso calor do sol. Entre as colinas e a selva, havia uma larga extensão de capim áspero e irregular, pontilhado aqui e ali por moitas espinhosas.

Um silêncio completo pairava pela região. Os únicos sinais de vida eram uns poucos abutres, batendo pesadamente as asas através das colinas distantes. Pelos últimos poucos dias, Kane foi informado sobre o crescente número destes pássaros repugnantes. O sol tremeluzia a oeste, mas seu calor não fora abrandado de forma alguma.

Arrastando seu mosquete, ele começou a avançar lentamente. Ele não tinha objetivo em vista. Esta era uma região totalmente desconhecida, e uma direção era tão boa quanto outra. Várias semanas atrás, ele havia mergulhado na selva com a convicção nascida da coragem e da ignorância. Tendo, por algum milagre, sobrevivido nas primeiras poucas semanas, ele estava ficando duro e fortalecido, capaz de defender-se dos sombrios habitantes com a sua rapidez e ousadia.

À medida que avançava, ele percebia o rastro ocasional de um leão, mas parecia não haver animais nas pastagens – nenhum que deixasse algum tipo de pista. Os abutres pareciam negras imagens de ninhadas em algumas árvores raquíticas, e subitamente ele viu uma atividade entre eles a uma certa distância. Vários dos pássaros escuros giravam em torno de uma massa de capim alto, mergulhando e depois se erguendo novamente. Algum animal de rapina estava defendendo sua caça contra eles, pensou Kane, e ele se surpreendeu com a falta dos rosnados e rugidos, que normalmente acompanham tais cenas. Sua curiosidade foi despertada, e ele voltou seus passos naquela direção.

Por fim, abrindo caminho pela grama que se erguia ao redor de seus ombros, ele viu, como num corredor murado por exuberantes lâminas ondulantes, uma visão medonha. O cadáver de um homem negro jazia debruçado, e, enquanto o inglês olhava, uma grande cobra escura se ergueu e deslizou para dentro do capim, se movendo tão rapidamente que Kane foi incapaz de distinguir sua natureza. Mas havia uma estranha insinuação humana acerca dela.

Kane permaneceu sobre o corpo, percebendo que, enquanto os membros jaziam tortos como se quebrados, a carne não estava dilacerada como o faria um leão ou um leopardo. Ele olhou para o alto, para os rodopiantes abutres, e ficou espantado em ver vários deles deslizando para perto da terra, seguindo uma ondulação do capim que marcava o vôo da coisa que presumivelmente matara o negro. Kane perguntou a si mesmo que coisa os pássaros carniceiros, que só comiam mortos, estariam caçando pelas pastagens. Mas a África era cheia de mistérios nunca explicados.

Kane encolheu os ombros e ergueu novamente o mosquete. Aventuras ele havia tido em abundância, desde que deixara N’Longa há algumas luas, mas aquela paranóia sem nome ainda insistia e o levava cada vez mais adiante, cada vez mais para dentro daqueles caminhos sem rastros. Kane não conseguia analisar este chamado; ele o atribuiria a Satã, que atrai os homens para a destruição. Mas não era mais do que o turbulento e incansável espírito do aventureiro, do nômade – o mesmo impulso que levou as caravanas ciganas ao redor do mundo, que dirigiu as galeras vikings sobre mares desconhecidos e que guia os vôos dos gansos selvagens.

Kane suspirou. Aqui, nesta terra árida, parecia não haver comida nem água, mas ele havia se cansado da morte do úmido e exuberante veneno da selva espessa. Até mesmo uma savana de colinas nuas era preferível, ao menos por um tempo. Ele olhou para elas, que meditavam longamente sob o sol, e começou a avançar novamente.

Ele tinha o bastão mágico de N’Longa em sua mão esquerda e, embora sua consciência o incomodasse por manter uma coisa de natureza aparentemente tão diabólica, ele nunca foi capaz de se decidir em jogá-la fora.

Agora, enquanto ele ia em direção às colinas, uma súbita agitação começou no capim alto à sua frente, o qual era, em alguns lugares, mais alto que um homem. Um grito agudo e alto soou, e a seus pés um rugido de fazer a terra tremer. O capim se abriu, e uma figura delgada veio correndo em sua direção, como um pequeno feixe de palha soprado pelo vento – uma garota de pele marrom, vestida apenas com uma peça de roupa em forma de saia. Atrás dela, alguns metros distante mas alcançando-a rapidamente, vinha um enorme leão.

A garota caiu aos pés de Kane com um pranto e um soluço, e agarrou-se aos tornozelos dele. O inglês baixou o bastão vodu, ergueu seu mosquete e olhou fixamente para o feroz rosto felino que se aproximava dele a cada instante. Crash! A garota soltou um único grito e caiu subitamente sobre o próprio rosto. O enorme gato deu um pulo alto e selvagem, para cair e ficar sem movimento.

Kane recarregou rapidamente a arma, antes de olhar para a silhueta a seus pés. A garota jazia tão imóvel quanto o leão que ele acabara de matar, mas um rápido exame mostrou que ela havia apenas desmaiado.

Ele banhou-lhe o rosto com a água de seu cantil, e imediatamente ela abriu os olhos e soergueu-se. O medo inundou sua face, enquanto olhava seu salvador, e ela deixou de se levantar.

Kane estendeu uma comedida mão, e ela se encolheu, trêmula. O rugido de seu pesado mosquete era suficiente para amedrontar qualquer nativo que jamais vira antes um homem branco, pensou Kane.

A garota era esbelta e bem-feita de corpo. Seu nariz era reto e fino. Ela tinha uma cor profundamente marrom, talvez com uma forte descendência berbere.

Kane falou com ela num dialeto do rio, uma linguagem simples que ele aprendera durante suas perambulações, e ela respondeu hesitante. A tribo do interior comercializava escravos e marfim com o povo do rio, e estava bastante familiarizada com o jargão deles.

- Minha aldeia é ali. – respondeu ela à pergunta de Kane, apontando para a selva meridional com um esbelto braço roliço – Meu nome é Zunna. Minha mãe me bateu por eu ter quebrado uma caldeira, e eu fugi porque fiquei com raiva. Estou com medo; me deixe voltar para minha mãe!

- Você pode ir – disse Kane –, mas eu vou te levar, menina. Imagine se outro leão aparece? Você foi muito tola em fugir.

Ela choramingou um pouco.

- Você não é um deus?

- Não, Zunna. Sou apenas um homem, embora a cor de minha pele não seja como a sua. Leve-me agora à sua aldeia.

Ela se ergueu hesitante, olhando-o apreensivamente através do selvagem emaranhado do cabelo. Para Kane, ela parecia um jovem animal assustado. Ela foi na frente, e Kane seguiu. Ela mostrou que sua vila ficava a sudeste, e o caminho deles os levou para bem perto das colinas. O sol começou a se pôr, e o rugido dos leões ecoou sobre o capim. Kane olhou para o céu ocidental; em campo aberto, não havia lugar onde ser pego pela noite. Ele olhou para as colinas, e viu que elas estavam a poucas centenas de metros. Ele viu o que parecia ser uma caverna.

- Zunna – ele disse hesitante –, nós nunca alcançaremos sua aldeia antes do cair da noite. Se ficarmos aqui, os leões irão nos pegar. Lá longe, tem uma caverna onde podemos passar a noite...

Ela se encolheu e tremeu.

- Nas colinas, não, senhor! – ela choramingou – Melhor enfrentar os leões!

- Bobagem! – seu tom era impaciente; ele já havia se cansado das superstições dos nativos – Vamos passar a noite naquela caverna.

Ela não argumentou mais, e o seguiu. Eles subiram uma curta inclinação e chegaram à entrada da caverna: uma coisa pequena, com lados de rocha sólida e um chão de areia funda.

- Arranje um pouco de capim seco, Zunna – ordenou Kane, erguendo seu mosquete contra a parede na boca da caverna –, mas não vá muito longe, e preste atenção aos leões. Farei uma fogueira aqui, a qual nos manterá a salvo de feras esta noite. Traga um pouco de capim e gravetos que você possa encontrar, como uma boa menina, e iremos comer. Eu tenho carne seca em minha bolsa, e água também.

Ela o olhou longa e estranhamente, e então deu meia-volta sem dizer uma só palavra. Kane arrancou a grama próxima, notando o quanto era queimada e quebradiça de sol e, amontoando-a, bateu pederneira e aço. O fogo acendeu e consumiu o amontoado num instante. Ele estava imaginando quanto capim ele teria que pegar para manter uma fogueira por toda a noite, quando percebeu que tinha visitas.

Kane estava acostumado a visões grotescas, mas à primeira vista, ele estremeceu e um leve frio desceu por sua espinha. Dois homens estavam silenciosamente diante dele. Eram altos, magros e estavam totalmente nus. Suas peles eram negras e poeirentas, coloridas com um matiz acinzentado, como o da morte. Seus rostos eram diferentes de qualquer um que ele já tivesse visto. As testas eram altas e estreitas, os narizes eram grandes e semelhantes a focinhos; seus olhos eram inumanamente grandes e vermelhos. Parecia a Kane que só aqueles olhos brilhantes tinham vida.

Ele dirigiu-lhes a palavra, mas eles não responderam. Ele os convidou para comerem, com um gesto de sua mão, e eles silenciosamente se acocoraram perto da boca da caverna, o mais longe possível das brasas moribundas da fogueira.

Kane se virou para sua bolsa e começou a tirar os pedaços de carne seca que ele trazia. Ele olhou para seus convidados silenciosos: parecia-lhe que eles estavam olhando mais para as brasas incandescentes de sua fogueira do que para ele.

O sol estava quase afundando no horizonte ocidental. Um brilho vermelho e feroz se espalhava pelo capinzal, como um ondulante mar de sangue. Kane se ajoelhou sobre a bolsa e, olhando para o alto, viu Zunna chegar contornando a saliência da colina, com os braços cheios de capim e galhos secos.

Enquanto ele observava, os olhos dela se acenderam; os galhos caíram-lhe dos braços e seu grito cortou o silêncio, carregado por terrível advertência. Kane girou sobre o joelho. Duas grandes formas avultaram sobre ele, enquanto ele se erguia com o ágil movimento de um leopardo saltando. O bastão mágico estava em sua mão, e ele o impeliu através do corpo do adversário mais próximo, com uma força que fez a ponta afiada sobressair entre os ombros do homem. Então, os longos braços magros do outro se fecharam ao seu redor e os dois caíram juntos.

As unhas em forma de garra do estranho puxavam-lhe violentamente o rosto, com os hediondos olhos vermelhos encarando ameaçadoramente os dele, enquanto Kane se retorcia; e, desviando-se de suas garras com um braço, puxou uma pistola. Ele pressionou a boca da arma contra o lado do selvagem e puxou o gatilho. Com o tiro abafado, o corpo do estranho estremeceu ao impacto da bala, mas os lábios grossos apenas se abriram num horrível sorriso largo.

Um braço longo deslizou sob os ombros de Kane, e a outra mão lhe agarrou o cabelo. O inglês sentiu a cabeça sendo irresistivelmente forçada para trás. Ele agarrou os pulsos do outro com ambas as mãos, mas a carne sob os dedos furiosos era dura como madeira. O cérebro de Kane estava ficando tonto; seu pescoço parecia prestes a quebrar sob um pouco mais de pressão. Ele arremessou o corpo para trás, com um esforço vulcânico, desfazendo o abraço mortal. O outro estava sobre ele, e as garras estavam apertando novamente. Kane encontrou e ergueu a pistola vazia, e sentiu o crânio do homem ceder como uma concha, enquanto ele descia o longo cano com toda a sua força. E, mais uma vez, os lábios contorcidos se abriram em medonha zombaria.

E agora, um quase pânico tomava conta de Kane. Que tipo de homem era este, que ainda lhe ameaçava a vida com dedos cortantes, após ter sido baleado e mortalmente espancado? Não era homem, com certeza, mas um dos filhos de Satã! Com este pensamento, Kane se contorceu explosivamente, e os combatentes engalfinhados caíram no chão, sobre as cinzas ardentes na entrada da caverna. Kane mal sentiu o calor, mas a boca de seu rival se abriu, desta vez em aparente agonia. Os terríveis dedos afrouxaram seu aperto, e Kane se libertou.

A criatura selvagem, com seu crânio despedaçado, estava se erguendo sobre uma das mãos e um dos joelhos, quando Kane investiu, voltando ao ataque como um lobo magro contra um bisão faminto. Ele pulou de um lado, indo parar bem nas costas vigorosas, com seus braços de aço procurando e encontrando um abraço mortal; e, quando os dois caíram juntos ao chão, ele quebrou o pescoço do outro, de modo que o hediondo rosto morto ficou olhando para trás sobre um ombro. O corpo jazeu imóvel, mas para Kane parecia que ele não estava morto, mesmo naquele momento, pois os olhos vermelhos ainda queimavam com sua luz medonha.

O inglês se virou, para ver a garota se agachando contra a parede da caverna. Ele olhou para o bastão: jazia numa pilha de poeira, em meio à qual havia uns poucos ossos esfarelados. Ele arregalou os olhos, com o cérebro vacilando. Então, em um único passo, apanhou o bastão vodu e se voltou para o homem caído. Seu rosto estava imóvel em linhas sombrias, enquanto ele o erguia; e então, ele dirigiu o bastão através do peito do selvagem. E, diante de seus olhos, o enorme corpo se esmigalhou, se dissolvendo em pó, enquanto ele observava, horrorizado, acontecer com o outro o mesmo que com o primeiro oponente, que se esmigalhara quando Kane havia pela primeira vez enfiado o bastão.


3) Mágica de Sonho

- Grande Deus! – sussurrou Kane – Os homens estavam mortos! Vampiros! Isto é, sem dúvida, obra de Satã.

Zunna rastejou de joelhos e se agarrou ali.

- São mortos que caminham, senhor. – ela chorou – Eu deveria ter lhe avisado.

- Por que eles não pularam sobre minhas costas, logo que chegaram? – ele perguntou.

- Eles temiam o fogo. Estavam esperando as brasas se apagarem completamente.

- De onde vieram?

- Das colinas. Centenas daquele tipo se aglomeraram entre os matacões e cavernas daquelas colinas, e vivem da vida humana, dos homens que eles vão matar, devorando-lhes as almas enquanto elas abandonam os corpos trêmulos. Sim, eles são sugadores de almas!

“Senhor, no meio daquelas colinas há uma silenciosa cidade de pedra; e, em tempos antigos, na época de meus ancestrais, aquela gente viveu lá. Eles eram humanos, mas não como nós, e por isso governaram esta terra por eras e eras. Os ancestrais de meu povo guerreavam contra eles e mataram muitos, e seus bruxos deixaram todos os mortos iguais a estes. Por fim, todos morreram.

“E, durante eras, eles atormentaram as tribos da selva, espreitando do alto das colinas à meia-noite e ao pôr-do-sol, para assombrar os caminhos da selva, e matar e matar. Homens e feras fogem deles, e só o fogo os destrói”.

- Eis o que irá destruí-los. – disse Kane sombriamente, erguendo o bastão vodu – Magia negra deve lutar contra magia negra. Eu não sei que encanto N’Longa pôs aqui, mas...

- Você é um deus. – disse Zunna em voz alta – Homem nenhum conseguiria vencer dois dos mortos que caminham. Senhor, você não pode tirar esta maldição de minha tribo? Nós não temos para onde fugir, e os monstros nos matam à vontade, pegando caminhantes que estejam fora dos muros da aldeia. A morte está nesta terra, e morremos sem ajuda!

No interior de Kane, se movia o espírito do cruzado, o fogo do entusiasta – o fanático que dedica sua vida a combater os poderes da escuridão.

- Vamos comer. – disse ele – Depois, faremos uma grande fogueira na entrada da caverna. O fogo que afasta feras também afastará demônios.

Mais tarde, Kane se sentou bem no meio da caverna, com o queixo apoiado no punho fechado e os olhos fitando despercebidamente a fogueira. Atrás, nas sombras, Zunna o observava com admiração.

- Deus dos Exércitos – murmurou Kane –, me ajude! Minha mão é a que deve tirar a antiga maldição desta terra escura. Quem sou eu para enfrentar estes demônios mortos, que não sucumbem às armas dos mortais? O fogo irá destruí-los, um pescoço quebrado os deixa indefesos, o bastão vodu atravessado neles os transforma em pó... mas, de que adianta? Como irei triunfar sobre as centenas, que assombram estas colinas, e para os quais a essência da vida humana é Vida? Não há, como diz Zunna, guerreiros que venham contra eles no passado, só para encontrá-los fugidos às suas cidades de muros altos, onde nenhum homem pode enfrentá-los?

A noite foi passando. Zunna dormiu, com o rosto apoiado em seu roliço braço juvenil. O rugido dos leões sacudia as colinas, e Kane continuava sentado, olhando pensativo para o fogo. Lá fora, a noite estava viva, com sussurros, farfalhares e suaves passos furtivos. E, às vezes, Kane, despertando de suas meditações, parecia captar o brilho de grandes olhos vermelhos além da luz trêmula da fogueira.

A aurora cinza estava se aproximando das pastagens, quando Kane sacudiu Zunna para acordá-la.

- Deus tenha piedade de minha alma, por sondar magia bárbara – ele disse –, mas talvez o mal deva ser combatido com o mal. Eu lhe estendo o fogo, e me avise se acontecer alguma coisa adiante.

Kane se deitou de costas no chão arenoso, e pôs o bastão vodu sobre o peito, cruzando as mãos sobre ele. Caiu no sono instantaneamente. E, dormindo, ele sonhou. Em seu sono, ele parecia andar numa névoa espessa, e neste nevoeiro ele encontrou N’Longa. Este falou, e as palavras eram claras e vívidas, incutidas tão profundamente em sua consciência, que pareciam atravessar a brecha entre o sono e a vigília.

- Leve esta garota à sua aldeia, logo após o erguer do sol, quando os leões tiverem ido para suas tocas – disse N’Longa –, e mande-a trazer o amante dela para esta caverna. Lá, faça-o se deitar como que para dormir, agarrando o bastão vodu.

O sonho terminou e Kane acordou subitamente, surpreendido. Quão estranha e vívida fora a visão, e quão estranho ouvir N’Longa falando em Inglês sem dificuldade! Kane encolheu os ombros. Ele sabia que N’Longa afirmava ter o poder de enviar seu espírito através do espaço, e ele próprio já tinha visto o feiticeiro vodu animar o cadáver de um homem. Entretanto...

- Zunna. – disse Kane, deixando o problema de lado – Eu irei com você até a margem da selva, se preciso, e você deve prosseguir até sua aldeia, e voltar para esta caverna com seu amante.

- Kran? – ela perguntou singelamente.

- Não importa o nome. Coma, e depois vamos.

Mais uma vez, o sol se inclinava para oeste. Kane sentou-se na caverna, esperando. Ele vira a garota ir em segurança até o local onde a selva se misturava com as pastagens, e embora sua consciência lhe ardesse com o pensamento sobre os perigos que talvez pudessem fazer frente a ela, ele enviou-a sozinha e retornou à caverna. Ele agora estava sentado, se perguntando se não seria condenado ao fogo eterno por trabalhar com a magia de um feiticeiro negro, irmão de sangue ou não.

Passos leves soaram, e enquanto Kane buscava o mosquete, Zunna entrou, acompanhada por um jovem alto e bem proporcionado, cuja pele marrom mostrava que ele era da mesma raça que a garota. Seus suaves olhos sonhadores estavam fixos em Kane, numa espécie de temerosa adoração. Evidentemente, a garota não havia atenuado esta nova glória divina, em seu relato.

Ele mandou o jovem se deitar, enquanto colocava o bastão vodu nas mãos do mesmo. Zunna se agachou a um lado, com os olhos bem abertos. Kane deu um passo para trás, meio envergonhado com esta pantomima e se perguntando o que resultaria disso, se resultasse. Então, para seu horror, o jovem arfou e ficou rígido!

Zunna gritou, levantando-se de um só pulo:

- Você matou Kran! – ela guinchou, voando em direção ao inglês, que havia perdido subitamente a fala.

Então, ela parou repentinamente, tremulou, passou molemente a mão pela testa e escorregou pra baixo, para deitar-se com os braços ao redor do corpo inerte do amante.

E este corpo subitamente se moveu, fez movimentos a esmo com as mãos e os pés, e então se sentou, soltando-se dos braços da garota ainda desacordada.

Kran ergueu os olhos para Kane, e sorriu – um sorriso astuto e esperto, que, de algum modo, não combinava com aquele rosto. Kane estremeceu. Aqueles olhos suaves haviam mudado de expressão, e agora estavam duros e cintilantes como os de uma serpente – os olhos de N’Longa!

- Ai ya. – disse Kran, numa voz grotescamente familiar – Irmão de sangue, você não ter saudação para N’Longa?

Kane estava quieto. Sua pele se arrepiava em rancor a si mesmo. Kran se ergueu e estirou os braços de forma não-familiar, como se seus membros fossem novos para ele. Ele deu um tapa de aprovação no próprio peito.

- Mim, N’Longa! – ele disse, com o velho modo fanfarrão – Poderoso homem de ju-ju! Irmão de sangue, não me conhecer?

- Você é Satã. – disse sinceramente Kane – Você é Kran, ou você é N’Longa?

- Mim, N’Longa. – assegurou o outro – Meu corpo dorme em cabana Ju-ju na Costa, muito longe daqui. Eu tomar emprestado corpo de Kran por algum tempo. Meu espírito viaja marcha de dez dias num instante; marcha de vinte dias no mesmo tempo. Meu espírito sair de meu corpo e fazer sair o de Kran.

- E Kran está morto?

- Não, ele não está morto. Eu mandar temporariamente espírito dele para terra sombria. Mandar espírito da garota também, para mantê-lo acompanhado.

- Isto é trabalho do Demônio – disse Kane com franqueza –, mas eu já lhe vi fazendo coisas mais sórdidas. Devo lhe chamar de N’Longa ou Kran?

- Kran... hah! Mim, N’Longa... corpos são como roupas. Mim, N’Longa, aqui, agora! – ele bateu no peito – Kran está vivo por aqui, então ele ser Kran e eu ser N’Longa, do mesmo jeito que antes. Kran não vive por agora; N’Longa vive por este corpo camarada. Irmão de sangue, eu sou N’Longa!

Kane inclinou a cabeça. Esta era mesmo uma terra de horror e bruxaria; qualquer coisa era possível, inclusive que a voz fina de N’Longa tivesse que falar para ele, vinda do peito amplo de Kran, e os olhos serpentinos de N’Longa tivessem que mirá-lo, semicerrados, do belo rosto jovem de Kran.

- Esta terra eu conheço há muito tempo. – disse N’Longa, tocando no assunto – Poderosa ju-ju, estas pessoas mortas! Não é preciso desperdiçar um tempo amigo... Eu sei... eu falar com você em sonhos. Meu irmão de sangue querer eliminar estes camaradas mortos, hein?

- É uma coisa que contraria a natureza. – disse Kane sombriamente – Em minha terra, eles são chamados de vampiros. Eu nunca esperei atacar de surpresa uma nação inteira deles.


4) A Cidade Silenciosa

- Agora, nós encontrar a cidade de pedra. – disse N’Longa.

- É? Por que não envia seu fantasma, para matar estes vampiros? – perguntou Kane frivolamente.

- Fantasma tem que ter um corpo camarada para trabalhar. – respondeu N’Longa – Agora durma. Amanhã, nós começamos.

O sol havia se posto; o fogo ardia e tremulava na boca da caverna. Kane olhou rapidamente para a garota inerte, que estava deitada onde havia caído, e se preparou para dormir.

- Me acorde à meia-noite – ele avisou –, e então montarei guarda até o amanhecer.

Mas, quando N’Longa finalmente sacudiu-lhe o braço, Kane acordou para ver a primeira luz do amanhecer avermelhando a terra.

- Hora de começarmos. – disse o feiticeiro.

- Mas, e a garota... você tem certeza que está viva?

- Ela vive, irmão de sangue.

- Então, por Deus, nós não podemos deixá-la aqui, à mercê de qualquer demônio vagabundo que possa por acaso encontrá-la. Ou algum leão que possa...

- Nenhum leão chegar. Cheiro de vampiro ainda demorar, misturado com cheiro humano. Um camarada leão não gostar de cheiro humano, e temer os mortos que andam. Nenhum animal chegar, e – levantando o bastão vodu e deitando-o através da entrada da caverna – nenhum homem morto chegar aqui agora.

Kane o olhou sombriamente e sem entusiasmo.

- Como essa vara irá protegê-la?

- Aquilo, poderosa ju-ju. – disse N’Longa – Você ver como camarada vampiro vira pó junto daquele bastão! Nenhum vampiro se atrever a tocar ou chegar perto dele. Eu o dei para você, porque fora das Colinas dos Vampiros, um camarada homem às vezes encontrar um cadáver andando em selva quando sombras ficar negras. Nem todos os mortos que andam estar aqui. E todos têm de sugar Vida dos homens... senão apodrecem como madeira morta.

- Então, faça vários bastões como este, e arme o povo com eles.

- Não poder fazer! – a cabeça de N’Longa se sacudiu violentamente – Aquela vara ju-ju ser magia poderosa! Velha, velha! Nenhum homem vivo hoje pode dizer que idade ter aquele bastão ju-ju. Eu fazer meu irmão de sangue dormir, e fazer magia com ela para protegê-lo, naquela hora que nós conversar na aldeia da Costa. Hoje, nós explorar e correr, não precisa dela. Deixe-a aqui, para proteger garota.

Kane encolheu os ombros e seguiu o feiticeiro, após olhar para trás, em direção à silhueta imóvel que estava deitada na caverna. Ele jamais concordaria em abandoná-la de forma tão irrefletida, se não acreditasse do fundo do coração que ela estava morta. Ele a havia tocado, e sua carne estava fria.

Eles subiram entre as colinas áridas, enquanto o sol nascia. Quanto mais subiam, mais a elevação argilosa ficava íngreme, serpenteando a passagem deles em ravinas e entre grandes matacões. As colinas se esburacavam em cavernas escuras e proibidas, e por estas eles passaram cautelosamente, e a pele de Kane se arrepiou, enquanto ele pensava nos pavorosos ocupantes desses lugares. Então, N’Longa disse:

- Eles vampiros, eles dormir em cavernas o dia todo até o pôr-do-sol. Elas cavernas, elas serem cheias de camaradas mortos.

O sol se erguia mais alto, retirando-se para os declives nus com um calor intolerável. O silêncio meditava como um monstro maligno sobre a terra. Eles não tinham visto nada, mas Kane seria capaz de jurar que às vezes uma sombra negra era levada pelo vento, atrás de um bloco de pedra, enquanto eles se aproximavam.

- Eles vampiros, eles estar escondidos de dia. – disse N’Longa, com uma risada baixa – Eles estar com medo de um camarada abutre! Não um abutre tolo! Eles conhecer morte quando a vêem! Eles saltar sobre camarada homem, e rasgar e comer se ele estiver deitado ou andando!

Um forte tremor se apossou de seu companheiro.

- Grande Deus! – gritou Kane, batendo com o chapéu na coxa – Não há fim para os horrores nesta terra hedionda? De fato, esta terra é dedicada aos poderes das trevas!

Os olhos de Kane arderam com uma luz perigosa. O terrível calor, a solidão e o conhecimento dos horrores que espreitavam estavam abalando até mesmo seus nervos de aço.

- Mantenha amigo chapéu, irmão de sangue. – avisou N’Longa, com um pequeno gorgulhar de brincadeira – Aquele camarada sol, ele matar você, melhor tomar cuidado.

Kane ergueu o mosquete que insistira em trazer, e não respondeu. Eles finalmente subiram uma colina, e viram sob eles uma espécie de planalto. E, no meio deste planalto, havia uma silenciosa cidade de pedra cinza e desagregada. Kane foi golpeado por uma sensação de incrível antiguidade, enquanto olhava. Os muros e as casas eram de grandes blocos de pedra, embora estivessem se tornando ruínas. A grama crescia no planalto e no alto das ruas daquela cidade morta. Kane não viu movimento algum por entre as ruínas.

- Essa é a cidade deles... Por que escolheram dormir nas cavernas?

- Talvez pedra camarada cair neles do teto e esmagar. Elas, cabanas de pedra, elas cair. Talvez eles não gostar de estarem juntos... talvez eles comer uns aos outros também.

- Silêncio! – sussurrou Kane – Como paira sobre tudo!

- Eles vampiros, não falam nem berram. Eles dormem nas cavernas, e perambulam ao pôr-do-sol e à noite. Talvez tribos-camaradas do matagal chegarem com lanças, e então vampiros ir para pedras e lutar atrás dos muros.

Kane inclinou a cabeça. Os muros desagregados que cercavam a cidade ainda eram altos e sólidos o bastante para resistirem ao ataque de lanceiros – especialmente quando defendidos por aqueles demônios com narizes em forma de focinho.

- Irmão de sangue! – disse N’Longa solenemente – Eu tenho idéia de poderosa magia! Fique em silêncio um pouco.

Kane se sentou num matacão, e olhou pensativo para os penhascos e encostas nuas que os cercavam. Lá longe, ao sul, ele viu o verde oceano de folhas que era a selva. A distância dava um certo encanto à cena. Bem mais perto, avultavam as manchas escuras que eram as bocas das cavernas de horror.

N’Longa estava acocorado, fazendo um estranho desenho na argila com a ponta de uma adaga. Kane o observava, pensando quão facilmente eles poderiam ser vítimas dos vampiros, se apenas três ou quatro daqueles demônios saíssem de suas cavernas. E, enquanto o pensava, uma sombra negra e aterradora caiu sobre o feiticeiro.

Kane agiu inconscientemente. Atirou do bloco onde estava sentado, como uma pedra arremessada por uma catapulta, e a reserva de seu mosquete espatifou o rosto da coisa horrenda que havia se aproximado deles. Cada vez mais para trás, Kane fazia seu rival inumano cambalear, nunca lhe dando tempo pra parar ou lançar uma ofensiva, espancando-o com a fúria de um tigre desvairado.

Na própria beirada do penhasco, o vampiro vacilou e então caiu para trás, de uma altura de 30 metros, para jazer contorcido nas rochas do planalto abaixo. N’Longa estava nas pontas dos pés: as colinas estavam abandonando seus mortos.

Fora das cavernas, estavam se aglomerando as terríveis e silenciosas silhuetas negras; do alto dos declives, eles vinham se arremessando e para o alto dos blocos eles vieram escalando. E seus olhos vermelhos estavam todos voltados para os dois humanos que se erguiam sobre a cidade silenciosa. As cavernas os vomitavam, num profano juízo final.

N’Longa apontou para um penhasco a pouca distância e, com um grito, começou a correr velozmente em direção ao mesmo. Kane o seguiu. Nos blocos atrás deles, mãos em forma de garras arranhavam em suas direções, rasgando-lhes as roupas. Eles atravessaram cavernas, e monstros mumificados vieram cambaleando da escuridão, tagarelando silenciosamente, para se juntarem à perseguição.

As mãos mortas estavam quase às suas costas, quando eles subiram a última inclinação e se ergueram sobre uma saliência que era o topo do penhasco. Os demônios pararam silenciosamente por um momento, e então vieram subindo atrás deles. Kane brandiu seu mosquete e despedaçou rostos com olhos vermelhos, tirando de ação as mãos saltitantes. Eles se erguiam como uma grande onda; ele balançava seu mosquete numa fúria silenciosa que competia com a deles. A onda quebrava e recuava; e avançava novamente.

Ele não conseguia matá-los! Estas palavras batiam em seu cérebro como o martelo de uma forja, enquanto ele espatifava carne dura como madeira e ossos mortos, com seus balanços esmagadores. Ele os derrubava, os arremessava para trás, mas eles se levantavam e avançavam novamente. Isto não podia demorar – o que, em nome de Deus, N’Longa estava fazendo? Kane dirigiu um rápido e angustiado olhar sobre o ombro. O feiticeiro estava na parte mais alta da saliência, com a cabeça virada para trás e os braços erguidos como que numa invocação.

A visão de Kane se manchou com o movimento veloz de rostos hediondos com arregalados olhos vermelhos. Os que estavam na frente eram agora horríveis de se ver, pois seus crânios estavam despedaçados, seus rostos desmoronados e seus membros quebrados. Mas eles ainda avançavam, e os que estavam atrás estendiam os braços através de suas costas, para agarrarem a homem que os desafiava.

Kane estava vermelho, mas o sangue era todo dele. Das longas veias definhadas daqueles monstros, nem uma só gota de sangue vermelho e quente escorria. Subitamente, atrás dele, veio uma longa parede perfurada – N’Longa! Acima do quebrar da veloz coronha do mosquete e do despedaçar de ossos, soou alto e claro – a simples voz se erguia acima daquela luta hedionda.

A onda de vampiros fluía em volta dos pés de Kane, arrastando-o para baixo. Garras afiadas puxavam-no violentamente, lábios flácidos sugavam-lhe as feridas. Ele girou novamente para cima, desgrenhado e ensangüentado, abrindo espaço com uma varredura despedaçadora de seu mosquete estilhaçado. Então, eles se aproximaram novamente, e ele caiu.

“Este é o fim!”, pensou ele; mas mesmo naquele momento, a pressão diminuiu; e o céu foi subitamente preenchido pelo bater de grandes asas.

Então, ele estava livre e cambaleou para cima, cega e vertiginosamente, pronto para recomeçar a luta. Ele parou, petrificado. Declive abaixo, a horda vampira estava fugindo e, sobre suas cabeças e próximos às suas costas, voavam enormes abutres, que rasgavam e dilaceravam avidamente, afundando seus bicos na carne morta e devorando as criaturas enquanto estas fugiam.

Kane riu quase loucamente:

- Vocês desafiam os homens e a Deus, mas não enganam os abutres, filhos de Satã! Eles sabem se um homem está vivo ou morto!

N’Longa se ergueu como um profeta no pináculo, e os grandes pássaros negros voaram e giraram ao seu redor. Seus braços ainda ondulavam, e sua voz ainda pranteava através das colinas. E sobre as linhas do horizonte, eles vinham: hordas sobre hordas sem fim – abutres, abutres, abutres! – vinham sobre o banquete há muito negado a eles. Eles escureciam o céu com seus números, e eclipsavam o sol; uma estranha escuridão caiu sobre a terra. Eles se assentavam em longas linhas escuras, mergulhando nas cavernas com as asas zunindo e os bicos batendo ruidosamente. Suas garras rasgavam os horrores perversos que estas cavernas vomitavam.

Agora todos os vampiros estavam fugindo para a cidade deles. A vingança, contida durante eras, caíra sobre eles, e a última esperança que lhes restava eram as grossas paredes que haviam detido os desesperados inimigos humanos. Sob aqueles tetos desagregados, eles poderiam achar abrigo. E N’Longa observou-os fluírem para dentro da cidade, e riu até os penhascos ecoarem.

Agora, todos estavam dentro e os pássaros se instalavam feito uma nuvem sobre a cidade condenada, pousando em sólidas fileiras ao longo dos muros, apontando seus bicos e garras sobre as torres.

E N’Longa bateu pederneira e aço num molho de folhas secas que ele havia trazido. O molho ardeu instantaneamente em chamas, e ele arrumou e arremessou o objeto em chamas para bem longe dos penhascos. Ele caiu como um meteoro sobre o planalto embaixo, espirrando faíscas. A grama alta do planalto pegou fogo.

Da cidade silenciosa sob eles, o Medo fluiu em ondas invisíveis, como uma bruma branca. Kane sorriu impiedosamente.

- O capim está seco e frágil por causa da estiagem. – ele disse – Houve menos chuva que o normal nesta estação. Ele queimará rapidamente.

Como uma serpente rubra, o fogo correu pela alta grama morta. Ele se espalhava e se espalhava, e Kane, se erguendo lá no alto, ainda sentia a intensidade medonha dos olhos vermelhos que miravam da cidade de pedra.

Agora, a serpente escarlate havia alcançado os muros e estava se erguendo, como que para se enrolar e contorcer sobre eles. Os abutres se ergueram com suas asas batendo pesadamente, e voaram relutantes. Uma rajada errante de vento fustigou a chama ao redor e dirigiu-a numa longa camada vermelha em volta da cidade. Agora, a cidade estava cercada por todos os lados, por uma sólida barreira de fogo. O estrépito chegou aos dois homens no alto do penhasco.

Faíscas voavam através das paredes. Se acendendo na grama alta das ruas. Uma grande quantidade de chamas saltava e crescia com velocidade aterradora. Um véu vermelho vestia ruas e construções, e através desta bruma escarlate e rodopiante, Kane e N’Longa viram centenas de silhuetas escuras correrem e se contorcerem, para desaparecerem subitamente em rubras explosões de fogo. Então, se ergueu um cheiro intolerável de carne podre queimando.

Kane observava, pasmado. Isto era mesmo um inferno na terra. Como num pesadelo, ele olhava para um ruidoso caldeirão vermelho, onde insetos escuros lutavam contra seus destinos e morriam. As chamas se erguiam a cem metros no ar, e subitamente, acima de seu ruído, soou um grito bestial e inumano, com um guincho vindo de golfos sem nomes com velocidade cósmica, como se um vampiro moribundo quebrasse as correntes do silêncio que o amarraram por séculos incontáveis. Alto e assombroso, ele se ergueu, como o grito da morte de uma raça moribunda.

Então, as chamas abaixaram repentinamente. O incêndio havia sido um típico fogo de palha, breve e feroz. Agora, o planalto exibia uma vastidão enegrecida, e a cidade era uma massa queimada e esfumaçada de pedra desagregada. Nenhum corpo foi visto, nem sequer um osso queimado. Acima de tudo aquilo, rodopiavam os bandos escuros de abutres, mas eles também estavam começando a se dispersar.

Kane olhou ansioso para o claro céu azul. Era, para ele, como um forte vento marinho clareando uma bruma de horror. De algum lugar, soou o fraco e distante rugido de um leão. Os abutres batiam asas para longe em negras filas irregulares.


5) Conferência Estabelecida!

Kane sentou-se na entrada da caverna, onde Zunna jazia, e entregou-se às ataduras do feiticeiro.

As roupas do puritano estavam completamente esfarrapadas; seus membros e peito tinham talhos profundos e contusões escuras, mas ele não havia tido nenhum ferimento fatal naquela luta mortífera sobre o penhasco.

- Homens poderosos, nós ser! – declarou N’Longa com profunda aprovação – Cidade vampira estar silenciosa agora, é bastante certo! Nenhum morto andante viver ao longo destas colinas.

- Eu não entendo. – disse Kane, apoiando o queixo na mão – Me diga, N’Longa, como você fez aquelas coisas? Como conversou comigo em sonhos; como adentrou o corpo de Kran, e como convocou os abutres?

- Meu irmão de sangue. – disse N’Longa, descartando o orgulho que tinha de seu Inglês insignificante, para falar na linguagem do rio, entendida por Kane – Eu sou tão velho, que você me chamaria de mentiroso se eu lhe falasse minha idade. Por toda a vida, trabalhei com magia, primeiro me sentando aos pés dos poderosos homens de ju-ju do sul e do leste; então, eu fui um escravo para Buckra e aprendi mais. Meu irmão, irei atravessar todos estes anos num momento, e fazê-lo entender, com uma só palavra, aquilo que levei um longo tempo para aprender? Eu não conseguiria sequer fazê-lo entender como estes vampiros pouparam seus corpos da decomposição, ao beberem as vidas dos homens.

“Eu durmo, e meu espírito sai sobre as selvas para conversar com os espíritos adormecidos dos meus amigos. Há uma poderosa magia no bastão vodu que eu lhe dei... uma magia da Velha Terra, que puxa minha alma para ela, como o ímã do homem branco faz com metal”.

Kane escutava em silêncio, vendo pela primeira vez, nos olhos cintilantes de N’Longa, algo mais forte e mais profundo que o brilho ávido daquele que trabalha com magia negra. Para Kane, parecia quase como se ele olhasse os místicos olhos de visão distante de um profeta de tempos antigos.

- Eu falei com você em sonhos – prosseguiu N’Longa –, e fiz um sono profundo cair sobre as almas de Kran e Zunna, removendo-as para uma obscura terra distante, da qual eles logo voltarão sem se lembrarem. Todas as coisas se curvam à magia, irmão de sangue, e feras e pássaros obedecem às palavras dos mestres. Eu trabalhei com forte vodu, magia de abutres, e o povo alado do ar se reuniu ao meu chamado.

“Estas coisas eu sei, e sou uma parte delas, mas como irei lhe falar sobre elas? Irmão de sangue, você é um poderoso guerreiro, mas nos caminhos da magia, você é como uma criança pequena e perdida. O que me levou longos anos para saber, eu não posso divulgar para você, pois você não entenderia. Meu amigo, você só pensa em maus espíritos, mas minha magia foi sempre má? Eu não deveria tomar este excelente corpo jovem, no lugar do meu corpo velho e enrugado, e preservá-lo? Mas Kran logo terá seu corpo de volta, são e salvo.

“Guarde o bastão vodu, irmão de sangue. Ele tem enorme poder contra todos os feiticeiros, serpentes e coisas malignas. Agora, eu volto para a aldeia na Costa, onde meu verdadeiro corpo dorme. E quanto a você, irmão de sangue?”.

Kane apontou silenciosamente para o leste.

- O chamado cresce forte. Eu vou.

N’Longa inclinou a cabeça e estendeu a mão. Kane segurou-a. A expressão mística desaparecera do rosto do feiticeiro, e os olhos piscaram como os de uma cobra, com uma espécie de regozijo reptiliano.

- Mim ir agora, irmão de sangue. – disse o feiticeiro, voltando ao seu querido jargão, de cujo conhecimento ele tinha mais orgulho que seus artifícios de invocação – Tome cuidado... esta selva camarada, ela ainda arrancar seus ossos! Lembre do bastão vodu, irmão. Ai ya, conferência estabelecida!

Ele caiu para trás, na areia, e Kane viu a expressão aguda e astuta de N’Longa desaparecer do rosto de Kran. Sua pele se arrepiou novamente. Em algum lugar lá atrás, na Costa dos Escravos, o corpo de N’Longa, definhado e enrugado, estava se levantando, como que de um grande sono. Kane estremeceu.

Kran se sentou, bocejou, se espreguiçou e sorriu. Ao seu lado, a garota Zunna se levantou, esfregando os olhos.

- Mestre – disse Kran, se desculpando –, acho que dormimos.



Tradução: Fernando Neeser de Aragão

Fonte: http://en.wikisource.org/wiki/The_Hills_of_the_Dead
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