O Vale do Verme

(por Robert E. Howard)

Originalmente publicado em Weird Tales, fevereiro de 1934.


EU LHES FALAREI DE NIORD E O VERME. Vocês já ouviram essa história antes, em vários aspectos, nos quais o herói era chamado Tyr, ou Perseu, ou Siegfried, ou Beowulf ou São Jorge. Mas foi Niord quem encontrou a repugnante criatura demoníaca que saiu rastejando horrendamente do inferno, e deste encontro surgiu o ciclo de histórias heróicas, que desce pelas eras até a própria substância da verdade se perder e adentrar o limbo de todas as lendas esquecidas. Sei do que estou falando, pois eu era Niord.

Enquanto estou aqui deitado, aguardando a morte, que rasteja lentamente sobre mim como uma lesma cega, meus sonhos estão cheios de visões brilhantes e do cortejo da glória. Não é com a vida desinteressante e torturada pela doença de James Allison que eu sonho, mas com todas as formas brilhantes, do grande cortejo que havia passado antes, e que virão depois; pois já vislumbrei fracamente, não só as figuras que vêm antes, mas também as que vêm depois, como um homem num desfile vislumbra, lá adiante, a linha de figuras que o precede, serpenteando sobre uma colina distante, destacada contra o céu feito uma sombra. Sou, ao mesmo tempo, uma e todas as formas, disfarces e máscaras que existiram no cortejo, que existem e existirão como as manifestações visíveis deste ilusório, intangível, mas vitalmente existente espírito, que agora passeia sob o nome breve e temporário de James Allison.

Cada homem na terra, e cada mulher, é parte e todo de uma caravana similar de formas e seres. Mas não conseguem se lembrar – suas mentes não conseguem transpor os breves e horríveis golfos de escuridão, que jazem entre estas formas instáveis, e que o espírito, alma ou ego, ao transpô-los, se livra de suas máscaras de carne. Eu me lembro. Por que consigo me lembrar é a mais estranha de todas as histórias; mas, enquanto estou aqui deitado, com as asas negras da morte se desdobrando lentamente sobre mim, todas as dobras indistintas de minhas vidas anteriores tremulam diante de meus olhos, e eu me vejo em muitas formas e aspectos – fanfarrão, arrogante, amedrontado, amoroso, tolo; tudo o que os homens foram ou serão.

Fui homem em muitas terras e condições; mas – e esta é outra coisa estranha –, minha linha de reencarnação corre reta, seguindo um canal infalível. Nunca fui outra coisa além de um homem daquela raça inquieta, à qual os homens chamaram outrora de nordheimeres; mais tarde, de arianos, e que hoje chamam por muitos nomes e designações. A história deles é a minha, desde o primeiro gemido choramingante de um macaco branco e sem pêlos, na desolação do Ártico, até o grito de morte do último produto degenerado da civilização definitiva, em alguma obscura e incalculável era futura.

Meu nome foi Hialmar, Tyr, Bragi, Bran, Horsa, Eric e John. Percorri, com as mãos ensangüentadas, as ruas abandonadas de Roma, atrás de Brennus da cabeleira amarela; vaguei através das plantações arrasadas, com Alaric e seus godos, quando o fogo das vilas em chamas iluminou a terra como se fosse dia, e um império dava suas últimas arfadas sob nossos pés calçados em sandálias; vadeei, de espada na mão, através da rebentação espumante, desde a galé de Hengist, para criar os alicerces da Inglaterra em sangue e pilhagem; quando Leif, o Sortudo, avistou as amplas praias brancas de um mundo desconhecido, eu estava ao lado dele no convés do navio-dragão, minha barba dourada soprada pelo vento; e quando Godfrey de Bouillon liderou seus cruzados sobre as muralhas de Jerusalém, eu estava entre eles, com gorro de aço e brigantina.

Mas não falarei de nenhuma destas coisas. Eu os levarei de volta a uma era, ao lado da qual a de Brennus e Roma é como se fosse ontem. Eu lhes levarei de volta, não meramente através de séculos ou milênios, mas de épocas e eras desconhecidas pelo mais extravagante dos filósofos. Oh, longe, longe e mais longe, vocês viajarão para o passado anoitecido, antes que transcendam as fronteiras de minha raça, de olhos azuis, cabelos amarelos, nômades, matadores, amantes, poderosos na pilhagem e na viagem.

É da aventura de Niord, e da ruína do Verme, que falarei... a raiz da qual brota todo um ciclo de histórias heróicas, o qual ainda não alcançou seu fim, e a realidade medonha e básica que se esconde por trás de mitos, distorcidos pelo tempo, de dragões, demônios e monstros.

Mas não é só com a boca de Niord que falarei. Sou James Allison não mais do que fui Niord e, enquanto narro a história, interpretarei alguns de seus pensamentos, sonhos e atos pela boca do eu moderno, para que a saga de Niord não seja para vocês um caos sem significado. O sangue dele é o de vocês, que são filhos dos arianos, mas largos golfos de eons jazem horripilantemente no meio, e os atos e sonhos de Niord parecem tão estranhos aos seus atos e sonhos, quanto a primordial floresta habitada por leões parece estranha para a rua citadina de muros brancos.

Era um mundo estranho, aquele onde Niord viveu, amou e lutou, há tanto tempo que nem sequer minha memória, que atravessa eons, consegue reconhecer marcos divisórios. Desde então, a superfície da terra mudou, não uma, mas vinte vezes: continentes emergiram e afundaram, mares mudaram de leitos e rios mudaram de curso, geleiras cresceram e diminuíram, e as próprias estrelas e constelações foram alteradas e mudadas de lugar.

Foi há tanto tempo, que a terra natal de minha raça ainda era em Nordheim. Mas as migrações épicas de meu povo já haviam começado, e tribos de olhos azuis e cabeleiras amarelas fluíam para leste, sul e oeste, em viagens seculares que os levavam ao redor do mundo e deixavam seus ossos e pegadas em terras estranhas e desolados lugares selvagens. Numa destas migrações, cresci da infância à idade viril. Meu conhecimento daquele lar setentrional era apenas de vagas lembranças, como sonhos meio lembrados, de cegantes e brancas planícies nevadas, e campos de gelo; do estrépito de grandes fogueiras no círculo de tendas de pele, de cabeleiras amarelas flutuando sob grandes ventos, e um sol se pondo num lívido lamaçal de nuvens escarlates e ardendo sobre a neve pisoteada, onde imóveis formas escuras jaziam em poços mais vermelhos que o crepúsculo.

Essa última lembrança se destacava mais claramente que as outras. Era o campo de Jotunheim, me disseram anos mais tarde, onde acabava de acontecer aquela terrível batalha que foi o Armageddon do povo aesir, o tema de um ciclo de canções heróicas durante longas eras, e que hoje ainda vive nos sonhos vagos de Ragnarok e Goetterdaemmerung (*). Presenciei a batalha quando eu era um menino choramingante; de modo que devo ter vivido em torno de... mas não direi a era, pois eu seria chamado de louco, e tanto historiadores quanto geólogos me refutariam.

Mas minhas lembranças de Nordheim eram poucas e obscuras, empalidecidas pelas recordações daquela longa, longa viagem na qual gastei minha vida. Não havíamos mantido um curso reto, mas nossa direção havia sido sempre para o sul. Às vezes, parávamos por um tempo em férteis vales das terras altas, ou em ricas planícies atravessadas por rios; mas nós sempre continuávamos o caminho novamente, e nem sempre por causa de seca ou fome. Freqüentemente abandonávamos regiões abundantes em caça e em grãos silvestres, para adentrarmos terras desoladas. Em nossa trilha, nos movíamos interminavelmente, movidos apenas por nosso capricho inquieto, mas seguindo cegamente uma lei cósmica, cujo funcionamento nunca imaginamos mais do que os gansos selvagens imaginam em seus vôos ao redor do mundo. Assim, finalmente chegamos ao País do Verme.

Retomarei a história a partir do momento em que adentramos as colinas cobertas por selvas, que fediam a podridão e tinham vida em extrema abundância; onde os tambores de um povo selvagem pulsavam incessantemente através da noite quente e ofegante. Aquele povo apareceu para disputar nosso caminho – homens baixos, fortemente constituídos, de cabelos negros, pintados e ferozes, mas, indiscutivelmente, homens brancos. Conhecíamos sua raça há muito tempo. Eram pictos e, de todas as raças estrangeiras, a mais feroz. Havíamos encontrados a raça deles em florestas espessas, e nos vales das terras altas ao lado de lagos de montanhas. Mas muitas luas haviam se passado desde aqueles encontros.

Creio que esta tribo, em particular, representava a migração mais oriental da raça. Eram os mais primitivos e ferozes de todos os que eu havia encontrado. Já exibiam insinuações de características que eu já havia notado entre selvagens negros de países da selva, embora houvessem morado naqueles arredores por poucas gerações. A selva abismal os estava engolfando, eliminando suas antigas características e os modelando em seu próprio e horrorizante feitio. Estavam se tornando caçadores de cabeças, e o canibalismo era apenas um passo que acredito terem dado, antes de se extinguirem. Estas coisas são extensões naturais da selva; os pictos não as aprenderam com o povo negro, pois naquela época não havia negros entre aquelas colinas. Em anos posteriores, eles vieram do sul, e os pictos primeiramente os escravizaram e logo foram absorvidos por eles. Mas isso não interessa à saga de Niord.

Adentramos aquele país brutal das colinas, com seus abismos uivantes de selvageria e negro primitivismo. Éramos toda uma tribo andando a pé: velhos, lupinos em suas longas barbas e membros magros; guerreiros gigantes, no auge de suas forças; crianças nuas, correndo ao longo da linha de marcha, e mulheres com desgrenhadas mechas loiras, carregando bebês que nunca choraram – exceto para gritar de pura raiva. Não me lembro de nosso número, exceto que éramos uns 500 lutadores – e, por lutadores, eu me refiro a todos os homens, desde o menino com força suficiente para erguer um arco, até o mais velho dos idosos. Naquela era loucamente feroz, éramos todos lutadores. Nossas mulheres, quando estavam acuadas, lutavam como tigresas; e já vi uma criancinha, que ainda não tinha idade suficiente para gaguejar palavras articuladas, torcer a cabeça e afundar seus dentes minúsculos no pé que lhe esmagava a vida.

Ah, éramos lutadores! Deixem-me falar de Niord. Tenho orgulho dele, principalmente quando levo em conta o corpo insignificante e aleijado de James Allison, a máscara instável que agora uso. Niord era alto, de ombros largos, quadris estreitos e membros poderosos. Seus músculos eram longos e volumosos, indicando resistência e velocidade tanto quanto força. Ele conseguia correr o dia inteiro sem se cansar, e possuía uma coordenação que fazia de seus movimentos um borrão de velocidade cegante. Se eu lhes falasse de toda a sua força, vocês iriam me qualificar de mentiroso. Mas não há, hoje em dia na terra, homem forte o bastante para puxar o arco que Niord manejava com facilidade. O tiro de flecha mais longo já registrado é o de um arqueiro turco, que enviou uma seta a 440 metros de distância. Não havia um adolescente em minha tribo que não conseguisse superar aquele tiro.

À medida que adentrávamos a região da selva, ouvíamos os tambores retumbando pelos vales misteriosos que dormitavam entre as colinas selvagens; e, num planalto largo e aberto, nos deparamos com nossos inimigos. Não creio que os pictos nos conhecessem, nem sequer por lendas, ou não teriam corrido tão abertamente ao ataque, apesar de nos superarem em números. Mas não houve qualquer tentativa de emboscada. Saíram das árvores aos bandos, dançando e cantando suas canções de guerra, e gritando suas ameaças bárbaras. Nossas cabeças ficariam penduradas na cabana de seu ídolo, e nossas mulheres de cabelos amarelos carregariam os filhos deles. Ho, ho, ho! Por Ymir, foi Niord quem riu então, e não James Allison. Do mesmo modo, nós, dos aesires, rimos ao lhes ouvir as ameaças – uma risada profunda e trovejante, saída de peitos largos e poderosos. Nossa trilha havia sido traçada em sangue e cinzas através de muitas terras. Éramos os matadores e raptores, andando de espada na mão através do mundo, e este povo que nos ameaçava despertou nosso humor rude.

Fomos enfrentá-los, vestidos apenas com nossas peles de lobo, balançando nossas espadas de bronze, e nossa canção era como o trovão retumbando nas colinas. Eles lançaram suas flechas contra nós, e lhes devolvemos os disparos. Eles não se comparavam a nós no tiro de arco. Nossas flechas sibilaram em nuvens cegantes entre eles, derrubando-os como folhas de outono, até que eles uivaram e espumaram como cães raivosos, e se lançaram ao corpo-a-corpo. E nós, enlouquecidos pela alegria do combate, abandonamos nossos arcos e corremos para enfrentá-los, como um amante que corre até seu amor.

Por Ymir, foi uma batalha para enlouquecer e embriagar, com a matança e a fúria. Os pictos eram tão ferozes quanto nós, mas era nosso o físico superior, a inteligência mais aguda e o cérebro mais desenvolvido para a luta. Vencemos porque éramos uma raça superior, mas não foi uma vitória fácil. Cadáveres se alastravam pela terra encharcada de sangue; mas, finalmente, suas fileiras se romperam, e os derrubamos enquanto fugiam, até o próprio limite das árvores. Eu lhe falo daquela luta com palavras secas e escassas. Não posso pintar a loucura, a exalação de sangue e suor, o ofegar, o grande esforço dos músculos, o quebrar de ossos sob golpes poderosos, o rasgar e cortar da estremecida carne sensível; e, sobretudo, a impiedosa selvageria abismal de tudo isso, na qual não havia regra nem ordem, cada homem lutando como quisesse ou pudesse. Se eu lhes contasse, vocês recuariam, horrorizados; mesmo o eu moderno, ciente do meu parentesco próximo com aqueles tempos, fico horrorizado ao recapitular aquela carnificina. A piedade ainda não havia nascido, exceto como capricho individual, e as regras de guerra ainda não haviam sido sonhadas. Foi uma era, na qual cada tribo e cada ser humano lutava com unhas e dentes, do nascimento até a morte, e ninguém dava nem esperava misericórdia.

Assim, abatemos os pictos fugitivos, e nossas mulheres saíam ao campo, para arrebentarem os miolos dos inimigos feridos com pedras, ou lhes cortarem as gargantas com facas de cobre. Nós não torturávamos. Não éramos mais cruéis do que a vida exigia. A regra da vida era a impiedade, mas hoje existe muito mais crueldade gratuita do que jamais sonhamos. Não era a injustificada sede de sangue que nos fazia matar inimigos feridos ou cativos. Era porque sabíamos que nossas chances de sobrevivência aumentavam a cada inimigo morto.

Contudo, havia ocasionalmente um toque de compaixão individual, e assim o foi nesta luta. Eu havia estado ocupado num duelo com um inimigo especialmente valente. Sua mata desgrenhada de cabelo negro mal ultrapassava meu queixo, mas ele era um sólido nó de molas de aço, que mal cediam ao se moverem na velocidade de um raio. Ele tinha uma espada de ferro e um escudo coberto de pele. Eu tinha um porrete com uma cabeça nodosa. Aquela luta saciou até mesmo minha alma sedenta de batalhas. Eu sangrava de vinte ferimentos, antes que um de meus terríveis golpes fustigantes lhe esmagasse o escudo como se fosse papelão; e, um instante depois, meu porrete resvalou em sua cabeça desprotegida. Ymir! Mesmo agora, eu paro para rir e me maravilhar diante da dureza do crânio daquele picto. Os homens daquela era tinham certamente uma constituição mais robusta! Aquele golpe deveria der lhe derramado os miolos como água. Ele o deixou com o couro cabeludo horrivelmente aberto, derrubando-o inconsciente ao chão, onde eu o deixei caído, achando que ele estivesse morto, enquanto eu me juntava à matança dos guerreiros que fugiam.

Quando retornei, fedendo a suor e sangue, meu porrete horrivelmente coagulado com sangue e miolos, percebi que meu oponente estava recuperando a consciência, e que uma desnuda garota de cabelos desgrenhados se preparava para dar-lhe o golpe final, com uma pedra que ela mal conseguia levantar. Um capricho passageiro me fez deter o golpe. Eu havia gostado da luta, e admirado a qualidade adamantina de seu crânio.

Acampamos a pouca distância, queimamos nossos mortos numa grande pira e, após saquearmos os cadáveres dos inimigos, nós os arrastamos pelo planalto e lançamos a um vale, para que servissem de banquete às hienas, chacais e abutres que já estavam se reunindo. Mantivemos uma estreita vigilância naquela noite, mas não fomos atacados – embora, à distância, através da selva, pudéssemos perceber o lampejo vermelho das fogueiras, e pudéssemos ouvir fracamente, quando o vento mudava de direção, o palpitar dos tambores, gritos demoníacos, urros fúnebres pelos mortos, ou simples gritos animais de fúria.

Tampouco nos atacaram nos dias seguintes. Vendamos os ferimentos de nosso cativo, e aprendemos rapidamente sua língua primitiva, a qual, no entanto, era tão diferente da nossa que eu não consigo imaginar que as duas línguas tenham tido uma origem comum.

Seu nome era Grom, e ele se vangloriava de ser um grande caçador e guerreiro. Falava espontaneamente, e não guardava rancor, sorrindo largamente e mostrando dentes semelhantes a presas, seus olhos como contas brilhando sob a emaranhada cabeleira negra que lhe caía sobre a testa. Seus membros eram quase simiescos em sua grossura.

Estava bastante interessado em seus captores, embora nunca pudesse entender por que havia sido poupado; até o fim, isso permaneceu um mistério inexplicável para ele. Os pictos obedeciam à lei da sobrevivência ainda mais rigidamente que os aesires. Eles eram mais práticos, como demonstrado por seus hábitos mais sedentários. Nunca vagaram tão longe, nem tão às cegas, quanto nós. Mas, em cada aspecto, éramos a raça superior.

Grom, impressionado com nossa inteligência e qualidades guerreiras, se ofereceu voluntariamente para adentrar as colinas e fazer as pazes por nós com seu povo. Aquilo não nos importava, mas o deixamos ir. Ainda não se sonhava com escravidão.

Assim, Grom voltou para seu povo e nós o esquecemos, exceto pelo fato de que eu fui caçar com um pouco mais de precaução, esperando que ele estivesse à espreita para me cravar uma flecha nas costas. Um dia, então, ouvimos o estrondo de tambores, e Grom apareceu no limite da selva, o rosto partido por seu sorriso de gorila, com os chefes dos clãs pintados, vestidos com peles e enfeitados com penas. Nossa ferocidade os havia impressionado, e o fato de termos poupado Grom os havia impressionado mais ainda. Não conseguiam entender a piedade; evidentemente, nós os valorizávamos tão pouco, que não nos preocupávamos em matar um deles em nosso poder.

Assim, a paz foi feita, com muita cerimônia de conjuração, e foi jurada com muitas e estranhas juras e rituais... nós só jurávamos por Ymir, e os aesires nunca haviam quebrado tal juramento. Mas eles juravam pelos elementos, pelo ídolo sentado na cabana-fetiche – onde as fogueiras ardiam eternamente, e uma velha encarquilhada e definhada batia num tambor coberto de couro durante toda a noite – e por outro ser, terrível demais para ser nominado.

Logo, todos nós sentamos ao redor das fogueiras, comemos carne e bebemos uma mistura ardente que eles preparavam com grãos silvestres; e o maravilhoso é que a festa não acabou numa matança geral – pois aquele licor tinha demônios dentro dele e fazia vermes se contorcerem em nossos cérebros. Mas a nossa enorme embriaguez não causou nenhum mal, e depois disso, vivemos em paz com nossos vizinhos bárbaros. Eles nos ensinaram muitas coisas, e aprenderam muito mais conosco. Mas nos ensinaram a forjar ferro, ao que haviam sido forçados devido à falta de cobre naquelas colinas, e nós logo os superamos.

Nós andávamos livremente entre suas aldeias – agrupamentos de cabanas com paredes de barro, em clareiras no alto das colinas, ensombrecidas por árvores gigantescas – e lhes permitimos vir à vontade aos nossos acampamentos – linhas irregulares de tendas de pele, no planalto onde havia ocorrido a batalha. Nossos jovens não se interessavam por suas mulheres atarracadas, de olhos semelhantes a contas; e nossas garotas de membros delgados e claros, com seus desgrenhados cabelos amarelos, não atraíam os selvagens de peito peludo. A familiaridade, ao longo dos anos, reduziria a repulsa em ambos os lados, até as duas raças se fundirem para formar um só povo híbrido; mas, bem antes disso, os aesires levantaram acampamento e partiram, desaparecendo nas névoas misteriosas do também misterioso sul. Mas, antes desse êxodo, aconteceu o horror do Verme.

Cacei com Grom, e ele me guiou para melancólicos vales desabitados, e me fez subir colinas silenciosas, onde nenhum homem havia colocado o pé antes de nós. Mas havia um vale, perdido nos labirintos do sudoeste, ao qual ele não queria adentrar. Topos de colunas despedaçadas, relíquias de uma civilização esquecida, se erguiam entre as árvores no chão do vale. Grom as mostrou para mim, enquanto estávamos sobre os penhascos que ladeavam o misterioso vale, mas não pretendia descer até ele, e me dissuadiu quando eu quis ir só. Ele não falava claramente do perigo que se escondia ali, mas era maior que o da serpente, do tigre ou dos elefantes trombeteantes, que ocasionalmente perambulavam em manadas devastadoras, vindas do sul.

De todas as feras, Grom me contou em língua gutural, os pictos só temiam Satha, a grande serpente, e evitavam a selva onde ela vivia. Mas havia outra coisa à qual temiam, e estava conectada de alguma forma com o Vale das Pedras Quebradas, como os pictos chamavam os pilares em ruínas. Há muito tempo, quando seus ancestrais haviam adentrado pela primeira vez aquela região, eles ousaram entrar naquele vale sombrio, e um clã inteiro dos seus havia perecido de forma súbita, horrenda e inexplicável. Pelo menos Grom não explicava. De algum modo, o horror havia saído da terra, e não era bom falar dele, já que se acreditava que Aquilo seria chamado, caso falassem Dele – fosse o que fosse Aquilo.

Mas Grom estava disposto a caçar comigo em qualquer outro lugar; pois era o maior caçador entre os pictos, e nossas aventuras foram muitas e temíveis. Uma vez matei, com a espada de ferro que eu havia forjado com minhas próprias mãos, o mais terrível de todos os animais selvagens – o velho dentes-de-sabre, ao qual os homens hoje chamam de tigre, porque se parecia mais com um tigre do que com qualquer outra coisa. Na verdade, sua constituição era muito mais semelhante à de um urso, exceto por sua inconfundível cabeça felina. O dentes-de-sabre tinha membros enormes, com um corpo baixo, grande e pesado; e desapareceu da terra porque era um lutador terrível demais, mesmo para aquela era implacável. Enquanto seus músculos e ferocidade cresciam, seu cérebro diminuía, até o próprio instinto de auto-preservação desaparecer. A natureza, que mantém tais coisas em equilíbrio, o destruiu porque, se seus poderes de super-lutador tivessem se aliado a um cérebro inteligente, ele teria destruído todas as outras formas de vida na terra. Era uma monstruosidade na roda da evolução... um desenvolvimento orgânico que havia enlouquecido e corrido até não ser mais do que presas e garras, para a matança e a destruição.

Matei o dentes-de-sabre num combate que, por si só, faria uma saga, e, durante os meses posteriores, jazi meio delirante, com ferimentos horríveis que fizeram os guerreiros mais resistentes sacudirem as cabeças. Os pictos disseram que nunca um homem solitário havia matado um dentes-de-sabre. Mas eu me recuperei, para o espanto de todos.

Enquanto eu jazia diante das portas da morte, houve uma separação na tribo. Foi uma separação pacífica, como ocorria continuamente e contribuía grandemente para o povoamento do mundo por tribos de cabelos amarelos. Quarenta e cinco dos jovens arranjaram companheiras simultaneamente e se afastaram para fundarem seu próprio clã. Não houve revolta; era um costume racial que frutificou em todas as eras posteriores, quando tribos surgidas da mesma raiz se encontraram, após séculos de separação, e cortaram as gargantas umas das outras com alegre abandono. A tendência dos arianos e pré-arianos era sempre a separação, os clãs se separando do tronco principal e se espalhando.

Assim, estes jovens, liderados por um certo Bragi, meu irmão de armas, tomaram suas garotas e se aventuraram para o sudoeste, estabelecendo sua moradia no Vale das Pedras Quebradas. Os pictos advertiram, fazendo vagas alusões a uma maldição monstruosa que assombrava o vale, mas os aesires riram. Havíamos deixado nossos próprios demônios e sobrenaturais nas desolações geladas do distante norte azul, e os demônios de outras raças não nos impressionavam.

Quando recuperei completamente minha força, e meus ferimentos medonhos eram apenas cicatrizes, agarrei minhas armas e cruzei o planalto para visitar o clã de Bragi. Grom não me acompanhou. Ele não havia estado no acampamento aesir por vários dias. Mas eu conhecia o caminho. Eu me lembrava bem do vale, desde os penhascos em cujo topo eu o havia contemplado, vendo o lago na extremidade superior, e as árvores se espessando e transformado em floresta na extremidade mais baixa. Os lados do vale eram penhascos altos e perpendiculares; e uma íngreme aresta larga, em ambas as extremidades, o isolava da região circundante. Na extremidade mais baixa, a sudoeste, o chão do vale era espessamente pontilhado por colunas em ruínas, algumas se erguendo por entre as árvores, e algumas transformadas em pilhas caídas de pedras cobertas de líquen. Ninguém sabia que raça as ergueu. Mas Grom havia falado, vaga e temerosamente, de uma monstruosidade peluda e simiesca dançando asquerosamente sob a lua, ao som de músicas diabólicas de flauta que provocavam horror e loucura.

Atravessei o planalto onde nosso acampamento fora armado, desci a inclinação, cruzei um vale raso e obstruído por vegetação, galguei outra inclinação e adentrei as colinas. Meio dia de fácil trajeto me levou à aresta, do outro lado da qual ficava o vale dos pilares. Por muitas milhas, não vi sinal de vida humana. As aldeias dos pictos estavam todas a muitas milhas ao leste. Cheguei ao topo da aresta e desci o olhar, em direção ao vale sonhador, com seu lago calmo e azul, seus penhascos meditativos e suas colunas quebradas se sobressaindo por entre as árvores. Procurei por fumaça. Não vi nenhuma, mas vi abutres, girando no céu, sobre um agrupamento de tendas na margem do lago.

Desci cautelosamente a aresta e me aproximei do acampamento silencioso. Nele eu parei, congelado de horror. Eu não era fácil de me impressionar. Já tinha visto a morte de muitas formas, e já havia fugido ou tomado parte de massacres vermelhos, que derramavam sangue como água e amontoavam cadáveres na terra. Mas aqui, me deparei com uma devastação orgânica que me deixou abalado e horrorizado. Do clã embrionário de Bragi, não restava ninguém vivo, e nenhum cadáver estava inteiro. Algumas das tendas de pele ainda estavam de pé. Outras foram derrubadas e esmagadas, como se por algum peso monstruoso, de modo que primeiramente me perguntei se uma manada de elefantes havia cruzado o acampamento. Mas elefantes jamais causariam tamanha destruição, como a que vi alastrada no solo sangrento. O acampamento era um verdadeiro matadouro, alastrado por pedaços de carne e fragmentos de corpos – mãos, pés, cabeças e pedaços de ruínas humanas. Armas jaziam ao redor, algumas delas manchadas com um lodo esverdeado, como aquele que jorra de uma lagarta esmagada.

Nenhum inimigo humano conseguiria ter cometido atrocidade tão medonha. Olhei para o lago, me perguntando se inomináveis monstros anfíbios teriam rastejado das águas calmas, cujo azul intenso indicava profundezas insondáveis. Então, vi um rastro deixado pelo destruidor. Era como o rastro deixado por um verme titânico, com metros de largura, serpenteando pelo vale. A grama estava esmagada por onde ele correu, e pequenas árvores haviam sido derrubadas ao solo, tudo horrivelmente manchado de sangue e de lodo esverdeado.

Com uma fúria berserk em minha alma, puxei minha espada e comecei a segui-lo, quando um grito me chamou a atenção. Dei a volta, e vi uma forma atarracada que se aproximava de mim desde a aresta. Era Grom, o picto, e quando penso na coragem que deve ter sido necessária para ele vencer todos os instintos nele implantados pelos ensinamentos da tradição e experiência pessoal, percebo quão profunda era sua amizade por mim.

Agachado na margem do lago, com a lança nas mãos, seus olhos negros percorrendo, amedrontados, as meditativas e ondulantes extensões arborizadas do vale, Grom me falou do horror que havia caído sobre o clã de Bragi sob a lua. Mas primeiro ele me falou da coisa, tal como seus ancestrais lhe haviam narrado a história.

Há muito tempo, os pictos haviam chegado do noroeste, numa longa, longa viagem, finalmente alcançando estas colinas cobertas de selva, onde, por eles estarem cansados e por haver caça e frutos em abundância, e não haver tribos hostis, eles pararam e construíram suas aldeias de paredes de barro.

Alguns deles, um clã inteiro daquela tribo numerosa, estabeleceram sua residência no Vale das Pedras Quebradas. Encontraram as colunas, e um grande templo em ruínas entre as árvores, e naquele templo não havia santuário nem altar; apenas a boca de um poço que desaparecia nas profundezas negras da terra, e no qual não havia degraus como os que um ser humano faria e usaria. Construíram sua aldeia no vale e, à noite, sob a lua, o horror caiu sobre eles e só deixou paredes quebradas e pedaços de carne lambuzada de lodo.

Naqueles dias, os pictos nada temiam. Os guerreiros dos outros clãs se reuniram, cantaram suas canções de guerra, dançaram suas danças de guerra, e seguiram um grande rastro de sangue e lodo até a boca do poço no templo. Uivaram seu desafio e arremessaram matacões, aos quais nunca ouviram bater no fundo. Então, começou uma tênue e demoníaca música de flauta, e do poço se ergueu uma hedionda figura antropomórfica, dançando aos estranhos sons de uma flauta, à qual segurava com as mãos monstruosas. O horror de seu aspecto congelou os ferozes pictos com assombro e, logo atrás dele, uma enorme massa branca se ergueu da escuridão subterrânea. Do poço, saiu um babante e louco pesadelo, ao qual as flechas furavam, mas não conseguiam deter; ao qual as espadas cortavam, mas não conseguiam matar. Aquilo caiu babando sobre os guerreiros, esmagando-os até se tornarem polpas escarlates; rasgando-os em pedaços, como um polvo faria com pequenos peixes, sugando-lhes o sangue dos membros mutilados e devorando-os enquanto gritavam e lutavam. Os sobreviventes fugiram, perseguidos até a própria aresta, à qual o monstro, aparentemente, não conseguia impulsionar sua trêmula massa montanhosa.

Após isso, não ousaram entrar no vale silencioso. Mas os mortos vieram em sonhos aos seus xamãs e anciãos, e lhes contaram estranhos e terríveis segredos. Falaram de uma raça muito, muito antiga, de seres semi-humanos que outrora habitaram aquele vale e ergueram aquelas colunas, para seus próprios, estranhos e inexplicáveis propósitos. O monstro branco dos poços era o deus deles, convocado dos abismos noturnos do centro da terra, a profundezas incontáveis sob a terra negra, por uma feitiçaria desconhecida aos filhos dos homens. O peludo ser antropomórfico era seu servo, criado para servir o deus, um amorfo espírito elemental atraído das profundidades e envolto em carne – orgânico, mas além do entendimento da humanidade. Os Antigos haviam há muito desaparecido no limbo do qual rastejaram na aurora negra do universo, mas seu deus bestial e o escravo inumano deste ainda viviam. Contudo, ambos eram orgânicos, de certo modo, e poderiam ser feridos, embora nenhuma arma humana tenha sido poderosa o bastante para matá-los.

Bragi e seu clã haviam morado durante semanas no vale, antes do horror atacar. Só na noite anterior, Grom, caçando sobre os penhascos e se arriscando muito com isso, havia sido paralisado por uma aguda e demoníaca música de flauta, e logo, por um louco clamor de gritos humanos. Deitado de bruços sobre a lama e escondendo a cabeça num emaranhado de grama, ele não ousara se mover, mesmo quando os gritos estridentes morreram sob os babantes ruídos repulsivos de um banquete hediondo. Quando amanheceu, ele havia se arrastado, trêmulo, até os penhascos para olhar em direção ao vale; e o aspecto da devastação, mesmo visto de longe, o levara a uma fuga uivante colinas adentro. Mas finalmente lhe ocorrera que ele deveria avisar o resto de sua tribo; e, ao retornar, em seu caminho para o acampamento no planalto, ele havia me visto entrar no vale.

Assim falou Grom, enquanto eu estava sentado, meditando sombriamente, com o queixo apoiado em meu punho forte. Não consigo expressar, em palavras modernas, o sentimento de clã, que naqueles dias era uma parte viva de cada homem e mulher. Num mundo onde garras e presas se erguiam por toda parte, e as mãos de todos os homens se erguiam contra um indivíduo, exceto as de seu próprio clã, o instinto tribal era mais do que a frase que é hoje. Fazia parte de um homem, assim como seu coração ou sua mão direita. Isto era necessário, pois só assim, agrupados em bandos inquebráveis, a humanidade pôde sobreviver nos terríveis ambientes do mundo primitivo. Assim, a dor pessoal que eu sentia por Bragi e seus jovens de membros elegantes, e suas garotas sorridentes de pele branca, se afogava num mar mais profundo de mágoa e fúria, cuja intensidade era cósmica. Fiquei sombriamente sentado, enquanto o picto se acocorava ansiosamente ao meu lado, seu olhar perambulando, de mim até as profundezas ameaçadoras do vale, onde as malditas colunas avultavam como os dentes quebrados das velhas veias e risonhas, entre as extensões ondulantes de folhas.

Eu, Niord, não usava demais o cérebro. Eu vivia num mundo físico, e havia os velhos da minha tribo para pensarem por mim. Mas eu pertencia a uma raça destinada a se tornar dominante, tanto mental quanto fisicamente, e não era um mero animal musculoso. Assim, enquanto eu me sentava ali, surgiu tenuemente, e depois com clareza, um pensamento que trouxe uma breve e feroz risada aos meus lábios.

Erguendo-me, mandei que Grom me ajudasse, e construímos uma pira na margem do lago, feita com madeira seca, as estacas das tendas e as hastes quebradas das lanças. Então, recolhemos os fragmentos medonhos, que havia sido partes do bando de Bragi, os colocamos sobre a pilha e acendemos sílex e aço sobre ela.

A espessa fumaça triste subiu serpenteando em direção ao céu e, me voltando para Grom, fiz com que ele me guiasse para a selva onde se escondia aquele horror escamoso: Satha, a grande serpente. Grom ficou boquiaberto diante de mim; nem os maiores caçadores dentre os pictos iam em busca da grande criatura rastejante. Mas minha vontade era como um vento que o arrastava ao longo do meu curso e, por fim, ele seguiu adiante. Saímos do vale pela extremidade superior, cruzando a aresta, contornando os altos penhascos e mergulhando nas fortalezas do sul, povoadas somente pelos habitantes sombrios da selva. Adentramos profundamente a selva, até chegarmos a uma extensão de terras baixas, úmidas e escuras sob as grandes árvores enfeitadas por trepadeiras, onde nossos pés entravam profundamente no solo esponjoso, atapetado por vegetação apodrecida, e umidade viscosa transpirava para cima sob sua pressão. Este, Grom me disse, era o reino assombrado por Satha, a grande serpente.

Deixem-me falar de Satha. Não há nada igual a ela na terra de hoje, nem tem existido por eras incontáveis. Como o dinossauro carnívoro, como o velho dentes-de-sabre, era terrível demais para existir. Mesmo naquela época, era a sobrevivente de uma era mais sombria. Não havia então muitas de sua espécie, embora devam ter existido em grande número, na lama malcheirosa dos pântanos emaranhados por selvas, ainda mais distantes ao sul. Era maior que qualquer píton dos tempos modernos, e suas presas pingavam um veneno mil vezes mais mortífero que o de uma cobra-real.

Ela nunca foi adorada pelos pictos de sangue puro, embora os negros que vieram depois a tenham deificado, e essa adoração persistiu na raça híbrida que surgiu dos negros e seus conquistadores brancos. Mas, para outros povos, era o nadir de horror maligno, e as histórias sobre ela foram entrelaçadas com a demonologia. Assim, em eras posteriores, Satha se tornou o autêntico diabo das raças brancas, e os stígios primeiro a adoraram e depois, quando se tornaram egípcios, a abominaram sob o nome de Set, a Velha Serpente, enquanto para os semitas, ela se tornou Leviatã ou Satanás. Era terrível o suficiente para ser um deus, pois era uma morte rastejante. Já vi um elefante macho cair instantaneamente morto por causa da mordida de Satha. Já a vi, já a vislumbrei retorcer-se em seu caminho horripilante através da selva espessa, já a vi pegando sua presa, mas nunca a havia caçado. Era ameaçadora demais, mesmo para o matador do velho dentes-de-sabre.

Mas agora eu a caçava, mergulhando cada vez mais no quente e irrespirável mau-cheiro de sua selva, até onde sua amizade comigo não poderia obrigar Grom a ir mais longe. Ele insistiu que eu pintasse meu corpo e cantasse minha canção de morte, antes que eu avançasse mais, mas continuei meu caminho sem lhe dar atenção.

Num caminho natural, que serpenteava entre as árvores, fiz uma armadilha. Encontrei uma grande árvore, suave e com fibra esponjosa, mas de tronco espesso e pesado, e cortei sua base junto ao solo, com minha grande espada, dirigindo sua queda de modo que, ao cair, sua copa se espatifou nos galhos de uma árvore menor, deixando-a inclinada sobre a trilha – uma extremidade repousando na terra, e a outra presa na árvore menor. Então, cortei fora os galhos do lado interno e, talhando uma árvore nova, delgada e resistente, eu a aplainei e pus ereta como uma vara de apoio sob a árvore inclinada. Logo, cortando a árvore que o sustentava, deixei o grande tronco precariamente apoiado na estaca, na qual amarrei uma longa videira, tão grossa quanto meu pulso.

Então, segui sozinho através daquela selva primordial e crepuscular, até que um esmagador cheiro fétido me atacou as narinas e, da exuberante vegetação diante de mim, Satha ergueu sua cabeça horrenda, balançando fatalmente de um lado a outro, enquanto sua língua bifurcada entrava e saía, e seus grandes e terríveis olhos amarelos brilhavam gelidamente sobre mim, com toda a sabedoria maligna do negro mundo antigo que existia antes do homem. Recuei, sem sentir medo – apenas uma sensação gelada ao longo de minha espinha –, e Satha me seguiu sinuosamente, seu brilhante corpo cilíndrico de 24 metros ondulando sobre a vegetação putrefata num silêncio hipnotizador. Sua cabeça em forma de cunha era maior que a cabeça do mais gigantesco garanhão, seu tronco era mais grosso que o corpo de um homem, e suas escamas tremeluziam com mil cintilações mutáveis. Eu era para Satha como um camundongo é para uma cobra-real, mas eu tinha presas como nenhum camundongo jamais viu. Apesar de rápido, eu sabia que não conseguiria evitar o ataque relampejante daquela grande cabeça triangular; desse modo, não ousei deixá-la se aproximar demais. Astutamente, fugi pela trilha e, atrás de mim, a investida daquele grande corpo flexível era como o vento varrendo o capim.

Ela não estava muito atrás de mim, quando corri sob a armadilha mortal; e, quando a longa e grande forma brilhante deslizou sob ela, agarrei a vinha com ambas as mãos e puxei desesperadamente. Com um estrondo, o grande tronco caiu sobre as costas escamosas de Satha, a mais de um metro e oitenta de distância de sua cabeça em forma de cunha.

Eu esperava lhe quebrar a espinha, mas não acho que o fiz, pois o grande corpo se enrolava e emaranhava, a enorme cauda açoitava e batia, ceifando os arbustos como se fosse um mangual. No momento da queda, a enorme cabeça deu voltas rapidamente e golpeou a árvore com um impacto tremendo, as poderosas presas cortando madeira e cascas de árvores como cimitarras. Agora, como se consciente de que enfrentava um inimigo inanimado, Satha se voltou para mim, que estava fora de seu alcance. O pescoço escamoso se contorceu e arqueou, as poderosas mandíbulas se escancararam, revelando presas de 30 centímetros de comprimento, das quais pingava veneno capaz de queimar pedra sólida.

Acredito que, dada a sua força estupenda, Satha poderia se livrar do tronco, se não fosse por um galho partido que lhe afundara no lado, prendendo-a como uma farpa. O som de seu sibilar encheu a selva, e seus olhos me fitaram ferozmente, com tal ódio concentrado que estremeci, apesar de mim. Ah, ela sabia que fui eu que a capturara! Cheguei tão perto quanto me atrevi e, com um súbito e potente arremesso de minha lança, lhe atravessei o pescoço logo abaixo das mandíbulas escancaradas, cravando-a ao tronco de árvore. Então, me arrisquei muito, pois ela estava distante da morte, e eu sabia que ela podia, num instante, arrancar a lança da madeira e ficar livre para me atacar. Mas, naquele instante, corri até ela e, girando minha espada com toda a minha grande força, lhe decepei a terrível cabeça.

As arfadas e contorções da forma aprisionada de Satha em vida não eram nada, diante das convulsões mortais de sua forma sem cabeça. Bati em retirada, arrastando a gigantesca cabeça atrás de mim com uma vara curva, e, a uma distância segura da cauda que açoitava e esvoaçava, me pus a trabalhar. Trabalhei então com a morte nua, e nenhum homem já trabalhou mais cautelosamente que eu. Pois cortei fora os sacos de veneno na base das grandes presas, e, no terrível veneno, encharquei as pontas de onze flechas, tomando cuidado para que somente as pontas de bronze entrassem no líquido, o qual, de outro modo, teria corroído a madeira das setas resistentes. Enquanto eu fazia isto, Grom, impelido pela camaradagem e curiosidade, veio furtiva e nervosamente através da selva, e sua boca se abriu de surpresa, ao contemplar a cabeça de Satha.

Durante horas, embebi as pontas das flechas no veneno, até ficarem empastadas numa horrível escuma verde e mostrarem pequenas manchas de corrosão onde o veneno havia comido o sólido bronze. Eu as envolvi cuidadosamente em folhas largas, espessas e elásticas, e então, apesar da noite ter caído e os animais predadores rugirem por todos os lados, regressei pelas colinas cobertas de selva, junto com Grom, até que, ao amanhecer, chegamos novamente aos altos penhascos que avultavam sobre o Vale das Pedras Quebradas.

Na entrada do vale, quebrei minha lança, peguei todas as flechas não-envenenadas de minha aljava e as quebrei. Pintei meu rosto e membros, como os aesires o fazem somente quando se dirigem a uma morte inevitável, e cantei minha canção de morte ao sol que se erguia sobre os penhascos, minha cabeleira amarela soprada pelo vento matutino.

Então, desci para o vale, de arco na mão.

Grom não conseguiu avançar para me seguir. Deitou-se de bruços na poeira e uivou como um cão moribundo.

Passei pelo lago e pelo silencioso acampamento, onde as cinzas da pira ainda fumegavam, e passei sob as espessas árvores mais adiante. Ao meu redor, as colinas se erguiam – meras cabeças sem forma das devastações de eons cambaleantes. As árvores eram mais densas e, sob seus imensos galhos folhudos, a própria luz era escura e maligna. Como que na luz do crepúsculo, vi o templo em ruínas: muros ciclópicos que se erguiam de massas de alvenaria deteriorada e de blocos caídos de pedra. A mais de 540 metros diante dele, uma grande coluna se erguia na clareira – com uns 25 metros de altura. Estava tão gasta e esburacada pelas intempéries e tempo, que qualquer criança de minha tribo conseguiria subi-la, e ao vê-la, mudei meus planos.

Cheguei às ruínas e vi enormes muros esmigalhados, sustentando um teto abobadado do qual várias pedras haviam caído, de modo que parecia as costelas cobertas de líquen de algum esqueleto de monstro mítico se arqueando sobre mim. Colunas titânicas flanqueavam a soleira aberta, pela qual dez elefantes eram capazes de passarem lado a lado. Talvez, no passado, tenha havido inscrições e hieróglifos nos pilares e paredes, mas haviam sido gastos há muito tempo. Ao redor do grande salão, no lado interno, havia colunas em melhor estado de conservação. Em cada uma destas colunas, havia um pedestal achatado, e alguma tênue memória instintiva ressuscitou vagamente uma cena sombria, onde tambores negros rugiam loucamente, e, nestes pedestais, seres monstruosos se agachavam asquerosamente em rituais inexplicáveis, enraizados na negra aurora do universo.

Não havia altar... só a boca de um grande poço no chão de pedra, com estranhos entalhes obscenos ao redor de toda a beirada. Arranquei grandes pedaços de pedra do chão decomposto, e lancei-os ao poço que descia até a escuridão total. Eu as ouvi baterem nos lados, mas não as ouvi baterem no fundo. Lancei uma pedra após a outra, cada uma com uma praga causticante, e finalmente ouvi um som que não era o ruído decrescente das pedras que caíam. De dentro do poço, saiu flutuando uma estranha e demoníaca música de flauta, que era uma sinfonia de loucura. Lá embaixo, na escuridão, vislumbrei o tênue e medonho brilho de uma enorme massa branca.

Retirei-me lentamente, à medida que a música da flauta ficava mais alta, recuando através da enorme portada. Ouvi um ruído de arranhões e escalada; e, saindo de dentro do poço e cruzando a soleira entre as colunas colossais, apareceu uma incrível figura dançante. Estava ereta feito um homem, mas estava coberta de pêlo, o qual era mais espesso onde deveria estar sua face. Se tinha orelhas, nariz e boca, não os vi. Somente um par de arregalados olhos vermelhos miravam malignamente sob a máscara peluda. Suas mãos disformes seguravam um estranho conjunto de flautas, no qual soprava estranhamente, enquanto saracoteava em minha direção com muitas piruetas e saltos grotescos.

Atrás da criatura, ouvi um ruído repulsivo e obsceno, como o de uma massa trêmula e instável se erguendo do poço. Então, dispus uma flecha, puxei a corda e atirei a seta sibilante no peito peludo da monstruosidade dançante. Caiu como que atingida por um raio, mas, para meu horror, a música de flauta continuou, apesar das flautas terem caído das mãos deformadas. Então, dei a volta e corri velozmente até a coluna, na qual escalei antes de olhar para trás. Quando alcancei o pináculo, olhei e, por causa do choque e surpresa do que vi, quase caí da altura vertiginosa onde eu me encontrava.

O monstruoso morador da escuridão saiu do templo, e eu, que havia esperado um horror, o qual, apesar de tudo, estivesse moldado em alguma forma terrestre, contemplei uma cria de pesadelo. De qual inferno subterrâneo ele se arrastara há muito, muito tempo, eu não sei, e nem qual era negra aquilo representava. Mas não era um animal, como a humanidade conhece os animais. Eu o chamarei de verme, por falta de um termo melhor. Não há linguagem terrestre que tenha nome para ele. Só posso dizer que parecia mais com um verme do que com um polvo, uma serpente ou um dinossauro.

Era branco e polpudo, e arrastava sua massa trêmula pelo chão, como se fosse um verme. Mas tinha largos tentáculos achatados, antenas carnosas e outros anexos, cujo uso sou incapaz de explicar. E tinha uma longa tromba, que enrolava e desenrolava como a de um elefante. Seus 40 olhos, dispostos num círculo horrorizante, eram compostos por milhares de facetas, de tantas cores cintilantes, que mudavam e se alteravam numa interminável transmutação. Mas, durante aquela interação de cor e brilho, eles conservavam sua inteligência maligna... inteligência que se encontrava atrás daquelas facetas palpitantes, nem humana e nem sequer bestial, mas uma inteligência demoníaca nascida da noite, tal como os homens em sonhos sentem vagamente latejar de forma titânica, nos golfos negros fora de nosso universo material. Em tamanho, o monstro era gigantesco; seu volume sobrepujava o de um mastodonte.

Mas, mesmo enquanto eu estremecia com o horror cósmico da coisa, puxei uma seta emplumada até meu ouvido e lancei-a, sibilando em seu caminho. O capim e os arbustos foram esmagados enquanto o monstro vinha em minha direção, como uma montanha em movimento, e mandei flecha após flecha com força terrível e precisão mortal. Não podia errar um alvo tão enorme. As flechas afundaram até as plumas, ou sumiram de vista na massa instável, cada uma delas levando veneno suficiente para matar instantaneamente a um elefante macho. Mas ele continuou vindo, rápida e pavorosamente, aparentemente insensível tanto às flechas quanto ao veneno no qual estavam embebidas. E, o tempo todo, a música hedionda tocava um acompanhamento enlouquecedor, gemendo fracamente das flautas que jaziam intocadas no chão.

Minha confiança desapareceu; mesmo o veneno de Satha era inútil contra esta criatura estranha. Atirei minha última flecha, quase em cima da trêmula montanha branca, de tão próximo que o monstro estava de minha posição elevada. Então, sua cor mudou subitamente. Uma onda de medonho azul o percorreu, e a enorme massa se ergueu em convulsões semelhantes às de um terremoto. Com um terrível mergulho, ele golpeou a parte inferior da coluna, a qual se quebrou em fragmentos cadentes de pedra. Mas, no mesmo instante do impacto, saltei para longe e caí, através do ar, bem em cima das costas do monstro.

A pele esponjosa cedeu e afundou sob meus pés, e eu afundei minha espada até o cabo, arrastando-a dentro da carne polpuda e abrindo um horrível ferimento de quase um metro de comprimento, do qual escorreu um lodo verde. Então, o golpe de um tentáculo em forma de cabo me tirou das costas do titã, e me lançou, girando pelo ar, a mais de 90 metros de distância, para cair entre um grupo de árvores gigantes.

O impacto deve ter quebrado metade de meus ossos, pois, quando tentei agarrar novamente minha espada e me arrastar novamente ao combate, não consegui mover a mão nem o pé, só conseguindo me retorcer indefeso, com minhas costas quebradas. Mas pude ver o monstro, e sabia que eu o havia vencido, mesmo na derrota. A massa montanhosa arfava e se retorcia, os tentáculos açoitavam loucamente, as antenas se contorciam e emaranhavam, e a brancura nauseante havia se tornado um horrível verde pálido. Ele girou pesadamente e cambaleou de volta ao templo, balançando-se como um navio inutilizado numa onda pesada. As árvores foram despedaçadas e estilhaçadas, quando ele se moveu pesadamente contra elas.

Chorei de pura fúria, por não poder pegar minha espada e me lançar à morte, saciando minha loucura berserk com golpes poderosos. Mas o deus-verme estava mortalmente ferido, e não precisava de minha espada inútil. As flautas diabólicas sobre o chão continuavam com sua melodia infernal, que era como o lamento de morte do demônio. Então, enquanto o monstro girava e se debatia, eu o vi erguer o cadáver de seu escravo peludo. Por um instante, a forma simiesca pendeu no ar, envolvida pelo tentáculo em forma de tromba, e logo foi arremessada contra a parede do templo, com uma força que reduziu o corpo peludo a uma mera polpa disforme. Diante disso, as flautas guincharam horrivelmente e se calaram para sempre.

O titã cambaleou na beira do poço; então, outra mudança aconteceu nele – uma medonha transformação, cuja natureza não consigo descrever. Mesmo agora, quando tento pensar nela claramente, sou apenas caoticamente consciente de uma blasfema e antinatural transmutação de forma e substância, chocante e indescritível. Logo, a massa estranhamente alterada rolou para dentro do poço, até cair rodando para dentro da escuridão definitiva da qual veio, e eu sabia que estava morta. E, enquanto desaparecia no poço, com um gemido dilacerante e rangente, as paredes em ruínas estremeceram, do domo até a base. Elas se curvaram para dentro e se dobraram com uma repercussão ensurdecedora, as colunas se despedaçaram e, com um estrondo cataclísmico, o próprio domo caiu trovejando. Por um momento, o ar parecia velado com escombros voadores e pó de pedras, através dos quais os topos das árvores se agitavam loucamente, como numa tempestade ou numa convulsão de terremoto. Então, tudo ficou claro novamente e olhei, sacudindo o sangue de meus olhos. Onde o templo se erguia, havia apenas uma pilha colossal de alvenaria destruída e pedras quebradas, e todas as colunas no vale haviam caído, para jazerem em fragmentos despedaçados.

No silêncio que se seguiu, ouvi Grom pranteando uma nênia sobre mim. Mandei que ele colocasse minha espada em minha mão, e ele o fez e se inclinou perto de mim para ouvir o que eu tinha a dizer, pois eu estava morrendo rapidamente.

- Que a minha tribo se lembre. – eu disse, falando devagar – Que a história seja contada de aldeia em aldeia, de acampamento em acampamento, de tribo em tribo, de modo que todos os homens saibam que nem homem, nem fera nem demônio podem fazer de presa o povo de cabelos dourados de Asgard, e continuar a salvo. Que me construam um túmulo onde eu descanse com meu arco e espada à mão, para guardar este vale para sempre; assim, se o fantasma do deus que matei surgir das profundezas, o meu fantasma estará sempre pronto para combatê-lo.

E, enquanto Grom uivava e batia no peito peludo, a morte veio a mim, no Vale do Verme.






(*) – Goetterdaemmerung: “Crepúsculo dos deuses”, em Alemão (Nota do Tradutor).




Tradução: Fernando Neeser de Aragão.

Fonte: http://arthursclassicnovels.com/arthurs/howard/vallwo10.html
Compartilhar