O Reino das Sombras

por Robert E. Howard


1) Um rei chega a cavalo

O estrondo dos trompetes se fez mais forte, como uma profunda maré dourada, como o suave trovejar das ondas noturnas sobre as praias prateadas da Valúsia. A multidão gritava, as mulheres jogavam flores do alto dos telhados, e o repicar rítmico dos cascos de prata ia se aproximando, até que o início do poderoso desfile apareceu à vista na larga e branca avenida que rodeava a Torre do Esplendor, com seus capitéis dourados.

Primeiro vinham os trombeteiros, jovens delgados vestidos de escarlate, montados a cavalo, fazendo soarem longas e delgadas trombetas douradas; em seguida, os arqueiros, homens altos das montanhas; e atrás deles, avançavam os homens a pé, pesadamente armados, com seus largos escudos repicando em uníssono, com as longas lanças oscilando num ritmo perfeito, ao compasso de sua marcha. Atrás deles, apareceram os soldados mais poderosos do mundo, os Matadores Vermelhos, montados em esplêndidos cavalos, ostentando suas armaduras, vermelhas desde o capacete até as esporas. Montavam com expressão de orgulho e o olhar dirigido para a frente, mas bem conscientes de toda a gritaria que se precipitou à sua passagem. Eram como estátuas de bronze e, em nenhum momento, se pôde observar a menor oscilação na floresta de lanças que se elevava acima deles.

Atrás daquelas fileiras terríveis e orgulhosas, vieram os mercenários, guerreiros ferozes e de aspecto selvagem, homens de Mu e Kaa-u, e das colinas do leste e ilhas do oeste. Iam armados com lanças e longas espadas, e formavam um grupo compacto que marchava um pouco à parte dos arqueiros da Lemúria. Seguia-lhes a leve infantaria da nação, e encerrava o desfile um novo grupo de trombeteiros.

Um espetáculo magnífico, capaz de causar um feroz estremecimento na alma de Kull, rei da Valúsia, que não se encontrava sentado no trono-topázio, situado em frente à régia Torre do Esplendor, mas montado em seu grande cavalo, como um verdadeiro rei-guerreiro. Seu poderoso braço se elevava em resposta à saudação de seus homens, à medida que estes passavam diante dele. Seus olhos ferozes contemplaram quase com indiferença aos alegres trombeteiros, pararam e seguiram por mais tempo os soldados, e relampejaram com um brilho feroz quando os Matadores Vermelhos pararam diante dele, fazendo soar as armas e recuar os corcéis, para lhe apresentarem a saudação devida à Coroa. Os olhos de Kull se estreitaram ligeiramente ante a passagem dos mercenários, que não costumavam saudar ninguém. Marchavam com os ombros lançados para trás, e olharam Kull diretamente, com ousadia, ainda que também com certo apreço; eram olhos cruéis que não vacilavam; olhos selvagens que miravam por baixo de sobrancelhas e cabeleiras abundantes.

E Kull lhes devolveu um olhar semelhante. Agradavam-lhe os homens valentes, e não havia no mundo homens mais valentes que eles, nem sequer entre as tribos selvagens que agora o renegavam. Mas Kull era impiedoso demais para sentir qualquer afeição por aquelas tribos. Havia feudos demais. Muitos deles eram antigos inimigos da nação de Kull e, embora o nome de Kull fosse agora maldito entre as montanhas e vales de seu povo, e ele tivesse tentado tirá-los de sua mente, ainda permaneciam os velhos ódios e antigas paixões. Porque Kull não era valusiano, mas atlante.

Os exércitos sumiram de vista, do outro lado da Torre do Esplendor, resplandecente de gemas, e Kull fez girar o seu cavalo e dirigiu-se para o palácio, fazendo o animal avançar a passo lento, enquanto falava da vistoria das tropas com os comandantes que cavalgavam a seu lado. Em sua forma de se expressar, não usava muitas palavras, mas dizia muito.

- O exército é como uma espada – disse Kull –, e não devemos permitir que enferruje.

Cavalgaram lentamente pela ampla avenida, sem que Kull prestasse a menor atenção aos rumores, que lhe chegavam da multidão que ainda abarrotava as ruas.

- Esse é Kull! Está vendo? Por Valka! Que rei! E que homem! Observe seus braços! Veja que ombros tem!

E tampouco, ele prestou atenção a outra categoria de sussurros, expressados em tons mais baixos:

- Kull! Hah! O maldito usurpador que veio das ilhas pagãs... É uma vergonha para a Valúsia, que um bárbaro tenha se instalado no trono dos reis.

Esses comentários pouco importavam a Kull. Ele havia se apoderado, com mãos firmes, do trono em decadência da antiga Valúsia, e agora sustentava a coroa com mãos ainda mais firmes, como um homem contra uma nação.

Ele chegou à sala do conselho, o palácio social onde respondia às frases formais e elogios das damas e cavalheiros, divertido ante tais frivolidades, ainda que se preocupasse em escondê-lo cuidadosamente. Logo, as damas e cavalheiros se despediram formalmente, Kull se reclinou sobre o trono de arminho e se dedicou ao estudo das questões de estado, até que um auxiliar solicitou permissão para falar diante do grande rei e, após recebê-lo, anunciou a chegada de um emissário da embaixada picta.

Kull afastou seus pensamentos do complicado labirinto das questões do governo da Valúsia, e contemplou o picto com expressão pouco amistosa. O homem lhe devolveu o olhar sem piscar sequer. Era um guerreiro de quadris ágeis e peito maciço, de estatura mediana, estrutura forte e pele escura, como todos de sua raça. Naqueles traços fortes e imóveis, se sobressaíam olhos impávidos e inescrutáveis.

- Ka-nu, chefe dos conselheiros e mão direita do rei dos pictos, lhes envia suas saudações e diz: “Na festa da lua cheia, há um trono para Kull, rei de reis, senhor entre os senhores, imperador da Valúsia”.

- Bem. – respondeu Kull – Diga ao velho Ka-nu, embaixador das ilhas ocidentais, que o rei da Valúsia beberá vinho com ele, quando a lua brilhar sobre as montanhas de Zalgara.

O picto, no entanto, não foi embora.

- Tenho algo a dizer ao rei, algo não apropriado para os ouvidos destes escravos. – disse, com um gesto depreciativo da mão aos presentes.

Kull despachou seus auxiliares com uma única palavra, e observou cautelosamente o picto. O homem se aproximou dele um pouco mais e baixou o tom de sua voz.

- Venha a sós esta noite, para a festa. Foram essas as palavras de meu chefe.

Os olhos do rei se estreitaram e brilharam friamente, como espadas de aço cinza.

- A sós?

- Sim.

Olharam um ao outro, em silêncio, com sua mútua inimizade tribal disfarçada sob a capa de formalidade que rodeava o encontro. Suas bocas falavam a linguagem civilizada, expressavam as frases convencionais da corte de uma raça muito civilizada que não era a sua, mas nos olhos de ambos podia-se observar as tradições primitivas de uma selvageria elementar. Kull poderia ser o rei da Valúsia, e o picto, um emissário diante de sua corte. Mas ali, no salão do reino, só havia dois homens tribais que se olhavam com ferocidade e cautela, enquanto os fantasmas das guerras selvagens e dos feudos antigos continuavam sussurrando em suas mentes.

O rei, contudo, tinha a vantagem de sua posição e desfrutava-a plenamente. Com o maxilar apoiado numa das mãos, observou o picto, que permaneceu diante dele como uma estátua de bronze, com a cabeça jogada para trás e os olhos imperturbados.

Sobre os lábios de Kull se estendeu um sorriso.

- Então, você quer que o rei vá assim, sozinho?

A civilização havia lhe ensinado a falar de forma indireta. Os olhos escuros do picto brilharam, mas ele não disse nada.

- E como o rei sabe que você é emissário de Ka-nu?

- Eu o falei. – foi a áspera resposta.

- E desde quando um picto diz a verdade? – zombou Kull, sabendo perfeitamente que os pictos não mentiam nunca, mas utilizando seu comentário como forma de irritar o homem.

- Percebo seu plano, meu rei. – disse o picto, com expressão imperturbável – Você deseja me irritar. Por Valka, que não precisa se esforçar muito! Já me sinto irritado o bastante. E lhe desafio a me enfrentar num duelo, com espada, lança ou adaga, seja a pé ou a cavalo. Sois um rei ou um homem?

Nos olhos de Kull surgiu aquela admiração, que um guerreiro se vê obrigado a sentir de má-vontade diante de um inimigo tão direto, mas não desperdiçou a oportunidade de aborrecer um pouco mais o seu antagonista.

- Um rei não aceita o desafio de um selvagem sem nome – ele alfinetou –, e tampouco o imperador da Valúsia rompe a trégua devida aos embaixadores. Tem minha permissão para partir. Diga a Ka-nu que irei só.

Os olhos do picto brilharam com uma expressão assassina. Evidentemente, estava possuído pela ânsia primitiva de sangue; após um instante, virou as costas ao rei da Valúsia, cruzou a sala do trono e desapareceu do outro lado da enorme porta.

Kull voltou a se reclinar sobre o trono de arminho e retomou sua meditação.

Quer dizer que o chefe do conselho dos pictos queria que ele comparecesse sozinho? Mas por qual motivo? Seria uma traição? Com expressão carrancuda, Kull levou a mão ao cabo de sua grande espada. Mas não, isso não podia ser. Os pictos valorizavam demais a aliança com a Valúsia, para rompê-la por qualquer razão feudal. É verdade que Kull fora um guerreiro da Atlântida e inimigo hereditário de todos os pictos, mas ele também era rei da Valúsia, o mais poderoso aliado dos homens do ocidente.

Meditou durante longo tempo sobre aquela estranha situação, que havia terminado por transformá-lo em aliado de antigos inimigos, e em inimigo de antigos amigos. Levantou-se e caminhou, inquieto, pelo salão, com os passos rápidos e silenciosos de um leão.

Havia quebrado as correntes da amizade, da tribo e da tradição para satisfazer sua ambição. E, por Valka, deus dos mares e da terra, que ele havia cumprido suas ambições! Havia se transformado em rei da Valúsia, uma nação em decadência e degeneração, que vivia em sonhos graças às glórias do passado, mas que continuava sendo um território poderoso, e o maior dos Sete Impérios. Valúsia, o Reino dos Sonhos, como chamavam-na os homens das tribos. Às vezes, Kull tinha a sensação de mover-se como num sonho.

Lhe eram estranhas as intrigas da corte e do palácio, do exército e do povo. Tudo aquilo lhe parecia uma farsa, na qual homens e mulheres ocultavam seus verdadeiros pensamentos atrás de uma máscara de suavidade. E, no entanto, lhe fora relativamente fácil apoderar-se do trono, um simples aproveitamento da oportunidade que se lhe apresentou, o rápido giro das espadas, o assassinato de um tirano do qual os homens estavam mortalmente fartos, a conspiração rápida e poderosa, com ambiciosos homens de estado que haviam perdido os benefícios da corte... só isso bastara para que Kull, o aventureiro errante, o exilado atlante, se elevasse até as alturas mais vertiginosas de seus próprios sonhos, se transformasse no senhor da Valúsia, no rei dos reis.

Agora, no entanto, parecia que se apoderar do trono lhe fora mais fácil que conservá-lo. A imagem daquele picto despertara, em sua mente, velhas associações juvenis, a violência livre e selvagem de sua juventude. E agora, uma estranha sensação de inquietude, de irrealidade, ia ultimamente se apoderando dele. Quem era ele, um homem dos mares e das montanhas, para governar uma raça que conhecia os estranhos e terríveis misticismos da antiguidade? Uma raça antiga que...

- Sou Kull! – exclamou de repente, lançando a cabeça para trás como um leão, fazendo ondular sua cabeleira – Sou Kull!

Seu olhar de falcão percorreu o salão inteiro. Recuperou novamente a confiança em si mesmo... E, num nicho escuro do salão, um tapete se moveu... ligeiramente.


2) Assim falaram os silenciosos salões da Valúsia


A lua ainda não havia se elevado, e o jardim se encontrava iluminado por tochas, quando Kull se sentou no trono, diante da mesa de Ka-nu, embaixador das ilhas ocidentais. À sua direita se sentava o ancião picto, tão diferente de como poderia ser qualquer emissário daquela raça feroz. Porque, de fato, Ka-nu era ancião e sábio em questões de estado. Envelhecera praticando esse jogo.

Não havia nenhum ódio evidente em seus olhos, que observavam Kull com expressão agradável; seu bom juízo não se via dificultado por nenhuma tradição tribal. Aquele tipo de teia-de-aranha havia sido eliminado, graças à sua prolongada associação com os homens de estado das nações civilizadas. A pergunta que sempre surgia na mente de Ka-nu não era: “Quem e o que é este homem?”, mas primeiramente: “Posso utilizar este homem, de que forma?”. Quanto aos prejuízos tribais, ele os utilizava unicamente em benefício de seus próprios planos.

Kull observou Ka-nu, respondendo brevemente suas perguntas, enquanto se perguntava se a civilização não estava lhe transformando em alguém como os pictos, porque Ka-nu era suave e barrigudo. Já havia se passado muitos anos desde a última vez que Ka-nu segurara uma espada. Claro que ele agora era velho, mas Kull tinha visto outros de maior idade lutando na vanguarda das batalhas. Os pictos eram uma raça de longevos. Ao lado de Ka-nu havia uma bela moça, dedicada a encher-lhe a taça, e por Valka que não deixava de ter trabalho. Enquanto isso, Ka-nu mantinha um verdadeiro rio de piadas e comentários, e Kull, apesar de sentir por dentro um certo desprezo por tanta tagarelice, não perdia um só detalhe do humor sagaz do velho.

No banquete, estavam presentes chefes e homens-de-estado pictos, estes últimos de atitudes joviais e naturais, enquanto os guerreiros se mostravam formalmente corteses, mas evidentemente moderados em suas afinidades tribais. Com certo tom de inveja, Kull era bastante consciente da liberdade e naturalidade com que se desenrolava o espetáculo noturno, em contraste com outras situações similares da corte valusiana. Esse tipo de liberdade era o que prevalecia nos rústicos acampamentos da Atlântida. Kull encolheu os ombros. Afinal de contas, Ka-nu, que parecia ter esquecido que era um picto com relação a costumes e preconceitos antigos, não deixava de ter razão ao considerar que Kull deveria se transformar num valusiano, tanto em mentalidade quanto no nome.

Finalmente, quando a lua chegou a seu zênite, Ka-nu, que havia comido e bebido por três dos homens ali presentes, se reclinou sobre seu divã, lançou um suspiro de satisfação e disse:

- Agora já podem ir embora, meus amigos, porque o rei e eu temos que falar de coisas que não preocupam as crianças. Sim, você também, minha linda. Mas me deixe primeiro beijar estes lábios de rubi... assim. Não, nada de danças, minha rosa em flor.

Os olhos de Ka-nu piscaram com malícia por cima de sua barba branca, ao mesmo tempo em que observava Kull, que, sentado bem ereto, mantinha uma atitude severa e intransigente.

- Certamente – disse de repente o velho estadista –, está pensando que Ka-nu não é mais que um velho inútil, que já não serve para nada, exceto beber vinho e beijar as prostitutas.

Na verdade, esse comentário estava tão de acordo com os verdadeiros pensamentos de Kull, e fora exposto de uma forma tão clara, que Kull se sentiu assombrado diante da perspicácia do velho, embora não desse a menor mostra disso.

Ka-nu pôs-se a rir, e sua pança se sacudiu com as risadas.

- O vinho é vermelho, e as mulheres, suaves. – acrescentou, com expressão tolerante – Mas... há, há!... não creia que o velho Ka-nu permita que nada se interponha nos assuntos de estado.

Voltou a lançar uma gargalhada, e Kull se remexeu, inquieto, em seu assento. Dava a impressão de que estava zombando dele, e os olhos cintilantes do rei começaram a brilhar com luz felina. Ka-nu tomou a jarra de vinho, encheu a taça e olhou Kull com atitude interrogativa, e este fez um aceno negativo com a cabeça, irritado.

- Ah, como queira. – disse Ka-nu com tom afável – É preciso uma cabeça velha como a minha, para suportar a bebida. Já estou envelhecendo, Kull, de modo que não faz falta que os jovens invejem os prazeres que os velhos ainda possam encontrar. Ah, sim, estou ficando velho e enrugado, vou ficando sem amizades nem alegrias.

No entanto, nem seu aspecto nem sua expressão faziam jus a suas palavras. Tinha o rosto vermelho e bastante aceso; os olhos lhe brilhavam, a ponto de sua barba branca parecer incongruente. De fato, seu aspecto pareceu um tanto mágico a Kull, que experimentou um vago ressentimento por isso. O velho havia perdido todas as virtudes primitivas próprias de sua raça e da raça de Kull, apesar de que parecia sentir-se muito confortável com sua idade.

- Peço que você me ouça, Kull – prosseguiu Ka-nu, levantando um dedo em advertência –, porque esta é uma boa oportunidade para elogiar um homem jovem e, no entanto, devo expressar meus verdadeiros pensamentos para ganhar sua confiança.

- Se acha possível consegui-lo por meio de adulação...

- Tolice. Quem aqui falou em adulação? Só adulo alguém para pegá-lo desprevenido.

Nos olhos de Ka-nu apareceu uma brilhante faísca, e um resplendor frio que não combinava com seu sorriso indolente. Ele conhecia os homens e sabia que, para alcançar seus fins, deveria se mostrar bem direto com este bárbaro felino, que, assim como um lobo que farejara a presença de uma serpente, detectaria, sem a menor dúvida, qualquer falsidade que pudesse aparecer no fiar da sua teia-de-aranha de palavras.

- Você tem poder, Kull. – ele prosseguiu, escolhendo suas palavras com muito mais cuidado do que costumava empregar nos conselhos da nação – Suficiente para lhe transformar no mais poderoso dos reis e restaurar algumas das glórias passadas da Valúsia. Na verdade, a Valúsia me importa muito pouco, embora suas mulheres e seu vinho sejam excelentes, a não ser pelo fato de que quanto mais forte seja a Valúsia, tanto mais forte será também a nação picta. Principalmente agora que, com um atlante no trono, cabe esperar que a Atlântida fique finalmente unida...

Kull pôs-se a rir com uma dura expressão de zombaria. Ka-nu acabava de tocar numa velha ferida.

- Na Atlântida, meu nome foi amaldiçoado quando fui embora, em busca de fama e fortuna entre as cidades do mundo. Nós... eles são eternos inimigos dos Sete Impérios, e os maiores inimigos dos aliados dos Impérios. Deveria sabê-lo.

Ka-nu acariciou a barba e sorriu enigmaticamente.

- Bem, vamos deixar isso de lado, embora eu saiba muito bem do que estou falando. Uma vez conseguida a união, deixará de haver guerras nas quais ninguém ganha nada. Já imagino um mundo de paz e prosperidade, em que o homem ame a seus semelhantes, ao bem supremo. E isso é algo que poderá conseguir... se viver.

- Hah!

A mão ágil de Kull desceu rapidamente para o cabo de sua espada, e ele meio se ergueu em seu assento, com um movimento repentino, tão cheio de dinamismo que Ka-nu, que imaginava os homens tal e como se imaginam os cavalos de sangue puro, sentiu que o sangue lhe acelerava com uma repentina emoção. Por Valka, que guerreiro! Tinha nervos e fibras de aço e fogo, tudo isso combinado a uma perfeita coordenação, com o instinto de luta próprio de um guerreiro terrível.

Mas, no tom suavemente sarcástico que usou ao falar, não mostrou nada do entusiasmo que sentia.

- Tolice! Continue sentado. Veja ao seu redor. Os jardins estão desertos, os assentos vazios. Não há ninguém, exceto nós. E não terá medo de mim, certo?

Kull voltou a sentar-se e olhou cautelosamente à sua volta.

- Essa é a atitude do selvagem. – sussurrou Ka-nu – Acaso você acredita que, se eu tivesse tido a intenção de traí-lo, o faria aqui, onde todas as suspeitas indubitavelmente recairiam sobre mim? Vamos! Os jovens ainda têm muita coisa que aprender. Aí estavam antes meus chefes, que não se sentiam à vontade porque você nascera nas montanhas da Atlântida, e me despreza em sua consciência porque sou apenas um picto. Tolice. Eu lhe vejo como Kull, rei da Valúsia, e não como o impiedoso atlante, chefe dos que assolaram as ilhas ocidentais. Do mesmo modo, não deveria ver em mim um picto, mas um homem de caráter internacional, uma figura do mundo. Mas escute o que diz essa figura: se amanhã você fosse assassinado, quem seria o rei?

- Kaanub, barão de Blaal.

- O próprio. Me oponho a Kaanub por várias razões, mas a maioria de nós não se opõe a ele, porque não é nada mais do que uma pessoa presunçosa.

- Como assim? Foi meu maior adversário, mas não tenho notícia de que defendesse nenhuma outra causa mais que a sua.

- A noite pode ouvir as palavras. – disse Ka-nu indiretamente – Há mundos dentro dos mundos. Mas pode confiar em mim, e também em Brule, o lanceiro. Veja.

Tirou de duas dobras da túnica um bracelete de ouro, que representava um dragão alado enroscado três vezes, com três chifres de rubi na cabeça.

- Examine-o atentamente. Brule o levará no braço, quando estiver a seu lado amanhã à noite, para que possa reconhecê-lo. Confie em Brule como em você mesmo, e faça o que ele lhe disser. E, como prova de confiança do que eu lhe digo, veja!

E então, com a rapidez de um falcão que lança uma bicada sobre sua presa, o ancião tirou algo de dentro da túnica, algo que emitiu uma estranha luz verde sobre eles, e que ele voltou a guardar instantaneamente.

- A gema roubada! – exclamou Kull, recuando – A jóia verde do Templo da Serpente! Por Valka! Você! E por que está me mostrando agora?

- Para salvar-lhe a vida. Para lhe demonstrar que pode confiar em mim. Se eu trair sua confiança, faça de mim o que quiser. Você tem minha vida em suas mãos. Agora eu já não poderia ser falso com você, mesmo que quisesse, pois uma só palavra sua seria minha condenação.

Apesar de todas aquelas palavras, o velho parecia contente e amplamente satisfeito consigo mesmo.

- Mas, por que me dá este poder sobre você? – perguntou Kull, que se sentia cada vez mais desconcertado.

- Já lhe disse. E agora, como vê, não tenho a menor intenção de enganá-lo, de modo que amanhã à noite, quando Brule estiver a seu lado, siga seus conselhos sem a menor sombra de medo de uma possível traição. Agora, basta. Uma escolta lhe espera lá fora, para acompanhá-lo de volta ao palácio, meu senhor.

Kull se levantou.

- Mas você não me disse nada.

- Vamos, que impacientes são os jovens! – Ka-nu parecia um mago travesso, agora mais do que nunca – Vá sonhar com os tronos, com o poder e os reinos, enquanto eu sonho com o vinho, as mulheres macias e as rosas. E que a boa fortuna cavalgue convosco, rei Kull.

Ao abandonar o jardim, Kull olhou por cima do ombro, para onde Ka-nu continuava reclinado indolentemente, com todo aquele aspecto de um ancião satisfeito que irradiava toda a jovialidade do mundo.

Bem na saída do jardim, lhe esperava um guerreiro montado a cavalo. Kull ficou um pouco surpreso, ao verificar que se tratava do mesmo homem que havia lhe comunicado o convite de Ka-nu. Não trocaram uma só palavra, enquanto Kull saltava sobre a cela e eles percorriam as ruas desertas, fazendo soar os cascos dos cavalos.

O colorido e a alegria do dia haviam dado lugar à estranha quietude da noite. A antiguidade da cidade se manifestava muito mais sob a luz prateada da lua. As enormes colunas das mansões e dos palácios se elevavam imponentes em direção às estrelas. As amplas avenidas, silenciosas e desertas, pareciam se elevar interminavelmente, até se perderem na escuridão das zonas altas. Como escadas que levam às estrelas, pensou Kull, com sua mente imaginativa inspirada pela estranha grandiosidade do cenário.

“Clang, clang, clang!”, soavam os cascos com ferraduras de prata sobre as ruas amplas, banhadas pela luz da lua. Mas, além disso, não se percebia o menor ruído. O tempo de existência da cidade, sua incrível antiguidade, chegavam a ser quase opressivos para o rei; era como se aqueles grandes edifícios silenciosos estivessem zombando dele, sem o menor ruído, com uma mofa indecifrável. Que segredos se escondiam naqueles edifícios?

“Você é jovem, mas nós somos antigos”, pareciam lhe dizer os palácios, os templos e santuários. “O mundo estava animado pela juventude, quando fomos erigidos. Você e sua tribo passarão, mas nós somos invencíveis, indestrutíveis. Nos erguemos sobre um mundo estranho, enquanto a Atlântida e a Lemúria surgiram dos mares; reinaremos quando as águas verdes suspirarem por mais de um fantasma inquieto, por cima dos capitéis da Lemúria e das montanhas da Atlântida, e continuaremos reinando quando as ilhas dos homens ocidentais se transformarem nas montanhas de uma terra estranha. Quantos outros reis nós vimos desfilar por estas mesmas ruas, antes que Kull da Atlântida fosse apenas um sonho na mente de Ka, o pássaro da criação! Continue cavalgando o quanto quiser, Kull da Atlântida, porque outros maiores que você lhe seguirão, do mesmo modo que fizeram antes, transformados agora em pó e esquecidos, enquanto nós continuamos em pé, e sabemos que existimos. Cavalga, continue cavalgando, Kull da Atlântida, Kull o rei, Kull o estúpido!”.

E para Kull, pareceu que o som dos cascos dos cavalos rompia o silêncio da noite, para repetir com seu eco zombeteiro e vazio: “Kull, o rei! Kull, o estúpido!”.

Brilhe, lua; ilumine o caminho de um rei. Brilhem, estrelas! Sois tochas que se estendem no caminho de um imperador. Soem, cascos prateados, anunciem que Kull cavalga pela Valúsia.

Ei, acorde, Valúsia! É Kull que cavalga! Kull, o rei!

“Conhecemos muitos reis”, pareciam dizer os silenciosos edifícios da Valúsia.

E assim, com um humor melancólico, Kull chegou ao palácio, onde os homens de sua guarda, os Matadores Vermelhos, chegaram para segurar as rédeas de seu grande cavalo e acompanhar Kull até seus aposentos. Assim que chegaram, o picto, que não havia dito uma só palavra, fez seu corcel dar a volta com um selvagem puxão das rédeas, e desapareceu na escuridão, como um fantasma. A instigada imaginação de Kull representou-o atravessando a toda velocidade as ruas silenciosas, como um duende surgido do Reino das Sombras.

Naquela noite, não houve descanso para Kull, pois já quase amanhecia, e ele passara o resto da noite perambulando de um lado a outro pelo salão do trono, refletindo sobre tudo o que havia ocorrido. Ka-nu não lhe dissera nada concreto e, no entanto, havia se colocado completamente em suas mãos. E o que ele queria sugerir, ao dizer que o barão de Blaal não era mais que uma pessoa presunçosa? Quem era aquele Brule que o ajudaria à noite, portando o bracelete místico do dragão? E por quê? Mas, acima de tudo, por que Ka-nu havia lhe mostrado a gema verde do terror, roubada há tanto tempo do Templo da Serpente, pela qual o mundo se estremeceria em guerras se o soubessem os estranhos e terríveis guardiões daquele templo, de cuja vingança nem os homens mais ferozes de sua tribo poderiam livrar Ka-nu?

Kull, no entanto, refletiu, dizendo a si mesmo que Ka-nu se sentia a salvo, pois o ancião estadista era astuto demais para se expor sem obter vantagem alguma. Pretendia por acaso pegá-lo desprevenido, e preparar assim o caminho para a traição? Ka-nu se atreveria a deixá-lo viver agora? No final, Kull se mostrou indiferente a todas estas perguntas.


3) Aqueles que caminham na noite

A lua ainda não havia saído, quando Kull, com a mão no cabo de sua espada, se aproximou da janela. As janelas de seus aposentos davam aos grandes jardins internos do palácio real, e a brisa da noite, portadora dos aromas das árvores, agitou levemente as tênues cortinas. O rei olhou para fora. Os caminhos e arvoredos estavam desertos; as árvores, cuidadosamente podadas, não eram mais que sombras avultadas; nas fontes vizinhas, se refletia a tênue capa prateada da luz das estrelas, e a água das fontes mais afastadas se enrolava pela brisa. Não havia guardas que vigiassem aqueles jardins, pois os muros externos se encontravam tão rigidamente vigiados, que parecia impossível que qualquer intruso pudesse ter acesso a eles.

As parreiras subiam pelos muros do palácio, e precisamente quando Kull pensava na facilidade que seria subir por elas, um fragmento de sombra se separou da escuridão sob a janela, e um braço moreno e nu se deslizou sobre o alizar. A grande espada do rei foi meio desembainhada, mas logo parou. Sobre aquele braço musculoso, brilhava o bracelete do dragão que Ka-nu havia lhe mostrado na noite anterior.

O dono do braço içou-se sobre o alizar e entrou na estância com os movimentos rápidos e naturais de um leopardo que subia.

- Você é Brule? – perguntou Kull.

Parou de repente, surpreso, e um tanto aborrecido e receoso, pois aquele homem não era outro, senão o mesmo que havia lhe escoltado na noite anterior até o palácio.

- Sou Brule, o lanceiro. – respondeu o picto, em voz baixa e reservada. E logo, observando atentamente o rosto de Kull, disse, com um tom de voz que foi apenas um sussurro: – Ka nama kaa lajerama!

- Ei! O que quer dizer? – perguntou Kull, surpreso.

- Não sabe?

- Não. Essas palavras não me são familiares, não pertencem a nenhuma língua que eu conheça e, no entanto... por Valka, creio tê-las ouvido em algum lugar...

- De fato. – foi o único comentário do picto. Seu olhar percorreu o escritório do palácio. Exceto por umas poucas mesas, um par de divãs e umas grandes prateleiras de pergaminhos, a moradia estava praticamente vazia em comparação com o esplendor do resto do palácio – Diga-me, meu senhor, quem guarda a porta?

- Dezoito dos Matadores Vermelhos. Mas, como conseguiu penetrar nos jardins à noite e escalar os muros do palácio?

- Os guardas da Valúsia são como búfalos cegos. – bufou Brule – Daria para tomar suas mulheres debaixo de seus próprios narizes. Escapuli entre eles, sem que me vissem e me ouvissem. Quanto aos muros... eu conseguiria subi-los sem a ajuda das parreiras. Eu caçava tigres em praias, cobertas por névoas arrastadas do mar por fortes brisas orientais, e escalava os escarpados da montanha do mar ocidental. Mas chega de conversa... Toque este bracelete. – estendeu o braço e, quando Kull, estranhado, fez o que lhe pedia, soltou um aparente suspiro de alívio – Bem. Agora tire essas roupas reais, porque esta noite lhe esperam coisas com as quais nenhum atlante jamais sonhara.

O próprio Brule só vestia uma pequena tanga, através da qual levava segura uma espada curta e curva.

- Quem é você para me dar ordens? – perguntou Kull, levemente ressentido.

- Ka-nu não pediu que me levasse em conta em tudo? – perguntou o picto, irritado, deixando aparecer um fulgor momentâneo – Não lhe tenho em excessiva estima, meu senhor, mas por enquanto afastei de minha mente todo pensamento de disputa. Faça o mesmo. Mas venha.

Andando sem fazer barulho, cruzou a sala e dirigiu-se à porta. Um olho-mágico que havia nesta, permitia observar uma parte do corredor externo, sem serem vistos do outro lado. O picto pediu a Kull que olhasse.

- O que você vê?

- Nada, exceto os dezoito guardas.

O picto assentiu com um gesto, fez sinal a Kull para que o seguisse, e voltou a cruzar a mansão. Brule parou diante de uma placa, situada na parede oposta, e tateou um momento com a mão. Logo, com um movimento rápido, recuou ao mesmo tempo em que desembainhava a espada. Kull lançou uma exclamação, ao ver que a placa se deslizava silenciosamente, se abrindo e revelando uma passagem fracamente iluminada.

- Uma passagem secreta! – exclamou Kull em voz baixa – E eu não sabia de sua existência! Por Valka, que alguém pagará por isto!

- Silêncio! – disse o picto.

Brule permaneceu ali, de pé, feito uma estátua de bronze, como se forçasse cada um de seus nervos para tentar perceber até o som mais leve; houve algo, em sua atitude, que arrepiou os cabelos de Kull, não de temor, mas de ávida expectativa. Logo, fazendo-lhe um gesto, Brule cruzou a soleira secreta, que ficou aberta atrás deles. A passagem aparecia nua, mas não coberta de pó, como seria no caso de tratar-se de um corredor secreto não-utilizado. Uma vaga luz grisalha se filtrava de algum lugar, mas não se via de onde chegava. A cada poucos passos, Kull via portas, invisíveis por fora, ele estava certo, mas fáceis de distinguir por dentro.

- Este palácio é como um favo de mel. – murmurou.

- É. Você é observado dia e noite, meu senhor. São muitos os olhos que lhe vigiam.

O rei ficou impressionado pela atitude de Brule. O picto continuou avançando lentamente, receoso, meio agachado, com a lâmina da espada mantida em posição baixa e para a frente. Cada vez que falava, o fazia em sussurros, e olhava rápida e continuamente para um lado e outro. O corredor dava uma volta brusca, e Brule olhou com cautela para o outro lado.

- Olhe! – sussurrou – Mas lembre-se que não deve dizer uma só palavra. Nem um som, por sua vida.

Kull olhou cautelosamente para o outro lado. O corredor mudava, para dar lugar a um lance de degraus. Kull recuou. Ao pé daqueles degraus, jaziam os corpos dos dezoito Matadores Vermelhos que se postaram naquela noite para vigiar a entrada ao estúdio do rei. Brule agarrou-lhe o poderoso braço; isso e feroz sussurro de sua voz, que soou bem acima do ombro, impediram que Kull descesse de um salto aqueles degraus.

- Silêncio, Kull! Silêncio, em nome de Valka! – sussurrou o picto – Estes corredores estão vazios agora, mas me arrisquei demais ao mostrá-los para que creia no que tenho a lhe dizer. Voltemos agora ao seu estúdio.

Retomou seus passos, seguido de perto por Kull, cuja mente estava alvoroçadamente desconcertada.

- Isto é traição. – sussurrou o rei, com uma expressão ardente em seus fortes olhos cinzas – Uma vileza feita muito rapidamente! Só passaram alguns minutos, desde que esses homens montavam a guarda.

Novamente no estúdio, Brule fechou cuidadosamente a placa secreta e sinalizou a Kull para que voltasse a dar uma olhada pelo olho-mágico da porta que levava ao corredor externo. Kull soltou um ofego de assombro. Ali fora estavam os dezoito guardas!

- Isto é bruxaria! – sussurrou, com a espada meio desembainhada – Por acaso são homens mortos que guardam o rei?

- Sim. – foi a resposta pouco audível de Brule, em cujos olhos faiscantes havia aparecido uma estranha expressão. Os dois homens se olharam fixamente por um momento. As sobrancelhas de Kull se enrugaram num gesto de estranheza, ao tentarem ler a expressão inescrutável. Logo, os lábios de Brule, mal se movendo, formaram as palavras: – A serpente que fala.

- Silêncio! – sussurrou Kull, ao mesmo tempo em que levava uma das mãos à boca de Brule – Essas palavras significam a morte. Esse é um nome maldito!

- Olhe de novo, rei Kull. Talvez tenham mudado a guarda.

- Não, esses são os mesmos homens. Em nome de Valka, isto é bruxaria! É loucura! Eu vi, com meus próprios olhos, os corpos desses homens, faz apenas alguns minutos. E, no entanto, aí estão agora, de pé.

Brule recuou, afastando-se da porta e seguido mecanicamente pelo rei.

- Meu senhor, o que sabe sobre as traições desta raça à qual governa?

- Muito e, no entanto, pouco. A Valúsia é tão antiga...

- De fato. – assentiu Brule, com os olhos misteriosamente acesos – Nós não somos mais que bárbaros... crianças, em comparação aos Sete Impérios. Nem sequer eles mesmos sabem o quanto são antigos. Nem as lembranças dos homens, nem os anais dos historiadores recuam o bastante para nos dizer quando chegaram do mar os primeiros homens, e construíram as cidades sobre a costa. Mas, meu senhor, os homens nem sempre foram governados por homens!

O rei o olhou fixamente. Seus olhares se encontraram.

- Sim, entre meu povo há uma lenda.

- E no meu também! – interrompeu Brule – Isso foi antes que nós, das ilhas, nos transformássemos em aliados da Valúsia. Sim, durante o reinado de Lion-fang, sétimo chefe-guerreiro dos pictos, já faz tantos anos que ninguém lembra quantos, chegamos pelo mar, vindos das ilhas onde o sol se põe, assolamos as costas da Atlântida e caímos sobre as praias da Valúsia, com espada e fogo. Sim, essas longas praias brancas ressoaram com o entrechocar das lanças, e a noite foi como o dia, iluminada pelos incêndios dos castelos em chamas. E o rei da Valúsia, que morreu naquele triste dia nas areias avermelhadas de sangue...

Sua voz se dissipou, e os dois homens permaneceram se olhando fixamente, sem falar durante um tempo. Logo, ambos assentiram com um gesto.

- A Valúsia é antiga! – sussurrou Kull, com intensidade – As montanhas da Atlântida e Mu eram ilhas do mar, quando a Valúsia ainda era jovem.

A brisa noturna adentrou a janela aberta. Não era o ar livre e revigorante do mar que Brule e Kull conheciam e desfrutavam em suas terras, mas um alento, como o sussurro do passado, sobrecarregado de mofo, das coisas longamente esquecidas, que continha segredos já velhos quando o mundo ainda era jovem.

Os tapetes se agitaram e, de repente, Kull se sentiu como uma criança nua diante da inescrutável sabedoria daquele misterioso passado mítico. Uma sensação de irrealidade voltou a se apoderar dele. No fundo de sua alma, surgiram fantasmas escuros e gigantescos, que lhe sussurravam coisas monstruosas. Ele percebeu que Brule experimentava pensamentos similares. O olhar do picto se encontrava fixo em seu rosto, com uma intensidade feroz. Os olhares de ambos voltaram a se encontrar, e Kull experimentou uma cálida sensação de camaradagem com este membro de uma tribo rival. Como se fossem leopardos rivais que se aliavam para deterem os caçadores, estes dois selvagens estabeleceram ali mesmo um ideal comum contra os poderes inumanos, vindos da antiguidade.


Brule voltou a indicar o caminho de volta à porta secreta. Adentraram novamente a passagem, em silêncio, e também em silêncio avançaram pelo lúgubre corredor, tomando desta vez a direção oposta à seguida anteriormente. Em pouco tempo, o picto se deteve e comprimiu-se contra uma das portas secretas, pedindo a Kull que olhasse pelo olho-mágico escondido.

- Isto leva a uma escada muito pouco utilizada, que conduz a um corredor, além da porta do estúdio.

Olharam e, nesse momento, apareceu uma figura silenciosa que subia a escada.

- Tu! O conselheiro-chefe! – exclamou Kull – A esta hora da noite e com a adaga desembainhada! O que significa isto, Brule?

- Assassinato! E a mais vil das traições! – respondeu Brule em baixa – Não. – ele acrescentou, ao ver que Kull se dispunha a abrir a porta e saltar para a frente – Estamos perdidos se o enfrentarmos aqui, pois pode haver outros, escondidos ao pé da escada. Venha!

Quase correndo, se apressaram em voltar pela passagem. Uma vez que chegaram ao estúdio, Brule fechou cuidadosamente a porta atrás deles, e logo cruzou o escritório, dirigindo-se para uma sala que raramente era utilizada. Ali, afastou uns tapetes que haviam num canto escuro, arrastou Kull consigo e ambos se colocaram atrás deles.

Os minutos se passaram. Kull ouvia o som da brisa que penetrava pela outra sala, fazendo oscilar as cortinas, e lhe parecia o murmúrio dos fantasmas. Logo, cruzando a soleira, apareceu a figura de Tu, o conselheiro-chefe do rei. Evidentemente, havia chegado ao escritório e, ao encontrá-lo vazio, procurava sua vítima lá, onde mais provavelmente estaria.

Aproximou-se com a adaga erguida, avançando em silêncio. Parou por um momento e contemplou a estância, aparentemente vazia, pois estava debilmente iluminada por uma só vela. Depois, avançou cautelosamente, aparentemente desconcertado ao não entender a ausência do rei. Se deteve diante do esconderijo e...

- Mate! – sussurrou o picto.

Num único e poderoso salto, Kull fixou-se no meio da pequena câmara. Tu saltou por sua vez, mas a velocidade relampejante e felina do ataque não lhe deu a menor oportunidade para defender-se e contra-atacar. O aço da espada faiscou à luz fraca e fez o osso ranger, ao mesmo tempo em que Tu recuava, cambaleante, com a espada de Kull enfiada entre os ombros.

Kull se inclinou sobre ele, com os dentes à mostra numa careta de assassino, com as sobrancelhas cheias enrugadas sobre olhos que pareciam o gelo cinza do mar glacial. E então, soltou o cabo da espada e recuou, abalado e aturdido ao sentir a mão da morte pousada sobre suas costas.

Porque, enquanto observava, o rosto de Tu tornou-se estranhamente escuro e irreal; os traços se esfumaçaram e recombinaram de uma forma aparentemente impossível, para logo, como uma máscara de névoa que se desvanecera, desaparecer repentinamente e deixar, em seu lugar, uma monstruosa cabeça de serpente.

- Por Valka! – exclamou Kull boquiaberto, com a testa molhada por um suor repentino – Por Valka! – repetiu.

Brule se inclinou para a frente, com o rosto imóvel. Mas seus olhos acesos refletiam algo do horror que o próprio Kull experimentava.

- Pegue sua espada de volta, meu senhor. – ele disse – Outras proezas ainda os esperam.

Vacilante, Kull avançou a mão para o cabo. A carne lhe formigou ao apoiar um pé sobre o horror que jazia a seus pés, e, quando uma contração muscular fez aquela boca horrível se abrir de repente, ele recuou com uma sensação de náusea. Finalmente se armando de coragem, ele puxou a espada e contemplou mais atentamente aquela coisa sem nome que havia conhecido como Tu, o conselheiro-chefe. Exceto pela cabeça reptiliana, aquilo era a réplica exata de um homem.

- Um homem com cabeça de serpente! – murmurou Kull – Se trata, então, de um sacerdote do deus serpente?

- Sim. Você dorme sem sabê-lo. Estes inimigos podem adquirir a forma que quiserem. Mediante um encantamento mágico ou algo similar, podem lançar uma nuvem de magia sobre seus rostos, como faria um ator com uma máscara, para assim se parecer com qualquer um que escolham.

- Então, as velhas lendas estavam certas. – sussurrou o rei – Essas horríveis e velhas histórias, que poucos se atrevem a contar, para não morrerem como blasfemos, não são fantasias. Por Valka, eu havia imaginado... havia suposto. Mas isto parece que vai além dos limites da realidade. Ei! Os guardas que estão do outro lado da porta...

- Também são homens-serpente. E agora, o que faremos?

- Mataremos a todos! – respondeu Kull entre dentes.

- Neste caso, golpeie nos crânios. – disse Brule – Dezoito esperam do outro lado da porta, e talvez haja mais nos corredores. Ouça-me bem, meu senhor. Ka-nu ficou a par deste complô. Seus espiões se infiltraram nas mais intrincadas fortalezas dos sacerdotes-serpentes, e lhe comunicaram indícios do que se tratava. Faz muito tempo que ele descobriu as passagens secretas do palácio e, às suas ordens, me dediquei a estudá-las e cheguei aqui à noite para ajudá-lo, para impedir que morresse como morreram outros reis da Valúsia. Vim a sós pela simples razão de que, no caso de ter sido mais, poderíamos levantar suspeitas, e talvez não pudéssemos adentrar sorrateiramente o palácio, como eu fiz. Os homens-serpente guardam sua porta, e esse, conhecido como Tu, poderia fazer entrar no palácio a quem quisesse; pela manhã, se os sacerdotes fracassassem, os verdadeiros guardas voltariam a ocupar seus postos, sem saber nada, sem lembrar de nada; e estariam ali para levarem a culpa, caso os sacerdotes alcançassem seus propósitos. Mas fique aqui, enquanto me ocupo em dar sumiço neste cadáver.

E, após dizer isto, o picto lançou aos ombros aquela coisa horrível e desapareceu com ela por outra placa secreta. Kull ficou a sós, com a mente atordoada. Neófitos da poderosa serpente... quantos se esconderiam entre suas cidades? Como ele poderia distinguir o falso do verdadeiro? Quantos dos conselheiros, dos generais em que confiava, eram homens verdadeiros? Em quem poderia confiar?


A placa secreta se abriu para dentro e Brule entrou novamente no escritório.

- Você foi rápido.

- Sim. – disse o guerreiro, que avançou alguns passos e olhou para o chão – Há sangue no tapete, está vendo?

Kull se inclinou para a frente; pelo canto do olho, distinguiu um movimento confuso, um brilho de aço. Ficou em pé de um salto, como a corda de um arco. O guerreiro se dobrou sobre a espada, deixando a sua cair ao chão. Nesse instante, Kull ainda teve tempo de pensar no adequado que era o fato do traidor encontrar a morte através do golpe deslizante para cima, tão utilizado pelos de sua raça. Depois, quando Brule começou a escorregar da espada para cair imóvel ao solo, o rosto começou a mudar e se extinguir, e Kull conteve a respiração, com os cabelos arrepiados, enquanto observava como aqueles traços humanos desapareciam e as mandíbulas de uma grande serpente ficavam horrivelmente abertas, com seus terríveis olhos fitando-lhe venenosamente, mesmo no momento da morte.

- Ele também era um sacerdote-serpente! – exclamou o rei – Por Valka! Um plano perspicaz para me pegar desprevenido! E Ka-nu? É um homem? Foi com Ka-nu que eu conversei nos jardins? Valka Todo-Poderoso! – e sua pele lhe formigou ante um horrível pensamento – Por acaso, o povo da Valúsia são homens, ou são todos serpentes?

Ele permaneceu indeciso, sem deixar de contemplar aquela coisa chamada Brule, que agora já não usava o bracelete do dragão. Então, um ruído o fez dar meia-volta.

E Brule apareceu pela porta secreta.

- Alto aí! – Sobre o braço, levantado num gesto instintivo para conter a espada do rei, brilhava o bracelete do dragão – Por Valka!

O picto parou repentinamente e, ao compreender o ocorrido, um sorriso inexorável se estendeu sobre seus lábios.

- Pelos deuses dos mares! Estes demônios são incrivelmente poderosos. Esse devia estar escondido nas passagens e, ao me ver passar levando o cadáver do outro, assumiu minha aparência. Agora tenho outro para carregar.

- Um momento! – exclamou Kull com tom de ameaça na voz – Esta noite, vi dois homens se transformarem em serpente diante de meus próprios olhos. Como sei que você é um homem de verdade?

Brule pôs-se a rir.

- Por duas razões, rei Kull. Nenhum homem-serpente usa isto. – ele disse, apontando o bracelete do dragão – E tampouco pode dizer as palavras: Ka nama kaa lajerama.

Também era a segunda vez que ele as ouvia aquela noite, e Kull as repetiu mecanicamente.

- Ka nama kaa lajerama. Mas... onde ouvi isso, em nome de Valka? Não conheço essas palavras e, no entanto...

- Ah, deve lembrá-las, Kull. – disse Brule – Essas palavras devem estar escondidas nos escuros corredores da memória; ainda que não as tenha ouvido nesta vida, em eras passadas deviam estar tão terrivelmente impressas em sua alma-mente, que jamais morreram, e sempre farão soar uma débil corda em sua memória, mesmo que você reencarne durante um milhão de anos. Porque essa frase se origina secretamente das eras tenebrosas e sangrentas, e desde então, durante incontáveis séculos, formaram o código da raça dos homens que lutava contra os seres horripilantes do Reino das Sombras. Pois ninguém pode pronunciá-las, exceto um verdadeiro homem entre os homens, cujas mandíbulas e boca estejam configuradas de forma diferente da de qualquer outra criatura. Seu significado ficou desaparecido no esquecimento, mas não as palavras.

- Isso é verdade. – assentiu Kull – Recordo as lendas... Por Valka!

Ele parou de repente, com o olhar fixo, pois subitamente, como a silenciosa oscilação de uma porta mística que se abrira, esferas brumosas e inimagináveis se abriram nos cantos de sua consciência e, por um momento, pareceu olhar para trás, através da imensidão que separava uma vida da outra, e, através daquelas névoas vagas e espectrais, pôde ver as formas que viveram em séculos já mortos... homens em combate com monstros horríveis, dedicados a livrar um planeta de espantosos horrores.

Contra um fundo cinza em constante deslocamento, se moviam estranhas formas de pesadelo, fantasias de loucura e de temor; e um homem, o enviado dos deuses, seguia cegamente, do pó de uma vida a outra, o longo rastro sangrento de seu destino, sem saber o porquê, atuando de uma forma bestial, às cegas, como uma grande criança assassina, mas dotada da clara sensação de que, em alguma parte, havia uma faísca de fogo divino...

Kull passou a mão pela testa, perturbado. Estas visões fugazes nos abismos da memória sempre lhe deixavam perplexo.

- Desapareceram. – disse Brule, como se tivesse lido seus pensamentos mais íntimos – As mulheres-pássaro, as harpias, os homens-morcego, os diabos voadores, o povo-lobo, os demônios, os duendes... todos, menos os que são como este ser que jaz a seus pés, assim como uns poucos homens-lobo. Longa e terrível foi a guerra, que durou muitos e sangrentos séculos, desde que chegaram os primeiros homens, surgidos da lama dos macacos, transformados naqueles destinados a governar o mundo, e que finalmente conseguiram alcançar a humanidade, há tanto tempo que só lendas escuras e débeis chegaram até nós através das eras. O povo-serpente foi o último a desaparecer, mas os homens conseguiram, por fim, vencê-los também, empurrando-os em direção aos confins desérticos do mundo, para que se acasalassem ali com as verdadeiras serpentes, até um dia, segundo o dizer dos sábios, aquela horrível raça desaparecer por completo. Entretanto, as Coisas regressaram habilmente disfarçadas, quando os homens ficaram moles e degenerados, já esquecidas as antigas guerras. Ah, essa foi uma guerra encarniçada e secreta! Entre os homens da Terra Jovem, se deslizavam furtivamente os terríveis monstros do Planeta Antigo, protegidos por sua horrível sabedoria e seus misticismos, capazes de adotar todo tipo de formas e figuras, para realizar em segredo as suas horrorosas façanhas. Ninguém sabia quem era homem verdadeiro ou falso. Nenhum homem podia confiar em outro. E, no entanto, graças às suas próprias habilidades, encontraram meios para distinguir os falsos dos verdadeiros. Então, os homens tomaram como sinal a figura do dragão alado, o dinossauro com asas, um monstro das eras passadas, que havia sido o maior inimigo da serpente. E os homens utilizaram também essas mesmas palavras, que acabo de pronunciar, como um código, como um símbolo, pois como já lhe disse, ninguém consegue repeti-las, exceto um homem verdadeiro. Desse modo, a humanidade triunfou. E, no entanto, depois de muitos anos em que tudo se esqueceu, os inimigos voltaram, pois o homem continua sendo um macaco à medida que esquece aquilo que não tem diante dos olhos. Chegaram como sacerdotes, e como os homens, então satisfeitos com seus luxos e seu poder, haviam perdido a fé nas velhas religiões e cultos, os sacerdotes-serpente, disfarçados de mestres de um culto novo e mais verdadeiro, criaram uma religião monstruosa, na qual se adorava o deus-serpente. E seu poder chegou a tal ponto, que agora se considera mortal repetir as velhas lendas do povo-serpente, e o povo volta a se inclinar diante do deus-serpente em sua nova forma; e os homens são tão cegamente estúpidos que a grande maioria deles não vê a conexão que existe entre este poder e o poder que os homens derrotaram há eras. Como sacerdotes, os homens-serpente se sentem satisfeitos em governar e, no entanto...

Então, ele parou.

- Continue. – disse Kull, experimentando uma inexplicável agitação nos cabelos de sua nuca.

- Os reis têm reinado como verdadeiros homens na Valúsia – prosseguiu o picto, em sussurros – e, no entanto, mortos em batalha, morreram como serpentes, como aquele que morreu sob a lança de Lion-fang, nas praias vermelhas, quando nós, das ilhas, assolamos os Sete Impérios. Como pode ser, milorde Kull? Esses reis nasceram de mulheres e viveram como homens! Isso foi porque os verdadeiros reis morreram em segredo, do mesmo modo que você morreria esta noite, e porque os sacerdotes da serpente reinaram em seus lugares, sem que o homem o soubesse.

Kull lançou uma maldição entre dentes.

- Assim tem que ser, porque, que se saiba, ninguém viu um sacerdote da serpente e viveu para contá-lo. Eles vivem no maior dos segredos.

- A arte de governar os Sete Impérios é algo labiríntico e monstruoso. – disse Brule – Os verdadeiros homens sabem que, entre eles, se deslizam os espiões da serpente, e aqueles homens que são aliados da serpente, como Kaanub, o barão de Blaal. E, no entanto, nenhum homem se atreve a desmascarar um suspeito, por medo de que a vingança caia sobre ele. Nenhum homem confia em seu semelhante, e o verdadeiro estadista não se atreve a falar nem expressar o que está na mente de todos. Se pudessem estar seguros, se fosse possível desmascarar ante todos eles um homem-serpente, ou desmascarar um complô, então se conseguiria quebrar o poder da serpente, pois a partir desse momento todos se uniriam e fariam causa comum para deslocar os traidores. Só Ka-nu possui a astúcia e valentia necessárias para enfrentá-los, e só ele conseguiria se informar o suficiente para me advertir do que acontecia, do que sucedeu até agora. Desse modo, eu estava preparado, mas a partir de agora só podemos confiar em nossa boa-sorte e habilidade. Aqui e agora, creio que estamos a salvo; esses homens-serpente que se encontram do outro lado da porta, não se atrevem a abandonar seus postos. Mas amanhã tentarão alguma outra coisa; pode estar certo disso. Ninguém pode saber o que tentarão fazer, nem sequer Ka-nu, mas devemos estar um ao lado do outro, rei Kull, até que os vençamos, ou morramos os dois. E agora, me acompanhe enquanto levo este cadáver ao mesmo lugar oculto onde deixei o outro.

Kull seguiu o picto com seu pesado fardo. Cruzaram o outro lado da placa oculta e avançaram pelo lúgubre corredor. Seus pés, acostumados ao silêncio dos espaços silvestres, não faziam o menor ruído. Deslizaram como fantasmas através daquela luz fantasmagórica, enquanto Kull se surpreendia diante do fato daqueles corredores estarem desertos, pois a cada curva esperava se deparar com alguma espantosa aparição.

As suspeitas começaram a tomar conta dele. Este picto estaria levando-o para uma emboscada? Reduziu o passo, mantendo-se a certa distância atrás de Brule, com a espada preparada, erguida sobre as costas do picto, que seguia imperturbável seu caminho. Se tivesse a intenção de traí-lo, Brule seria o primeiro a morrer. Mas, se o picto se deu conta das suspeitas do rei, não o demonstrou. Continuou seu caminho, impassível, até chegarem a uma moradia poeirenta, há muito tempo sem utilizar, de cujas paredes pendiam tapetes pesados e mofados. Brule afastou um deles e escondeu o cadáver atrás.

Logo, regressaram. De repente, Brule se deteve de forma tão brusca, que deu um enorme susto em Kull, de tão tensos que estavam seus nervos.

- Algo se move no corredor. – sussurrou o picto – Ka-nu disse que, por aqui, tudo estaria vazio, mas...

Ele desembainhou a espada e deslizou furtivamente pela passagem, seguido cautelosamente por Kull.

Pouco depois, apareceu um brilho vago e estranho que avançava em direção a eles. Esperaram, com os nervos tensos e as costas apertadas contra as paredes da passagem; não sabiam o que lhes esperava, mas Kull ouviu a respiração sibilante de Brule através dos dentes apertados, e se sentiu mais tranqüilo quanto à sua lealdade.

O brilho surgiu, transformado numa forma indefinida, como um facho de névoa, que se fez mais tangível à medida que se aproximava, sem chegar a ser totalmente material. Um rosto olhou para eles, com um par de grandes olhos luminosos que pareciam sofrer todas as torturas de um milhão de séculos. Não havia nenhuma expressão de ameaça naquele rosto, com seus traços débeis e esgotados, mas apenas uma grande piedade; e naquele rosto... naquele rosto...

- Por todos os deuses todo-poderosos! – exclamou Kull, sentindo como se uma mão gelada lhe pousasse sobre a alma – Eallal, rei da Valúsia, que morreu há mil anos!

Brule parecia se encolher ao máximo, e seus olhos se abriram amplamente com uma expressão do mais puro horror, enquanto a espada lhe tremia na mão, descomposto pela primeira vez naquela estranha noite. Kull, por sua vez, se manteve erguido e desafiador, e manteve instintivamente em guarda sua inútil espada; com a carne formigando e um comichão nos cabelos da nuca, mas mantendo-se como o rei dos reis que era, disposto a desafiar os poderes do desconhecido, tanto dos mortos quanto dos vivos.

O fantasma continuou imperturbável seu caminho, sem lhes fazer o menor caso; Kull encolheu-se sobre si mesmo, quanto passou diante deles, e percebeu um hálito gelado, como o produzido por uma nevasca ártica. A figura continuou sua marcha, com passos lentos e silenciosos, como se aqueles pés incertos arrastassem as correntes das eras, e finalmente desapareceu atrás de uma curva da passagem.

- Por Valka! – sussurrou o picto, limpando as gotas de suor frio que brotavam em sua fronte – Isso não era um homem! Isso era um fantasma.

- Sim! – assentiu Kull, com um gesto da cabeça e surpreso – Você não reconheceu o rosto? Era Eallal, que reinou na Valúsia há mil anos, e que foi encontrado horrivelmente assassinado em sua sala do trono, a mesma conhecida agora como o Salão Maldito. Acaso não viu sua estátua no Salão dos Reis Famosos?

- Sim, agora me lembro da história. Pelos deuses, Kull! Isso é outra mostra do poder espantoso e vil dos sacerdotes-serpente. Esse rei foi assassinado pelo povo-serpente, e sua alma se transformou em escrava deles, destinada a cumprir suas ordens durante toda a eternidade. Pois os sábios sempre afirmaram que, se um homem é assassinado por um homem-serpente, o fantasma se transforma em seu escravo.

Um estremecimento sacudiu a gigantesca estrutura do corpo de Kull.

- Por Valka! Que destino horrível! Escute-me! – seus dedos se apertaram sobre o braço vigoroso de Brule, como uma garra de aço – Me escute bem! Se eu for mortalmente ferido por esses monstros vis, jure que me atravessará o peito com a espada, para que minha alma não seja escravizada.

- Eu juro. – respondeu Brule, com seus ferozes olhos iluminados – E lhe peço que faça o mesmo por mim, Kull!

As fortes mãos direitas de ambos se encontraram para selar seu sangrento juramento.


4) Máscaras

Kull estava sentado em seu trono, e contemplava reflexivamente o mar de rostos virados em sua direção. Um carteiro falava num tom de voz uniforme, mas o rei mal escutava suas palavras. Perto dele, Tu, o conselheiro-chefe, se encontrava de pé a seu lado para cumprir suas ordens, e cada vez que o olhava, Kull se estremecia por dentro.

A superfície da vida cortesã era como a do mar entre uma maré e a seguinte. Para o rei pensativo, os acontecimentos da noite anterior pareciam um sonho, até que seu olhar pousou sobre um dos braços do trono. Uma mão bronzeada e forte descansava ali, e, por cima do pulso daquela mão, reluzia um bracelete do dragão; Brule estava de pé junto ao trono, e o feroz sussurro do picto o fez regressar do âmbito de irrealidade no qual se movia.

Não, aquele interlúdio monstruoso não havia sido nenhum sonho. Ao sentar-se no trono, no salão social, e contemplar os cortesãos, as damas, os cavalheiros e estadistas, pareceu ver seus rostos como produtos da ilusão, como algo irreal, só existente como sombras e zombarias da substância. Sempre havia considerado seus rostos como máscaras, mas até então havia olhado-os com uma depreciativa tolerância, convencido de ver, por debaixo daquelas máscaras, umas almas vazias, débeis, avarentas, luxuriosas e enganosas; agora, em compensação, havia um matiz cruel, um significado sinistro, um vago horror que se aninhava sob as máscaras suaves. Enquanto trocava cortesias com algum nobre ou conselheiro, imaginava ver desaparecer o rosto sorridente de seu interlocutor, como se fosse fumaça, para ver surgirem ali as espantosas mandíbulas abertas de uma serpente. Quantos daqueles a quem olhava eram, na verdade, horríveis monstros inumanos que tramavam sua morte, por baixo da ilusão suave e hipnotizadora de um rosto humano?

Valúsia, o reino dos sonhos e dos pesadelos, o reino das sombras, regido por fantasmas que deslizavam de um lado a outro, por trás das cortinas pintadas, zombando do rei inútil que se sentava no trono, transformando ele próprio numa sombra.

E como a sombra de um bom camarada, Brule se encontrava a seu lado, com os olhos escuros brilhando em seu rosto impassível. Brule era um homem de verdade! E Kull sentiu que a amizade por aquele selvagem era algo pertencente à realidade, e percebia que Brule também sentia por ele uma amizade que ia além da simples necessidade da arte de governar.

E quais eram as necessidades da vida?, se perguntou Kull. Ambição, poder, orgulho? A amizade de um homem; o amor das mulheres, que ele nunca havia conhecido, a batalha, o saque... o quê? Era o verdadeiro Kull que se sentava sobre o trono, ou acaso o verdadeiro Kull era o que havia escalado as montanhas da Atlântida, o que havia assolado as distantes Ilhas do Sol Poente, o que havia rido das ruidosas marés verdes do oceano da Atlântida? Pois ele sabia que havia muitos Kull, e se perguntava qual deles era o verdadeiro. Além disso, os sacerdotes da serpente haviam avançado um passo em sua magia, porque todos os homens usavam máscaras, e muitos deles usavam uma máscara diferente com cada homem ou mulher. Conseqüentemente, Kull se perguntava se, por baixo de cada máscara, não haveria uma serpente escondida.

Permaneceu sentado, submerso nestes pensamentos estranhos e labirínticos, enquanto os cortesãos iam e vinham, e se contemplavam os pequenos assuntos pendentes do dia, até que ele e Brule ficaram finalmente a sós no salão social, exceto pelos amodorrados serviçais.

Kull se sentia fatigado. Nem ele nem Brule haviam dormido na noite anterior, e Kull tampouco havia dormido na noite anterior àquela, quando, nos jardins de Ka-nu, teve o primeiro indício das coisas insólitas que aconteceriam. Nada mais ocorrera depois que regressaram ao estúdio, vindos das passagens secretas, mas nenhum dos dois havia ousado ou se preocupado em dormir. Kull, dotado da incrível vitalidade de um lobo, já havia passado outras vezes por dias e dias sem dormir, em seus tempos de selvagem, mas sua mente agora se sentia fatigada pela constante reflexão e por todas as coisas misteriosas ocorridas na noite anterior, capazes de quebrar os nervos de qualquer um. Precisava dormir, mas era nisso que ele menos pensava.

E, mesmo que o pensasse, tampouco se atreveria a fazê-lo. Outra coisa que o havia perturbado era que, apesar da estreita vigilância que tanto ele quanto Brule mantiveram para ver se e quando se trocava a guarda colocada diante da porta do escritório, esta foi mudada sem que nenhum dos dois se desse conta de nada, porque, na manhã seguinte, quem estava de guarda pôde repetir as palavras mágicas de Brule, apesar de não se lembrarem de ter ocorrido nada fora do normal. Estavam convencidos de ter passado toda a noite de guarda, como de costume, e Kull não disse nada a respeito. Ele acreditava que eram homens de verdade, mas Brule o aconselhou a guardar o mais absoluto segredo e, para Kull, também pareceu o melhor.

Agora, Brule se inclinou sobre o trono e baixou o tom de voz, para que nenhum daqueles servos ociosos pudesse ouvir suas palavras:

- Creio que não demorarão a atacar de novo, Kull. Há pouco, Ka-nu me fez uma senha secreta. Os sacerdotes estão informados de que conhecemos sua conspiração, embora não saibam até que ponto estamos cientes dos detalhes. Devemos estar preparados para qualquer tipo de ação. Ka-nu e os chefes pictos se manterão o mais perto possível, para nos ajudar, até que isto tenha se solucionado de uma forma ou de outra. Se tivermos que iniciar uma batalha campal, o sangue correrá pelas ruas e castelos da Valúsia.

Kull dirigiu-lhe um sorriso inexorável. Acolheria, com feroz regozijo, qualquer tipo de ação, fosse qual fosse. Todo este perambular por um labirinto de ilusão e magia era extremamente irritante para uma natureza como a sua. Desejava poder saltar, ouvir o ruído das espadas e experimentar a gostosa liberdade da batalha.

Nesse momento, Tu voltou a entrar no salão social, acompanhado pelo restante dos conselheiros.

- Senhor, meu rei, a hora do conselho se aproxima, e estamos preparados para escoltá-lo à sala do conselho.

Kull se levantou, e os conselheiros se afastaram e puseram o joelho no chão à sua passagem. Depois, se ergueram atrás dele para segui-lo. Algumas testas se franziram quando o picto avançou, desafiante, atrás do rei, mas ninguém fez a menor objeção. O olhar desafiador de Brule percorreu os rostos delicados dos conselheiros, com a ousadia típica de um selvagem intruso.

O grupo atravessou os corredores e chegou, por fim, diante da câmara do conselho. A porta se fechou, como de costume, e os conselheiros se organizaram em fila, de acordo com a ordem de suas classes, diante do estrado sobre o qual Kull se sentou, enquanto Brule se colocava atrás do rei, como uma estátua de bronze.

Kull percorreu o salão com um rápido movimento de seu olhar. Sem dúvida, aqui não havia possibilidade alguma de que se cometesse um ato de traição. Havia dezessete conselheiros, a todos os quais conhecia; cada um deles havia abraçado sua causa quando ele ascendera ao trono.

- Homens da Valúsia... – começou a dizer, à maneira convencional.

E então, se deteve, perplexo. Os conselheiros haviam se levantado, como um homem só, e avançavam em sua direção. Não havia hostilidade alguma em seus olhares, mas suas ações eram muito estranhas numa sala do conselho. O primeiro já havia chegado perto dele, quando Brule se adiantou de um salto, encolhido como um leopardo.

- Ka nama kaa lajerama.

Sua voz estalou, rompendo o sinistro silêncio da sala, e aquele primeiro conselheiro recuou, levando rapidamente a mão à túnica. Brule saltou como uma mola, e o homem se precipitou de cabeça em direção à espada desembainhada do picto e caiu trespassado, enquanto seu rosto se desvanecia e se transformava na cabeça de uma poderosa serpente.

- Mate, Kull! – disse a rascante voz do picto – Todos eles são homens-serpente!

O restante foi uma cena sangrenta. Kull viu como aqueles rostos familiares desapareciam e seus lugares eram ocupados por horríveis cabeças reptilianas, no momento em que todo o grupo se lançou para a frente. Havia um grande desconcerto em sua mente, mas seu cérebro não lhe falhou.

O assobio de uma espada preencheu o salão, e o grupo que se precipitava contra ele transformou-se numa onda avermelhada. Mas, os que ficaram voltaram a atacar, aparentemente dispostos a sacrificar suas vidas para eliminar o rei. Mandíbulas pavorosas se abriram diante dele; olhos terríveis miraram os seus, que devolveram o olhar sem pestanejar; um odor fétido e nauseabundo impregnou a atmosfera, o odor da serpente, que Kull havia conhecido nas selvas meridionais. As espadas e as adagas se precipitaram em sua direção, e mal teve consciência de que lhe feriam.

Mas Kull se encontrava agora em sua pessoa. Nunca, até agora, havia tido que se defrontar com inimigos tão cruéis, mas isso lhe importava muito pouco; eram seres vivos, em suas veias corria sangue que podia ser derramado e morreram um após outro, quando sua grande espada lhes arrancou as cabeças de um só corte ou lhes atravessou os corpos. Atacava, recuava e dava uma estocada após outra. No entanto, Kull teria morrido irremediavelmente, se não fosse o homem que lutava a seu lado, e que tampouco deixava de esquivar e atacar.

O rei se deixou levar por seu afã de luta, combatendo segundo o terrível estilo atlante, que busca a morte para se defrontar com a morte: não fez o menor esforço para evitar os ataques e navalhadas, se manteve firme, e até se lançou para a frente, sem outra idéia em sua mente enlouquecida que não fosse a de atacar. Não era freqüente Kull esquecer sua habilidade de luta em sua fúria primitiva, mas agora parecia que um elo havia se quebrado em sua alma, para encher sua mente com um afã incontido de matar e derramar sangue. Se desembaraçava de um inimigo a cada estocada que dava, mas aqueles seres lhe cercavam, bem superiores em número, e Brule teve que deter uma e outra vez estocadas que quase alcançavam seus objetivos. Permanecia junto ao rei, esquivando e atacando com uma fria habilidade, sem fazer tantos estragos quanto os causados pelos golpes e arremetidas de Kull, mas sem por isso deixar de ser efetivo com seus golpes e investidas por baixo.

Kull lançou uma gargalhada de loucura. Os horríveis rostos se agitavam a seu redor como uma mancha confusa e escarlate. Sentiu o aço adentrar-lhe o braço e deixou cair a espada, traçando um arco relampejante, que abriu uma enorme brecha no peito de seu inimigo. Logo, as brumas se dissiparam, e então se deu conta que ele e Brule estavam sós, sobre uma pilha de horripilantes corpos imóveis, espalhados pelo chão.

- Por Valka! Que matança! – exclamou Brule, limpando o sangue dos olhos – Se fossem guerreiros que soubessem usar o aço, teríamos morrido aqui. Mas estes sacerdotes-serpente não sabem nada da arte de manejar a espada, e morrem mais facilmente que qualquer homem que eu tenha precisado matar. Entretanto, se tivessem sido alguns mais, creio que as coisas terminariam de outra maneira.

Kull assentiu com um gesto. A selvagem possessão que o dominara já havia passado, deixando-lhe uma confusa sensação de grande fadiga. O sangue brotava dos ferimentos recebidos no peito, ombros, braços e pernas. O próprio Brule sangrava, devido a vários ferimentos superficiais, e o olhou com uma expressão preocupada.

- Milorde, vamos logo chamar as mulheres, para que cuidem de seus ferimentos.

Kull o afastou para um lado, com um movimento instintivo de seu poderoso braço.

- Não... vamos nos ocupar disto, depois que tudo estiver terminado. Mas vá você cuidar de seus ferimentos... Eu lhe ordeno.

O picto pôs-se a rir, com expressão inexorável.

- Suas feridas são piores, milorde... – ele começou a dizer, e então parou repentinamente, como que golpeado por uma idéia súbita – Por Valka! Este não é o salão do conselho!

Kull olhou a seu redor e, de repente, outras brumas pareceram se dissipar de sua mente.

- Não, este é o mesmo salão onde Eallal morreu há mil anos. Um salão que não foi utilizado desde então, e que foi considerado maldito.

- Então, pelos deuses, conseguiram nos enganar! – exclamou Brule, furioso, dando pontapés contra os cadáveres que jaziam ao chão – Nos fizeram entrar aqui como estúpidos, para cairmos em sua emboscada! Graças à sua magia, mudaram o aspecto de todo...

- Neste caso, devem estar cometendo uma nova vileza – disse Kull –, porque se há verdadeiros homens nos conselhos da Valúsia, deveriam estar agora na verdadeira sala do conselho. Vamos rápido.

Abandonaram o salão, deixando nele suas fantasmagóricas figuras, e avançaram apressadamente pelos corredores, que pareciam desertos, até chegarem diante da verdadeira sala do conselho. Uma vez ali, Kull se deteve com um repentino estremecimento, porque da sala do conselho surgia uma voz que falava... E aquela voz era a sua!


Ele afastou os tapetes, com a mão trêmula, e deu uma olhada pra dentro do salão. Ali estavam sentados os conselheiros, como réplicas perfeitas dos homens que ele e Brule acabaram de matar, e sobre o estrado se via a figura de Kull, rei da Valúsia.

Recuou, com a sensação de que a cabeça dava voltas.

- Isto é uma loucura! Eu sou Kull? Estou aqui, ou esse é o verdadeiro Kull e eu não sou mais que uma sombra, uma ilusão de meu próprio pensamento?

A mão de Brule pousou-lhe no ombro e o sacudiu ferozmente, fazendo-o recuperar a razão.

- Em nome de Valka, não seja estúpido! Ainda se assombra, depois de tudo o que vimos? Acaso não percebe que estes são homens verdadeiros, enfeitiçados por um homem-serpente que adotou sua forma, do mesmo modo que aqueles outros, aos quais matamos, adotaram as formas de seus verdadeiros conselheiros? A esta altura, você já deveria estar morto, e o monstro que adotou sua forma governará em seu lugar, sem que o saibam nenhum dos que se inclinam diante de ti. Ataque e mate rapidamente, ou estaremos acabados. Os Matadores Vermelhos, homens de verdade, estão de guarda, e ninguém mais pode lhe atacar e matar. Seja rápido!

Kull sacudiu a perturbação que se apoderara dele e lançou a cabeça para trás, com um velho gesto desafiador. Inspirou longa e profundamente, como faria um forte nadador antes de se lançar ao oceano, e logo afastou pra um lado os tapetes e lançou-se em direção ao estrado como um leão.

Brule havia dito a verdade. Ali estavam os Matadores Vermelhos, treinados para se moverem com a rapidez do ataque do leopardo; qualquer outro, que não fosse Kull, teria morrido antes de chegar até onde estava o usurpador. Mas a visão de Kull, idêntico ao homem sobre a plataforma, os deteve, suas mentes chocadas por um instante, e isso foi o suficiente. O ser que estava sobre o estrado conseguiu fechar os dedos ao redor do cabo da espada, mas antes que pudesse desembainhá-la, a espada do verdadeiro Kull se sobressaiu atrás de seus ombros, e aquela coisa, que os homens acreditaram ser o rei, caiu do estrado para a frente, e ficou estendida e imóvel sobre o chão.

- Alto! – gritou Kull.

Sua voz régia e potente foi o bastante para deter a precipitação que já havia começado, e enquanto todos os presentes lhe olhavam assombrados, ele apontou a coisa que estava estendida diante de si, cujo rosto desaparecia para transformar-se na cabeça de uma serpente. Todos recuaram e, nesse exato momento, Brule apareceu por uma porta, e Ka-nu por outra. Ambos se aproximaram do rei, Ka-nu pegou-lhe a mão ensangüentada e falou:

- Homens da Valúsia! Vocês viram com seus próprios olhos. Este é o verdadeiro Kull, o rei poderoso diante do qual toda a Valúsia sempre se inclinou. O poder da serpente se quebrou, e todos serão homens verdadeiros. Rei Kull, tem alguma ordem para nos dar?

- Levantem esse cadáver. – ordenou Kull, e dois homens da guarda se apressaram em obedecê-lo – E agora, todos me sigam. – acrescentou o rei.

Ele empreendeu o caminho em direção ao salão maldito. Brule, com expressão preocupada, lhe ofereceu o apoio de seu braço, mas Kull afastou-o para um lado.

A distância a percorrer parecia interminável ao ensangüentado rei, mas ele finalmente se encontrou diante da porta e pôs-se a rir feroz e cruelmente, ao ouvir as horrorizadas exclamações dos conselheiros diante da cena.

Ordenou aos guardas que lançassem o cadáver que transportavam pra junto dos que jaziam ao chão, e logo gesticulou a todos para que abandonassem o salão. Ele foi o último a sair e fechar a porta.

Uma onda de vertigem o sacudiu. Os rostos voltaram a olhá-lo. Estava pálido e perplexo, tonto e submerso numa bruma fantasmagórica. Sentia que o sangue a lhe brotar dos ferimentos escorria por seus membros, mas sabia o que devia fazer e tinha que fazê-lo rapidamente, ou não conseguiria ir até o final.

A espada voltou a se desembainhar com um assobio.

- Brule, você está aí?

- Estou aqui!

Brule o olhou através da bruma, próximo a seu ombro, mas sua voz pareceu soar a muitas léguas e eras de distância.

- Lembre do seu juramento, Brule. E agora, recuem todos.

Seu braço esquerdo abriu um espaço livre, ao mesmo tempo em que desembainhava a espada. Logo, com toda a força que lhe restava, lançou a espada através da porta, introduzindo a enorme lâmina pela tranca, afundando-a até o cabo e selando, deste modo, aquela sala para sempre.

Com as pernas bem abertas, deu meia-volta, feito um bêbado, para olhar os horrorizados conselheiros.

- Que esta sala seja duas vezes maldita. E que essas carcaças apodreçam aí para sempre, como uma mostra do poder moribundo da serpente. Aqui mesmo, eu lhes juro caçar os homens-serpente de terra em terra, de mar em mar, sem dar descanso até matar todos, que o bem triunfe e o poder do Inferno seja quebrado. Isto é o que lhes juro... eu... Kull, rei... da... Valúsia.

As pernas se dobraram, e os rostos oscilaram e giraram diante dele. Os conselheiros se precipitaram para ajudá-lo, mas antes que pudessem fazê-lo, Kull caiu ao chão e ficou ali estendido, imóvel, com o rosto virado para cima.

Os conselheiros se juntaram ao redor do rei caído, sem deixarem de falar e gritar. Ka-nu os afastou a empurrões, com os punhos fechados, sem deixar de praguejar ferozmente.

- Para trás, estúpidos! Querem arrebatar a pouca vida que ainda resta nele? Ele está morto ou viverá? – perguntou ao guerreiro que já havia se inclinado sobre o prostrado Kull.

- Morto? – respondeu Brule, irritado – Não se acaba facilmente com a vida de um homem como ele. A falta de sono e a perda de sangue o enfraqueceram... Por Valka! Ele recebeu um monte de ferimentos, mas nenhum deles é mortal. Que estes estúpidos balbuciantes tragam imediatamente as mulheres da corte. – Os olhos de Brule se acenderam com um olhar feroz, cheio de orgulho – Por Valka! Eu lhe asseguro, Ka-nu, que não sabia que pudesse existir um homem como ele nesta época tão degenerada. Ele estará em condições de montar um cavalo dentro de poucos dias, e então, que os homens-serpente se protejam de Kull, rei da Valúsia. Mas, por Valka, que essa será uma caçada estranha. Ah, já imagino longos anos de prosperidade para o mundo, com um rei como ele sentado no trono da Valúsia!





Fonte: http://en.wikisource.org/wiki/The_Shadow_Kingdom
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