A Rainha da Costa Negra - Parte 1

(por Robert E. Howard)



I
Conan Junta-se aos Piratas


Acredite em botões verdes despertos na primavera,
Que o outono pinta as folhas com um fogo sombrio;
Acredite que guardei meu coração inviolado
Para entregar a um só homem meu desejo ardente.
- A canção de Bêlit


O barulho dos cascos ecoou pela rua que descia para o ancoradouro. As pessoas que falavam alto, espalhadas por ali, só conseguiram ver de relance uma figura vestida com uma armadura de malha metálica, cavalgando um garanhão preto e a larga capa escarlate voando ao vento. Lá de cima da rua, vieram os gritos e o barulho dos cavalos em perseguição, mas o cavaleiro nem olhava para trás. Foi em disparada na direção do cais e segurou firme nas rédeas, fazendo o cavalo parar, apenas quando o animal estava a ponto de cair na água. Os marinheiros levantaram o olhar espantado para ele, interrompendo o trabalho de varrer e limpar as velas de uma galé de proa elevada e casco bastante largo. O timoneiro, um homem rústico e de barba negra, estava em pé na proa, afastando o barco do píer com um longo gancho. Ele gritou com raiva quando o cavaleiro desceu da sela e, com um longo salto, caiu bem no meio do convés.

— Quem o convidou para vir a bordo?

— Vamos embora! — gritou o intruso, com um gesto rápido que fez espirrar gotas vermelhas de sua espada de lâmina larga.

— Mas nós estamos a caminho das costas de Cush! — respondeu o timoneiro.

— Então, irei para Cush! Vamos depressa, eu repito! — O outro deu uma rápida olhada para a parte alta da rua, ao longo da qual cavalgava um grupo de cavaleiros; bem atrás deles, vinha um pelotão de arqueiros, de balestras nas costas.

— Você pode pagar sua passagem? — indagou o timoneiro.

— Eu pago meu caminho com aço! — gritou o homem de armadura, brandindo no ar a pesada espada, que refletia os raios do sol na lâmina azulada. — Em nome de Crom, homem, se não partir agora mesmo, eu vou inundar esta banheira com o sangue de sua tripulação!

O timoneiro sabia julgar as pessoas. Bastou um olhar mais atento para o rosto escuro e cicatrizado do espadachim, endurecido de ódio, para que ele gritasse uma ordem rápida, ao mesmo tempo em que empurrava com força contra os pilares de madeira do ancoradouro. A galé balançou e afastou-se para a água clara, e os remos começaram o seu movimento rítmico; então, um sopro de vento encheu a vela tremeluzente; o navio leve arremessou para a frente e assumiu seu curso como um cisne, ganhando velocidade a cada instante.

No cais, os cavaleiros sacudiam suas espadas ao alto e gritavam ameaças e ordens para que o barco regressasse, dizendo aos arqueiros para se apressar, antes que o navio se afastasse do alcance das flechas.

— Deixe que eles gritem — disse o espadachim, sorrindo duramente. — E procure manter o seu curso, timoneiro.

O timoneiro desceu do pequeno convés superior, passou por entre as duas filas de remadores e subiu para o convés intermediário. O estranho estava parado ali, de costas para o mastro, os olhos alertas e a espada em posição de prontidão. O marinheiro o examinou fixamente com o olhar, tomando todo cuidado para não fazer qualquer movimento brusco em direção à longa faca que trazia na cintura. Ele via um homem alto, de físico avantajado, com uma longa túnica negra de malha metálica, longas grevas polidas e um capacete de aço azul, decorado com chifres bem polidos de touro. A capa escarlate descia dos ombros protegidos pela armadura, e era soprada pela brisa do mar. Um cinturão largo, de couro cru, com uma fivela dourada, segurava a bainha da espada que ele empunhava. Debaixo do capacete de chifres, a cabeleira negra, em corte reto, contrastava com seus brilhantes olhos azuis.

— Já que vamos viajar juntos — disse o timoneiro —, é melhor que haja paz entre nós. Meu nome é Tito, mestre timoneiro licenciado nos portos de Argos. Estou a caminho de Cush, levando miçangas, seda, açúcar e espadas de cabo de metal para vender aos reis negros, em troca de marfim, azeite de coco, cobre, escravos e pérolas.

O espadachim olhou de volta para as docas que se afastavam depressa, e onde seus perseguidores continuavam gesticulando inutilmente, evidentemente tendo problemas para encontrar um barco rápido o bastante para alcançar a ligeira galera.

— Sou Conan, um cimério — respondeu ele. — Vim para Argos em busca de trabalho, mas, como não estão em guerra, nada havia para eu fazer aqui.

— Por que os guardas o estão perseguindo? — perguntou Tito. — Não que os seus problemas sejam da minha conta, mas eu pensei que talvez...

— Nada tenho a esconder — respondeu o cimério. — Em nome de Crom, quanto mais tempo eu passo entre vocês, pessoas civilizadas, menos consigo entender seus modos. Bom, ontem à noite, em uma taverna, um capitão da guarda real tentou violentar a garota de um jovem soldado que, naturalmente, o atravessou com a espada. Mas parece que existe uma maldita lei que impede de matar integrantes da guarda, de maneira que o rapaz e a moça fugiram. Andaram dizendo que me viram com eles e, assim, fui arrastado ao tribunal, e o juiz me perguntou onde o rapaz estava escondido. Respondi que, sendo ele meu amigo, não poderia traí-lo. Ficaram com raiva, e o juiz fez um demorado discurso sobre a minha responsabilidade para com o Estado e a sociedade, e outras coisas que eu nem entendi; e me ordenou que dissesse para onde meu amigo tinha fugido. Aí eu também comecei a ficar com ódio, porque já explicara minha posição mais de uma vez.

“Mas procurei me controlar e fiquei calado. O juiz acabou achando que eu tinha desrespeitado a corte, e que devia ser mandado para o calabouço e apodrecer lá até me decidir a trair meu amigo. Aí, vendo que todos eles estavam loucos, puxei minha espada e rachei a cabeça do juiz; então, abri caminho para fora do tribunal. Quando vi o cavalo de um oficial da guarda amarrado ali perto, montei e fugi em disparada para o porto, onde esperava encontrar um navio zarpando para alguma terra bem distante”.

— Muito bem — respondeu Tito —; os tribunais já me prejudicaram bastante nos processos que me moveram alguns comerciantes ricos, de maneira que não morro de amores por eles. Terei de responder a muitas perguntas se aportar de novo por aqui, mas não será difícil alegar que estou sendo forçado a ajudá-lo. É melhor você guardar a espada. Todos aqui somos marinheiros pacíficos, e não temos nada contra você. Além disso, há muitas vantagens em levar um guerreiro como você a bordo. Venha até o tombadilho da popa tomar um copo de cerveja comigo.

— Ótima idéia — respondeu o cimério, guardando a espada na bainha.


O Argus era um navio pequeno e resistente, uma típica embarcação de carga que fazia comércio entre os portos de Zingara e Argos e as costas do sul, navegando perto da costa e raramente se aventurando a entrar em mar aberto. Tinha uma popa elevada e a proa também alta e curvada. O casco era largo no meio, e se inclinava elegantemente de uma ponta a outra. O leme era uma longa alavanca na popa, e a propulsão principal vinha de uma larga vela de seda listrada, ajudada por uma bujarrona. Os remos eram usados para sair de enseadas e baías, e durante as calmarias. Eram dez de cada lado, cinco à frente e os outros cinco atrás do pequeno convés central. A parte mais preciosa da carga ficava armazenada debaixo desse convés e do tombadilho. Os homens dormiam no próprio convés ou entre os bancos dos remadores, protegidos por toldos de lona durante as tempestades. A tripulação completa era formada por vinte remadores, três marinheiros de proa e o mestre timoneiro.

Então o Argus navegou firme rumo ao sul, com tempo bom. O sol brilhava dia após dia, com um calor cada vez mais feroz, e os toldos foram fechados. Eram peças de seda listrada, que combinavam com a vela tremeluzente e com os apetrechos de metal dourado na proa, e ao longo das laterais do casco.

Logo avistaram as costas de Shem – longas pradarias ondulantes, com as coroas brancas das torres das cidades à distância, e cavaleiros com barbas preto-azuladas e narizes curvos, parados ao longo da praia, examinando a galera com um ar de suspeita no olhar. O barco não baixou âncoras. Afinal, havia pouco lucro no comércio com os filhos de Shem.

O mestre timoneiro Tito tampouco baixou âncora na grande baía onde o rio Styx despejava suas enormes cheias no oceano, e onde os enormes castelos negros de Khemi avultavam sobre as águas azuis. Nenhum navio entrava sem ser convidado nesse porto, onde feiticeiros de pele escura conjuravam sua terrível magia, na escuridão da fumaça sacrifical que subia eternamente de altares manchados de sangue, sobre os quais mulheres nuas gritavam, e onde se dizia que Set, a Antiga Serpente, arqui-demônio dos hiborianos mas deus dos stígios, retorce seus anéis brilhantes entre os seus adoradores.

Mestre Tito manteve-se à distância daquela baía sonolenta, de águas calmas, mesmo quando uma gôndola com proa de serpente apareceu de trás de um ponto fortificado da terra, e escuras mulheres nuas, com grandes flores vermelhas nos cabelos, chamavam os seus marinheiros, com poses e gestos ardentes e voluptuosos.

Já não se viam torres brilhantes erguendo-se no continente. Eles haviam passado pelas fronteiras do sul da Stygia, e agora navegavam ao longo das costas de Cush. O mar e os costumes do mar eram mistérios impenetráveis para Conan, cuja terra natal encontrava-se situada no meio das altas colinas das terras do norte. Por sua vez, o estrangeiro também despertava a curiosidade daqueles robustos homens do mar, a maioria dos quais jamais vira uma pessoa de sua raça.

Aqueles eram típicos marinheiros argoseanos – homens de baixa estatura e corpo forte. Conan era mais alto do que todos eles, e nenhum tinha tanta força como ele. Os navegadores eram duros e robustos, mas Conan tinha a resistência e vitalidade de um lobo, e suas qualidades físicas e seus nervos de aço tinham a têmpera da vida difícil que levara pelas terras inóspitas do mundo. Ria com facilidade, mas também era fácil e terrível o seu ódio, quando provocado. Comia com voracidade, e tinha paixão e até fraqueza pelas bebidas fortes. Ingênuo como uma criança em muitas coisas, e não-familiarizado com a sofisticação da civilização, era naturalmente inteligente, zeloso dos seus direitos, e perigoso como um tigre faminto. Embora ainda jovem, era endurecido por guerras e perambulações, e sua estada em muitas terras era evidente em seu vestuário. O capacete com chifres era do mesmo tipo usado pelos aesires de cabelos dourados de Nordheim; sua cota-de-malha e grevas eram da mais fina manufatura de Koth; a armadura que protegia seus braços e pernas vinha da Nemédia; a lâmina que trazia pendurada à cintura era uma larga espada aquiloniana; e sua maravilhosa capa escarlate só poderia ter sido tecida em Ophir.

Eles continuavam navegando rumo ao sul, quando mestre Tito começou a procurar pelas aldeias de altas paliçadas dos povos negros. Mas só encontraram ruínas fumegantes, na praia de uma baía, alastrada de desnudos corpos negros. Tito praguejou.

— Já realizei excelente comércio com esta gente. Isto é obra de piratas.

— E se nos encontrarmos com eles? — perguntou Conan, desatando a tira que prendia sua espada na bainha.

— Meu navio não está preparado para batalhas. Nós fugimos e não lutamos. Mas, se não tiver outro jeito... já enfrentamos esse tipo de ladrões antes, e talvez o façamos de novo. A menos que tenha sido o Tigresa de Bêlit.

— Quem é Bêlit?

— A pior demônia não-enforcada. Se eu não estiver enganado, foram os carniceiros dela que destruíram a aldeia na baía. Espero vê-la um dia enforcada num mastro. É chamada de Rainha da Costa Negra. Uma mulher shemita, que lidera piratas negros. Atacam e saqueiam os barcos, e já mandaram muitos bons comerciantes para o fundo do mar.

De baixo do tombadilho Tito trouxe alguns coletes acolchoados, gorros de aço, arcos e flechas.

— Isto não vai adiantar muito, se formos atacados — ele resmungou. — Mas é contra a nossa natureza nos entregarmos sem lutar.


Foi logo ao erguer do sol que a sentinela deu o aviso. Ao redor da longa extremidade de uma ilha, a estibordo, apareceu uma forma longa e letal, uma galera esguia e em forma de serpente, com um convés elevado estendendo-se de popa a proa. Quarenta remos de cada lado a faziam deslizar rapidamente sobre a água, e suas laterais baixas estavam repletas de negros nus, que cantavam e batiam suas lanças em escudos ovais. No mastro principal flutuava um longo pendão vermelho.

— Bêlit! — gritou Tito, horrorizado. — Preparem-se! Vamos dar a volta e tentar entrar por aquele rio! Se conseguirmos chegar até lá antes que nos alcancem, teremos uma chance de escapar com vida!

Assim, com um giro rápido, o Argus correu na direção das ondas que quebravam ao longo da praia delimitada por uma linha de palmeiras, enquanto Tito andava a passos largos de um lado para outro, incitando os ofegantes remadores para que se esforçassem ainda mais. A barba negra do comandante estava eriçada, e seus olhos brilhavam.

— Dêem-me um arco! — pediu Conan. — Não é a minha idéia de arma de homem, mas aprendi a atirar entre os hirkanianos, e vai ser um desperdício eu morrer sem levar comigo pelo menos um ou dois homens daquele convés.

Em pé sobre a popa, ele ficou observando o barco com aparência de serpente que singrava as águas com grande leveza e, embora vivesse em terra, estava claro para ele que o Argus jamais conseguiria ganhar aquela corrida. Flechas, lançadas do convés dos piratas, já assobiavam no ar e caíam a menos de vinte passos atrás deles.

— Acho melhor nos prepararmos para o combate — resmungou o cimério —; do contrário, vamos todos morrer com flechas nas costas, sem devolver um golpe sequer.

— Força nos remos, cães! — berrou Tito, com os punhos cerrados. Os remadores barbados gemiam, arquejando sobre os remos, enquanto seus músculos formavam verdadeiros nós de cãibra e o suor brotava de suas peles. As vigas de madeira da pequena e robusta galera rangiam e gemiam sob o esforço sobre-humano dos homens, fazendo-a cortar à força as águas do mar. O vento tinha diminuído, e a vela estava murcha. Os inexoráveis perseguidores chegavam cada vez mais perto, e o Argus ainda estava a mais de uma milha da rebentação, quando um dos homens no leme tombou sufocado pela lateral do barco, com uma longa flecha enfiada no pescoço. Tito correu para o lugar dele e Conan ergueu seu arco, abrindo as pernas fortes para equilibrar-se sobre o tombadilho de popa alta. Agora conseguia ver com clareza os detalhes da expressão de cada um dos piratas. Os remadores deles estavam protegidos por uma linha de cobertura ao longo das laterais do casco, mas os guerreiros que dançavam sobre o estreito convés estavam bem à vista. Tinham o corpo pintado e enfeitado com penas, estavam quase todos nus, e brandiam no ar as suas lanças e os escudos manchados.

Sobre a plataforma que se erguia acima dos remos, havia uma figura magra, cuja pele branca destacava-se em franco contraste com as brilhantes peles de ébano ao seu redor. Bêlit, sem dúvida. Conan esticou a corda do arco até a orelha – então, algum capricho, ou náusea, parou sua mão e mandou a flecha para atravessar o corpo de um lanceiro alto e emplumado, ao lado dela.

Cada vez mais próxima, a galé dos piratas estava alcançando o navio mais leve. Flechas caíram ao redor do Argus, e os homens gritaram. Todos os timoneiros tombaram, com os corpos crivados de flechas, e Tito se viu sozinho no controle do barco, gritando palavrões de ódio, com as pernas firmadas em cãibra por causa do esforço dos tendões. Então, com um gemido, ele também tombou, com uma longa seta atravessada no coração robusto. O Argus ficou desgovernado sobre as ondas. Os homens gritaram, confusos, e Conan assumiu o comando, de um jeito que lhe era peculiar.

— Vamos, rapazes! — ele gritou para os remadores, lançando ruidosamente uma flecha. — Apanhem suas armas e vamos dar alguns golpes nesses cães, antes que cortem nossas gargantas! Não adianta continuar remando. Eles vão nos abordar antes que consigamos navegar mais cinqüenta passos!

Em desespero, os marinheiros abandonaram seus remos e agarraram as armas. Era uma atitude valente, mas inútil. Teriam tempo para lançar só uma flecha cada um, antes que os piratas caíssem sobre eles. Como não havia ninguém no leme, o Argus girou para um dos lados, e a proa do barco pirata, reforçada com um bico de aço, atingiu a parte central do seu casco. Os ganchos de abordagem do Tigresa prenderam-se às pranchas de madeira de sua lateral. De cima do convés elevado, os piratas negros lançaram uma descarga de setas, as quais penetraram nos coletes acolchoados dos marinheiros. Depois, de lanças nas mãos, saltaram para baixo, para completar a carnificina. Sobre o convés do barco dos piratas contava-se meia-dúzia de guerreiros mortos, o importante resultado da habilidade de Conan com o arco.

O combate no Argus foi rápido e sanguinário. Os atarracados marinheiros, que não eram ameaça para os bárbaros de estatura elevada, foram mortos até o último homem. Mas, num determinado lugar do convés, a batalha tomava outro rumo. Instalado sobre o elevado tombadilho, Conan estava no mesmo nível do convés dos piratas. Quando a proa de aço batera contra o casco do Argus ele conseguira agarrar-se e manter-se em pé, atirando o arco para longe. Um enorme corsário lançou-se sobre o parapeito inimigo e foi atingido em pleno ar pela grande espada do cimério, que separou seu corpo em duas metades, de maneira que o tronco caiu para um lado, e as pernas para outro. Então, com uma explosão de fúria que deixou um rastro de corpos dilacerados ao longo do convés, Conan saltou sobre o parapeito e chegou ao convés do Tigresa.

Num instante, ele tornou-se o centro de um furacão de lanças cortantes, e pesados bastões. Mas movia-se rápido, como o ofuscante brilho do aço de sua espada. As lanças vergavam contra sua armadura ou assobiavam no vazio do ar, enquanto a espada entoava seu canto de morte. Sobre ele, pairava a loucura combativa de sua raça, e com uma cortina vermelha de fúria insensata ondulando sobre seus olhos ardentes, ele arrebentava crânios, despedaçava peitos, arrancava membros, rasgava entranhas, transformando o convés num depósito de miolos e de sangue.

Invulnerável em sua armadura, com as costas voltadas para o mastro, ele amontoava cadáveres mutilados aos seus pés, até que os inimigos recuaram, ofegantes de ódio e medo. Então, ao levantarem suas lanças para atingi-lo, ao mesmo tempo em que ele retesava seus músculos, pronto para saltar e morrer no meio deles, um grito estridente congelou os braços erguidos dos lanceiros. Ficaram todos como estátuas, os guerreiros negros preparados para atirar suas lanças, e o gigante de armadura com a espada pingando sangue.

Bêlit saltou na frente dos negros, derrubando suas lanças. Voltou-se para Conan, com o peito arfando, os olhos brilhando intensamente. Grandes e terríveis dúvidas tomaram conta do seu coração. Ela era esbelta, mas parecida com uma deusa. Era ao mesmo tempo maleável e voluptuosa. A única roupa que vestia era uma faixa larga, de seda. Seus membros brancos como o marfim, e as esferas alvas de seus seios, provocaram um choque de paixão feroz que pulsou em suas veias, mesmo durante a ofegante fúria da batalha. A rica cabeleira negra, tão escura quanto uma noite stígia, caía em brilhantes cachos ondulados sobre suas costas macias. Os olhos negros pareciam queimar sobre o cimério.

Ela era tão indomável como o vento do deserto, delicada e perigosa como uma pantera. Aproximou-se dele, sem dar atenção à enorme espada, ainda manchada com o sangue dos piratas dela. Seus quadris lisos e delicados esfregaram na lâmina. Seus lábios vermelhos se entreabriram quando seu olhar se fixou nos sombrios e ameaçadores olhos do cimério.

— Quem é você? — ela indagou. — Por Ishtar, jamais vi alguém como você, apesar de ter navegado pelos mares desde as costas de Zingara até o fogo do extremo sul. De onde você vem?

— De Argos — ele respondeu brevemente, preparado para qualquer possibilidade de um ataque traiçoeiro. Bastaria que as mãos delicadas fizessem um só movimento em direção ao punhal que ela levava na cinta de seda, para que um golpe de sua enorme mão aberta a derrubasse sem sentidos sobre o convés. Mas, no fundo do seu coração, ele não sentia medo. Já segurara tantas mulheres civilizadas e bárbaras em seus poderosos braços, que tinha certeza de reconhecer o fogo que ardia nos olhos daquela.

— Você não é nenhum hiboriano molóide — exclamou ela. — É tão feroz e durão quanto um lobo cinzento. Esses olhos jamais foram ofuscados pelas luzes de uma cidade. Seus músculos nunca foram afrouxados pela vida entre paredes de mármore.

— Eu sou Conan, um cimério — respondeu ele.

Para aquela gente dos climas exóticos, o norte era um reino confuso, meio mítico, habitado por gigantes ferozes, de olhos azuis, que ocasionalmente desciam de suas fortalezas geladas, armados de tochas e espadas. Eles jamais haviam ido tão ao sul a ponto de chegar a Shem, e aquela filha de Shem não sabia distinguir entre os aesires, os vanires ou os cimérios. Com o seu certeiro e elementar instinto feminino, ela sabia ter encontrado o seu amante, e a raça dele não tinha significado algum, embora conferisse a ele o fascínio de terras distantes.

— E eu sou Bêlit! — ela gritou, como alguém que diz: “Eu sou rainha!”. Abriu os braços e continuou: — Olhe para mim, Conan. Sou Bêlit, a rainha da Costa Negra. Ó tigre do Norte, você é tão frio como as montanhas de neve que o viram crescer. Abrace-me e me possua com o seu amor feroz! Venha comigo para os confins da terra e os extremos do mar! Eu sou uma rainha por fogo, aço e morte... Seja o meu rei!

O olhar dele percorreu as fileiras ensangüentadas, à procura de alguma expressão de ódio ou ciúme. Não viu nenhuma. A fúria desaparecera daquelas faces de ébano. Ele entendeu que, para aqueles homens, Bêlit era mais do que uma mulher: era uma deusa, cuja vontade era inquestionável. Ele olhou de relance para o Argus, rolando sobre o mar avermelhado, tombado para um dos lados, o convés alcançado pelas ondas, seguro pelos ganchos de abordagem do navio pirata. Seu olhar voltou-se para a praia azulada na distância, para as distantes névoas verdes do oceano, para a vibrante figura que se erguia à sua frente. E sua alma bárbara agitou-se dentro dele. Seria emocionante aventurar-se por aqueles ofuscantes reinos azulados com aquela jovem felina de pele branca, amar, rir, perambular e pilhar...

— Navegarei com você — resmungou ele, agitando as gotas de sangue da espada.

— Ho, N’Yaga! — a voz dela vibrou como a corda de um arco. — Traga ervas para curar as feridas de seu mestre! Os outros tragam a bordo os espólios do combate, e vamos partir.

Enquanto Conan permanecia sentado de costas para a grade de proteção da popa, e o velho xamã cuidava dos cortes que ele tinha nas mãos e nos membros, a carga do malfadado Argus era rapidamente transferida para o Tigresa e armazenada em pequenas cabines no porão. Os corpos dos membros da tripulação e dos piratas mortos foram atirados ao mar, e ali mesmo devorados pelos tubarões, enquanto os negros feridos recebiam os curativos necessários. Então, os ganchos de abordagem foram retirados e, enquanto o Argus afundava silenciosamente nas águas manchadas de sangue, o Tigresa partia em direção ao sul, em meio ao barulho ritmado dos remos que o impulsionavam.

Enquanto partiam pelas espelhadas águas azuis, Bêlit veio para a popa. Seus olhos brilhavam como os de uma pantera no escuro, quando ela arrancou os ornamentos, as sandálias e a faixa de seda, e lançou tudo aos pés de Conan. Levantando o corpo sobre as pontas dos pés, os braços erguidos ao alto – uma linha trêmula, branca e nua –, ela gritou para a horda de piratas:


— Lobos do mar azul, observai agora a dança... a dança de acasalamento de Bêlit, cujos ancestrais foram os soberanos de Askalon!

E ela dançou, girando como um redemoinho do deserto, saltando como uma labareda impossível de apagar, como o desejo da criação e o ímpeto da morte. Seus pés brancos pisavam com desprezo o convés manchado de sangue, e os moribundos esqueceram-se da morte, com os olhos vidrados sobre ela. Então, quando as estrelas brancas já começavam a brilhar no aveludado firmamento, acima do poente, fazendo o corpo que rodopiava parecer apenas uma mancha de fogo branco, ela atirou-se aos pés de Conan com um grito selvagem, e a inundação cega do desejo do cimério tomou conta de todos os seus sentidos, e ele apertou aquele corpo arquejante contra as escamas negras da malha que lhe protegia o peito.



Tradução: Silvio Alexandre.

Revisão: Fernando Neeser de Aragão.




A Seguir: Abombi.


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