Os Reis da Noite

por Robert E. Howard,

Originalmente publicado em Weird Tales, novembro de 1930


1) O César se recostava preguiçosamente em seu trono de marfim...
Suas legiões de ferro vieram
Para derrotar um rei numa terra desconhecida,
E uma raça sem nome.


A adaga reluziu para baixo. Um grito agudo se transformou numa arfada. A figura sobre o altar tosco se contorceu espasmodicamente e ficou imóvel. A lâmina denteada de sílex serrou o peito avermelhado, e magros dedos ossudos, horrivelmente manchados, arrancaram o coração ainda palpitante. Sob emaranhadas sobrancelhas brancas, olhos agudos brilhavam com uma intensidade feroz.

Além do matador, havia quatro homens ao redor da tosca pilha de pedras que formava o altar do Deus das Sombras. Um deles era de estatura mediana, esbeltamente constituído e parcamente vestido, cujos cabelos negros eram presos por uma fina faixa de ferro, no centro da qual lampejava uma solitária jóia vermelha. Dos outros, dois eram morenos como o primeiro. Mas, onde ele era esbelto, eles eram atarracados e disformes, com membros nodosos e cabelos emaranhados caindo sobre testas inclinadas. O rosto dele indicava inteligência e uma vontade implacável; o dos outros, apenas uma ferocidade bestial. O quarto homem tinha pouco em comum com o resto. Era quase uma cabeça mais alto; e, embora seu cabelo fosse negro como o deles, sua pele era relativamente clara e ele tinha olhos cinzas. Ele olhava para os procedimentos com pouca aprovação.

E, na verdade, Cormac de Connacht estava pouco à vontade. Os druidas de sua própria ilha, Erin, tinham estranhos rituais obscuros de adoração, mas nenhum como este. Árvores escuras vedavam esta cena sombria; iluminada por uma tocha solitária. Um lúgubre vento noturno gemia pelos galhos. Cormac estava só, entre homens de uma estranha raça, e acabava de ver o coração de um homem arrancado de seu corpo ainda palpitante. Agora, o velho sacerdote, que mal parecia humano, encarava intensamente a coisa latejante. Cormac estremeceu, olhando para aquele que usava a jóia. Será que Bran Mak Morn, rei dos pictos, acreditava que esse velho assassino de barba branca poderia predizer acontecimentos, observando um sangrento coração humano? Os olhos escuros do rei eram insondáveis. Havia estranhos abismos naquele homem, os quais Cormac não conseguia compreender – nem ele nem outro homem.

- Os presságios são bons! – exclamou selvagemente o sacerdote, falando mais para os dois chefes do que para Bran – Aqui, no coração palpitante de um cativo romano, eu leio... derrota para o exército de Roma! Triunfo para os filhos da urze!

Os dois selvagens murmuraram entre dentes, seus olhos ferozes ardendo.

- Vão e preparem seus clãs para a batalha. – disse o rei, e eles se afastaram pesadamente, com o típico passo simiesco de tais gigantes atrofiados.

Sem prestar mais atenção ao sacerdote que examinava a ruína medonha sobre o altar, Bran acenou para Cormac. O gaélico o seguiu sem entusiasmo. Uma vez fora daquele pequeno bosque sombrio, sob a luz das estrelas, ele respirou mais à vontade. Estavam numa elevação, observando longas e avolumadas agitações de suave urze ondulante. Bem próximas dali, cintilavam umas poucas fogueiras, sua escassez dando pouca evidência das hordas de homens tribais que se encontravam perto delas. Mais além delas, havia mais fogueiras e, além, outras mais, as quais marcavam o acampamento dos próprios homens de Cormac: duros cavaleiros e lutadores gaélicos, daquele bando que estava começando a se assentar na costa oeste da Caledônia – o núcleo do que mais tarde se tornaria o reino da Dalriadia. À esquerda destas fogueiras, brilhavam outras.

E, mais distante ao sul, havia outras fogueiras... meros pontinhos de luz. Mas, mesmo àquela distância, o rei picto e seu aliado celta podiam ver que estas fogueiras estavam arrumadas em ordem regular.

- As fogueiras das legiões. – murmurou Bran – As fogueiras que têm iluminado uma trilha ao redor do mundo. Os homens que acendem aquelas fogueiras têm pisado as raças sob seus calcanhares de ferro. E agora... nós, da urze, estamos encostados na parede. O que acontecerá amanhã?

- Vitória para nós, diz o sacerdote. – respondeu Cormac.

Bran fez um gesto impaciente:

- O luar no oceano. Vento nas copas dos abetos. Você acha que acredito nesta pantomima? Ou que gostei da matança de um legionário? Eu tenho que encorajar meu povo; foi para Gron e Bocah que eu deixei o velho Gonar ler os presságios. Os guerreiros lutarão melhor.

- E Gonar?

Bran riu.

- Gonar é velho demais para acreditar em qualquer coisa. Ele era alto sacerdote das Sombras, vinte anos antes de eu nascer. Ele afirma ser descendente direto daquele Gonar que era um feiticeiro nos dias de Brule, o Lanceiro, que foi o primeiro de minha linhagem. Ninguém sabe a idade dele... Às vezes, acho que ele é o Gonar original em pessoa!

- Pelo menos – disse uma voz zombeteira, e Cormac se sobressaltou quando uma figura indistinta apareceu ao seu lado –, pelo menos aprendi que, para manter a fé e confiança do povo, um sábio deve parecer um tolo. Conheço segredos que explodiriam até mesmo seu cérebro, Bran, se eu os contasse. Mas, para que o povo possa confiar em mim, devo me rebaixar às coisas que eles consideram a magia adequada... e dançar e gritar, e chocalhar peles de cobra, e me salpicar em sangue humano e vísceras de galinha.

Cormac olhou para o ancião com novo interesse. A semi-loucura de sua aparência havia desaparecido. Ele já não era mais o charlatão, o xamã que resmungava feitiços. A luz das estrelas dava a ele uma dignidade, que parecia lhe aumentar a própria altura, de modo que ele se erguia como um patriarca de barba branca.

- Bran, lá está sua dúvida. – O braço magro apontou para o quarto anel de fogueiras.

- Sim. – assentiu lugubremente o rei – Cormac... você sabe tanto quanto eu. A batalha de amanhã depende daquele círculo de fogueiras. Com as bigas dos bretões e seus próprios cavaleiros ocidentais, nosso triunfo seria certo, mas... certamente, o próprio demônio está no coração de cada escandinavo! Você sabe como eu cacei e apanhei este bando... como eles juraram lutar por mim contra Roma! E agora que o chefe deles, Rognar, está morto, juram que só serão liderados por um rei da própria raça deles! Do contrário, quebrarão seu juramento e passarão para o lado dos romanos. Sem eles, estamos condenados, pois não podemos mudar nosso plano.

- Coragem, Bran. – disse Gonar – Toque a jóia em sua coroa de ferro. Talvez ela lhe traga ajuda.

Bran riu amargamente:

- Agora você fala como o povo pensa. Não sou nenhum tolo para me enganar com palavras vazias. O que há nesta gema? Certo que ela é estranha, e me trouxe sorte até agora. Mas agora, eu não preciso de jóias, e sim da lealdade de 300 escandinavos volúveis, que são os únicos guerreiros entre nós que podem resistir ao ataque das legiões a pé.

- Mas a jóia, Bran, a jóia! – persistiu Gonar.

- Sim, a jóia! – gritou Bran, impaciente – Era velha quando a Atlântida e Lemúria afundaram no mar. Foi dada a Brule, o Lanceiro, primeiro de minha linhagem, pelo atlante Kull, rei da Valúsia, nos dias em que o mundo era jovem. Mas ela nos será vantajosa agora?

- Quem sabe? – perguntou evasivamente o feiticeiro – O tempo e o espaço não existem. O agora é tudo. Todas as coisas que já foram, são ou serão, acontecem agora. O homem está sempre no centro do que chamamos tempo e espaço. Fui ao ontem e amanhã, e ambos são tão reais quanto o hoje... que é como os sonhos de fantasmas! Mas me deixe dormir e falar com Gonar. Talvez ele nos ajude.

- O que ele quer dizer? – perguntou Cormac, encolhendo levemente os ombros, enquanto o sacerdote se afastava em direção às sombras.

- Ele sempre disse que o primeiro Gonar chega até ele em seus sonhos, e conversa com ele. – respondeu Bran – Eu o vi fazer coisas que pareciam além da percepção humana. Não sei. Sou apenas um rei desconhecido, com uma coroa de ferro, tentando levantar uma raça de selvagens do limo no qual afundaram. Vamos olhar os acampamentos.

Enquanto caminhavam, Cormac se perguntava. Por qual estranho capricho do destino havia tal homem se erguido entre esta raça de selvagens, sobreviventes de uma era obscura e sombria? Certamente, ele era um atavismo, um tipo original dos dias em que os pictos governaram toda a Europa, antes que seu império primitivo caísse diante das lâminas de bronze dos gauleses. Cormac sabia como Bran, se erguendo por esforços próprios da posição negligente de filho de um chefe do clã do Lobo, havia unido grandemente as tribos da urze, e agora reivindicava o reinado sobre toda a Caledônia. Mas seu governo era vago, e havia muito a ser feito, antes que os clãs pictos esquecessem suas rixas e oferecessem uma sólida frente de batalha a inimigos estrangeiros. Na batalha do dia seguinte, a primeira batalha acampada entre os pictos sob seu rei e os romanos, pendia o futuro do nascente reino picto.

Bran e seu aliado caminhavam pelo acampamento picto, onde os guerreiros moreno-escuros jaziam irregularmente ao redor de suas pequenas fogueiras, dormindo ou mastigando comida meio cozida. Cormac estava impressionado com o silêncio deles. Mil homens acampavam ali, mas os únicos sons eram entonações ocasionais, baixas e guturais. O silêncio da Idade da Pedra descansava nas almas daqueles homens.

Eram todos baixos – muitos deles com membros retorcidos. Anões gigantes; Bran Mak Morn era alto entre eles. Só os homens mais velhos tinham barba, e era rala, mas seus cabelos lhes caíam perto dos olhos, de modo que fitavam ferozmente sob as cabeleiras emaranhadas. Estavam descalços e mal-cobertos em peles de lobo. Suas armas consistiam em espadas curtas e farpadas, de ferro, pesados arcos negros; flechas com pontas de sílex, ferro e cobre, e marretas com cabeças de pedra. Não tinha qualquer armadura defensiva, exceto por um tosco escudo de madeira coberta de couro; muitos tinham pedaços forjados de metal dentro de suas revoltas cabeleiras, como uma leve proteção contra cortes de espadas. Uns poucos, filhos de longas linhagens de chefes, tinham membros esbeltos e flexíveis como Bran, mas, nos olhos de todos, brilhava a inextinguível selvageria do primitivo.

Estes homens eram totalmente selvagens, pensou Cormac – piores que os gauleses, bretões e germanos. Seriam verdadeiras as velhas lendas... de que eles reinaram numa época em que estranhas cidades se erguiam onde hoje rola o mar? E que eles sobreviveram à inundação que varreu e submergiu aqueles impérios brilhantes, afundando novamente naquela selvageria da qual um dia haviam saído?

Perto do acampamento dos homens das tribos, se encontravam as fogueiras de um grupo de bretões – membros de tribos ferozes que viviam ao sul da Muralha Romana, mas que moravam nas colinas e florestas a oeste, e desafiavam o poder de Roma. Eram homens poderosamente constituídos, com resplandecentes olhos azuis e desgrenhados cabelos amarelos, tais como os homens que se aglomeravam nas praias Ceanntish, quando César trouxe as Águias para dentro das Ilhas. Estes homens, assim como os pictos, não usavam armadura, e estavam escassamente vestidos em panos toscamente trabalhados e sandálias de pele de cervo. Traziam pequenos escudos redondos de madeira dura, reforçados com bronze, para serem usados no braço esquerdo, e longas e pesadas espadas de bronze, com pontas cegas. Alguns tinham arcos, embora os bretões não fossem bons arqueiros. Seus arcos eram mais curtos que os dos pictos, e eficazes só a curta distância. Mas, perto de suas fogueiras, estavam as armas que haviam feito do nome dos bretões uma palavra de terror para pictos, romanos e saqueadores nórdicos. Dentro do círculo de luz das fogueiras, havia 50 carruagens de bronze, com longas lâminas cruéis, curvadas para os lados. Uma única lâmina destas era capaz de desmembrar meia dúzia de homens de uma só vez. Amarrados ali perto, sob o olhar vigilante dos seus guardas, pastavam os cavalos das bigas – corcéis grandes e de membros longos, velozes e poderosos.

- Quem me dera que tivéssemos mais deles! – meditou Bran – Com mil bigas e meus arqueiros, eu poderia mandar as legiões para o mar.

- As tribos britânicas livres finalmente cairão diante de Roma. – disse Cormac – Parecia que elas correriam para se juntar a você em sua guerra.

Bran fez um gesto impotente:

- A volubilidade do celta. Eles não conseguem esquecer velhas rixas. Nossos anciãos nos disseram que eles nem sequer se uniram contra César, quando os romanos chegaram pela primeira vez. Nunca lutarão juntos contra um inimigo comum. Estes homens vieram até a mim, por causa de alguma disputa com o chefe deles, mas não posso confiar neles quando não estão realmente lutando.

Cormac assentiu:

- Eu sei. César conquistou a Gália jogando uma tribo contra outra. Meu próprio povo se move e muda, de acordo com o subir e descer das marés. Mas, de todos os celtas, os galeses são os mais inconstantes, os menos estáveis. Há não muitos séculos, meus próprios ancestrais gaélicos arrebataram Erin dos galeses aqueus, porque, embora eles nos superassem em número, nos enfrentaram mais como tribos separadas do que como nação.

- E é assim que estes galeses bretões enfrentam Roma. – disse Bran – Eles nos ajudarão amanhã. Depois, não posso dizer. Mas, como posso esperar lealdade de tribos estranhas, quando não tenho certeza de meu próprio povo? Milhares se escondem nas colinas, independentes. Sou rei apenas no nome. Deixe-me vencer amanhã, e eles se reunirão ao meu estandarte; se eu perder, irão se dispersar como pássaros diante de um vento frio.

Um coro de ásperas boas-vindas recebeu os dois líderes, quando entraram no acampamento dos gaélicos de Cormac. Eram 500 em número: homens altos, de membros longos, quase todos de cabelos negros e olhos cinzas, com o porte de homens que só vivem para guerra. Embora não houvesse nada semelhante a uma disciplina rigorosa entre eles, havia um ar de maior sistema e ordem prática do que existia nas linhas de batalha dos pictos e bretões. Estes homens eram da última raça celta que invadiu a ilha, e sua civilização bárbara era de uma ordem muito mais elevada que a de seus parentes galeses. Os ancestrais dos gaélicos haviam aprendido as artes da guerra nas vastas planícies da Cítia e nas cortes dos faraós, onde haviam lutado como mercenários do Egito, e muito do que haviam aprendido, eles trouxeram consigo para a Irlanda. Eles se sobressaíam no trabalho com metais, e estavam armados, não com toscas espadas de bronze, mas com armas de metal da mais alta categoria.

Estavam vestidos com kilts bem tecidos e sandálias de couro. Cada um usava uma leve camisa de cota-de-malha e um elmo sem visor, mas esta era toda a sua armadura defensiva. Celtas – gaélicos ou bretões – eram propensos a julgarem a bravura de um homem pela quantidade de armadura que ele usava. Os bretões que enfrentaram César achavam os romanos covardes, porque estes se recobriam em metal; e, muitos séculos depois, os clãs irlandeses pensaram o mesmo dos cavaleiros normandos de Strongbow, cobertos em cota-de-malha.

Os guerreiros de Cormac eram cavaleiros. Não conheciam nem apreciavam o uso do arco. Usavam o inevitável escudo redondo e reforçado com metal, punhais, longas espadas retas e leves machados de cabo curto. Seus cavalos amarrados pastavam a pouca distância... animais de ossos grandes, não tão pesados quanto os criados pelos bretões, porém mais velozes.

Os olhos de Bran se iluminaram enquanto os dois percorriam o acampamento.

- Estes homens são pássaros de guerra, com bicos afiados! Veja como afiam seus machados e zombam do amanhã! Como gostaria que os incursores dos outros acampamentos fossem tão firmes quanto seus homens, Cormac! Eu receberia as legiões com uma gargalhada, quando elas viessem do sul, amanhã.

Eles estavam entrando no círculo das fogueiras dos escandinavos. Trezentos homens estavam sentados ao redor delas, jogando, afiando as armas e bebendo intensamente a cerveja, feita com planta dos pântanos e fornecida a eles por seus aliados pictos. Olharam para Bran e Cormac com pouca amizade. Era impressionante notar a diferença entre eles e os pictos e celtas – a diferença em seus olhos frios, seus fortes rostos taciturnos e em seus próprios modos. Ali havia ferocidade e selvageria, mas não a fúria louca e explosiva do celta. Ali havia ferocidade respaldada por uma determinação sombria e uma teimosia imperturbável. O ataque dos clãs bretões era terrível e esmagador. Mas não tinha paciência; se fossem frustrados de uma vitória imediata, eram capazes de perder o ânimo e se dispersarem, ou caírem em disputa entre eles próprios. Havia a paciência do frio Norte azul nestes marinheiros... uma paciência duradoura, que os manteria inabaláveis até o amargo fim, vez que estavam voltados para uma meta definida.

Quanto à estatura pessoal, eram gigantes; maciços, mas com membros longos. Sobre não compartilharem as idéias dos celtas sobre armaduras, isso era demonstrado pelo fato de vestirem pesadas camisas de cota-de-malha com escamas, as quais lhes alcançavam a metade das coxas; pesados elmos com chifres e perneiras de couro endurecido, reforçadas, assim como seus calçados, com lâminas de ferro. Seus escudos eram enormes e ovais, feitos de madeira endurecida, couro e latão. Como armas, tinham longas lanças com pontas de ferro, pesados machados de ferro e adagas. Alguns tinham longas espadas, de lâmina larga.

Cormac se sentia pouco à vontade com os frios olhos magnéticos destes homens de cabelos cor-de-palha, fixos nele. Eram inimigos hereditários, embora tivessem sorte de estarem lutando do mesmo lado atualmente. Mas... estavam do mesmo lado?

Um homem se adiantou; um guerreiro alto e magro, em cujo cicatrizado rosto lupino a luz trêmula da fogueira refletia sombras profundas. Com seu manto de pele de lobo, lançado sem cuidados sobre seus ombros largos, e os grandes chifres em seu capacete lhe aumentando a estatura, ele estava lá, nas sombras oscilantes, como uma coisa semi-humana, uma figura meditativa do barbarismo sombrio que estava prestes a engolfar o mundo.

- Bem, Wulfhere – disse o rei picto –, você bebeu o hidromel do conselho e falou ao redor das fogueiras... qual a sua decisão?

Os olhos do escandinavo lampejaram na escuridão:

- Dê-nos um rei de nossa própria raça para seguirmos, se quiser que lutemos por você.

Bran abriu violentamente os braços:

- Peça-me para arrancar as estrelas do alto, a fim de enfeitar seus capacetes! Seus camaradas não vão nos seguir?

- Não contra as legiões. – respondeu Wulfhere, de mau humor – Um rei nos guiou na trilha viking... um rei deve nos guiar contra os romanos. E Rognar está morto.

- Eu sou um rei. – disse Bran – Lutarão por mim, se eu ficar na ponta de sua cunha de combate?

- Um rei de nossa raça. – disse Wulfhere teimosamente – Somos todos homens selecionados do Norte. Não lutamos por ninguém, exceto por um rei, e um rei deve nos liderar... contra as legiões.

Cormac sentiu uma sutil ameaça nesta frase repetida.

- Aqui está um príncipe de Erin. – disse Bran – Lutará pelo homem do ocidente?

- Não lutamos sob nenhum celta, do oeste ou do leste. – grunhiu o viking, e um baixo ronco de aprovação se ergueu dos espectadores – Já basta lutarmos ao lado deles.

O quente sangue gaélico se ergueu ao cérebro de Cormac, e ele afastou Bran para trás, com a mão na espada:

- O que quer dizer com isso, pirata?

Antes que Wulfhere pudesse responder, Bran se interpôs:

- Já basta! Estúpidos, perderão a batalha antes de lutarem-na, por causa de sua loucura? E quanto ao seu juramento, Wulfhere?

- Juramos sob Rognar; quando ele foi morto por uma flecha romana, ficamos isentos dele. Seguiremos somente a um rei... contra as legiões.

- Mas seus companheiros lhe seguirão... contra o povo da urze! – disse Bran com impertinência.

- Sim. – os olhos do escandinavo encontraram cinicamente os dele – Mande-nos um rei, ou amanhã nos juntaremos aos romanos.

Bran rosnou. Em sua fúria, ele dominava a cena, apequenando os homens enormes que se erguiam acima dele.

- Traidores! Mentirosos! Tenho suas vidas em minha mão! Sim, puxem suas espadas, se quiserem... Cormac, deixe sua lâmina na bainha. Estes lobos não vão morder um rei! Wulfhere... eu poupei suas vidas, quando poderia tê-las arrancado.

“Você vieram assolar os países do Sul, descendo do mar setentrional em suas galés. Devastaram as costas, e a fumaça das aldeias queimadas ficou suspensa como uma nuvem sobre as praias da Caledônia. Armei uma cilada para todos vocês, enquanto estavam pilhando e queimando... com o sangue de meu povo em suas mãos. Queimei seus longos navios e os embosquei quando me perseguiram. Com três vezes seu número de arqueiros, ansiosos por suas vidas e escondidos nas colinas de urze ao redor de vocês, eu lhes poupei quando poderia tê-los flechado como lobos encurralados. Por eu tê-los poupado, vocês juraram lutar por mim”.

- E morreremos porque os pictos lutam contra Roma? – resmungou um incursor barbudo.

- Suas vidas me pertencem; vocês vieram devastar o Sul. Não lhes prometi mandá-los de volta aos seus lares no Norte, intactos e carregados de saque. Seu juramento foi o de lutar uma batalha contra Roma sob meu estandarte. Então, ajudarei seus sobreviventes a construírem navios, e vocês poderão ir para onde quiserem, com uma boa parte da pilhagem que tomarmos das legiões. Rognar manteve seu juramento. Mas Rognar morreu numa escaramuça com batedores romanos, e agora, você, Wulfhere, o Criador de Discórdias, incita seus companheiros a se desonrarem com aquilo que um escandinavo odeia: a quebra do próprio juramento.

- Não quebramos juramento algum. – rosnou o viking, e o rei sentiu a teimosia básica do germano, mais difícil de combater do que a volubilidade dos belicosos celtas – Dê-nos um rei que não seja picto, gaélico nem bretão, e morreremos por você. Se não... amanhã lutaremos pelo maior de todos os reis: o imperador de Roma!

Por um momento, Cormac pensou que o rei picto, em sua fúria negra, fosse puxar a espada e matar o escandinavo. A fúria concentrada, que ardia nos olhos escuros de Bran, fez Wulfhere recuar e deitar a mão sobre o cinto.

- Idiota! – disse Mak Morn, numa voz baixa que vibrava de ira – Eu poderia varrê-los da terra, antes que os romanos fiquem próximos o bastante para lhes ouvir os uivos de morte. Escolham: lutem por mim amanhã... ou morram esta noite, sob uma nuvem negra de flechas, uma tempestade vermelha de espadas e uma onda escura de carruagens!

Diante da menção das carruagens, a única arma de guerra que havia quebrado a parede de escudos nórdicos, a expressão de Wulfhere mudou, mas ele manteve a posição.

- Será guerra. – ele disse teimosamente – Ou um rei para nos guiar!

Os escandinavos responderam com um breve e profundo rugido, e um chocar de espadas e escudos. Bran, com os olhos faiscantes, estava prestes a falar novamente, quando uma forma branca deslizou silenciosamente para dentro do anel de fogueiras.

- Acalmem suas palavras, acalmem suas palavras. – disse tranqüilamente o velho Gonar – Rei, não diga mais nada. Wulfhere e seus companheiros lutarão por nós, se tiverem um rei para guiá-los?

- Nós já o juramos.

- Então, tenham calma – disse o mago –, pois, antes que a batalha aconteça ao amanhecer, lhes enviarei um rei como nenhum homem na terra seguiu por cem mil anos! Um rei que não é picto, gaélico nem bretão, mas um para diante do qual o imperador de Roma não passa de um chefe de aldeia!

Enquanto eles permaneciam indecisos, Gonar tomou os braços de Cormac e Bran:

- Venham. E vocês, escandinavos, lembrem-se de sua palavra e da minha promessa, a qual nunca quebrei. Agora durmam, e não pensem em escapulirem na escuridão para o acampamento romano, pois se escaparem de nossas flechas, não escapariam da minha maldição ou das suspeitas dos legionários.

Assim, os três se afastaram, e Cormac, olhando para trás, viu Wulfhere de pé diante da fogueira, passando os dedos pela barba dourada, com um olhar de ira perplexa no delgado rosto maligno.

Os três andavam silenciosamente através da urze ondulante, sob as estrelas distantes, enquanto o estranho vento noturno lhes sussurrava segredos fantasmagóricos ao redor.

- Eras atrás – disse subitamente o mago –, nos dias em que o mundo era jovem, grandes terras se erguiam onde agora ruge o oceano. Naquelas terras, se aglomeravam nações e reinos poderosos. O maior de todos estes era a Valúsia... Terra de Encantamento. Roma é uma aldeia, comparada ao esplendor das cidades da Valúsia. E o maior rei foi Kull, que veio da terra da Atlântida para arrancar a coroa da Valúsia de uma dinastia degenerada. Os pictos, que viviam nas ilhas que agora formam os picos montanhosos de uma terra estranha no Oceano Ocidental, eram aliados da Valúsia, e o maior de todos os chefes guerreiros pictos era Brule, o Lanceiro, primeiro da linhagem à qual os homens chamam de Mak Morn.

“Kull deu a Brule a jóia que você usa agora em sua coroa de ferro, ó rei, após uma estranha batalha numa terra obscura, e ao longo das eras, ela chegou até nós; sempre um símbolo dos Mak Morn, um símbolo de antiga grandeza. Quando o mar finalmente se ergueu e engoliu a Valúsia, a Atlântida e a Lemúria, só os pictos sobreviveram, e eram poucos e dispersos. Mas começaram novamente a lenta ascensão e, embora muitas das artes da civilização estivessem perdidas na grande inundação, eles progrediram. A arte da metalurgia estava perdida, e assim eles se sobressaíram trabalhando a pedra. E governaram todas as novas terras erguidas pelo mar e agora chamadas de Europa, até, que descendo do norte, vieram tribos mais jovens que mal se distinguiam do macaco quando a Valúsia reinava em sua glória, e que, morando em terras glaciais ao redor do Pólo, nada sabiam do esplendor dos Sete Impérios e pouco sabiam da inundação que havia varrido meio mundo.

“E continuaram chegando... arianos, celtas, germanos, se movendo em multidões desde o grande berço de sua raça, que fica próximo ao Pólo. Assim, mais uma vez, o crescimento da nação picta foi detido, e a raça lançada à selvageria. Apagados da terra, nós lutamos na orla do mundo, com as costas na parede. Aqui, na Caledônia, está o último assento de uma raça outrora poderosa. E mudamos. Nosso povo se misturou com os selvagens de uma era mais antiga, aos quais mandamos para o Norte quando adentramos as Ilhas, e agora, exceto por seus chefes, como tu, Bran, um picto é estranho e repugnante de se olhar”.

- Certo, certo – disse impacientemente o rei –; mas, o que isso tem a ver com...?

- Kull, rei da Valúsia – disse imperturbavelmente o feiticeiro –, era um bárbaro em sua era, como tu és na tua, embora ele tenha governado um poderoso império pelo peso de sua espada. Gonar, amigo de Brule, seu primeiro antepassado, está morto há cem mil anos, como contamos o tempo. Mas falei com ele há apenas uma hora atrás.

- Você falou com o fantasma dele...

- Ou ele com o meu? Voltei cem mil anos, ou ele avançou? Se ele veio a mim desde o passado, não sou eu que falei com um homem morto, mas ele que falou com um homem não-nascido. O passado, o presente e o futuro são um só para o sábio. Falei com Gonar enquanto ele estava vivo; do mesmo modo, eu estava vivo. Numa terra sem tempo nem espaço, nos encontramos e ele me disse muitas coisas.

A terra estava se iluminando com o nascer da aurora. A urze ondulava e se inclinava em longas fileiras diante do vento do amanhecer, como que se curvando em adoração ao sol nascente.

- A jóia em sua coroa é um imã que atrai os eons. – disse Gonar – O sol está se erguendo... e quem vem do nascer do sol?

Cormac e o rei se sobressaltaram. O sol acabava de erguer uma esfera vermelha sobre as colinas do leste. E, bem no brilho, vigorosamente destacado contra o aro dourado, um homem apareceu subitamente. Eles não o viram chegar. Contra o nascimento dourado do dia, ele avultava colossal; um deus gigantesco da aurora da criação. Enquanto ele andava a passos largos em direção a eles, as hostes que acordavam o viram e lançaram um súbito grito de espanto.

- Quem... ou o que é? – exclamou Bran.

- Vamos ao encontro dele, Bran. – respondeu o mago – É o rei que Gonar enviou para salvar o povo de Brule.


2) “Alcancei estas terras agora
Desde uma remota e obscura Thule;
De um meio selvagem e misterioso, que jaz sublime
À parte do Espaço... à parte do Tempo”.

(Edgar Allan Poe)

O exército caiu em silêncio, enquanto Bran, Cormac e Gonar iam em direção ao estranho que se aproximava a desembaraçados passos largos. Ao chegarem perto dele, a ilusão de tamanho monstruoso desapareceu, mas viram que ele era um homem de grande estatura. A princípio, Cormac pensou que fosse um escandinavo, mas uma segunda olhada lhe mostrou que nunca antes tinha visto tal homem, em nenhum lugar. Sua constituição era muito parecida com a dos vikings: ao mesmo tempo volumosa e esbelta... como a de um tigre. Mas suas feições não eram como as deles, e sua cabeleira leonina, de corte reto, era tão negra quanto a de Bran. Sob espessas sobrancelhas, brilhavam olhos tão cinzas quanto o aço e tão frios quanto o gelo. Seu rosto bronzeado, forte e impenetrável, estava completamente barbeado, e a testa larga indicava uma grande inteligência, do mesmo modo que a mandíbula firme e os lábios finos mostravam força de vontade e coragem. Porém, mais do que tudo, seu porte e a inconsciente imponência leonina o marcavam como um rei natural, um governante de homens.

Sandálias de feitio curioso lhe calçavam os pés, e ele vestia um flexível colete de malha estranhamente trabalhada, o qual lhe chegava quase aos joelhos. Um cinto largo, com uma grande fivela dourada, lhe circundava a cintura, segurando uma espada longa e fina, numa pesada bainha de couro. Seu cabelo estava preso por uma larga faixa compacta, de ouro, ao redor da cabeça.

Assim era o homem que parou diante do grupo silencioso. Ele parecia levemente perplexo e divertido. O reconhecimento faiscou em seus olhos. Ele falou num Picto estranho e arcaico, ao qual Cormac mal entendeu. Sua voz era profunda e ressonante.

- Olá, Brule, Gonar não me disse que eu sonharia com você!

Pela primeira vez em sua vida, Cormac viu o rei picto completamente desestabilizado. Ele abriu a boca, mudo. O estranho continuou:

- E usando a gema que lhe dei, num diadema em sua cabeça! Na noite passada, você a usava num anel em seu dedo.

- Noite passada? – ofegou Bran.

- Noite passada, ou há cem mil anos... tudo é um! – murmurou Gonar, em evidente deleite diante da situação.

- Eu não sou Brule. – disse Bran – Você é louco em falar assim de um homem morto há cem mil anos? Ele foi o primeiro de minha linhagem.

O forasteiro riu inesperadamente:

- Bem, agora eu sei que estou sonhando! Será uma história para contar a Brule, quando eu acordar de manhã! Que eu fui ao futuro, e vi homens afirmando descenderem do Lanceiro que ainda nem se casou. Não, você não é Brule, agora eu vejo, embora você tenha os olhos e o porte dele. Mas ele é mais alto e tem ombros mais largos. Contudo, você tem a jóia dele... ah, bom... qualquer coisa pode acontecer num sonho, de modo que não vou discutir com você. Por um momento, pensei ter sido transportado para alguma terra durante o sono, e que estivesse na realidade despertado num país estranho, pois este é o sonho mais claro que já tive. Quem é você?

- Sou Bran Mak Morn, rei dos pictos caledônios. E este ancião é Gonar, um feiticeiro da linhagem de Gonar. E este guerreiro é Cormac de Connacht, um príncipe da ilha de Erin.

O estranho sacudiu lentamente a cabeça leonina:

- Estas palavras me soam estranhas, exceto Gonar... e este não é Gonar, embora também seja velho. Que terra é esta?

- Caledônia; ou Alba, como os gaélicos a chamam.

- E quem são aqueles guerreiros acocorados e simiescos, que nos olham de longe, boquiabertos?

- São os pictos aos quais governo.

- Como as pessoas ficam estranhamente distorcidas em sonhos! – murmurou o forasteiro – E quem são aqueles homens de cabelos desgrenhados ao redor das bigas?

- São bretões... galeses do sul da Muralha.

- Que Muralha?

- A Muralha, construída por Roma, para manter o povo da urze fora da Bretanha.

- Bretanha? – o tom era de curiosidade – Nunca ouvi falar nessa terra... e o que é Roma?

- O quê?! – exclamou Bran – Você nunca ouviu falar em Roma, o império que governa o mundo?

- Nenhum império governa o mundo. – respondeu altivamente o outro – O reino mais poderoso da Terra é aquele no qual eu reino.

- E quem é você?

- Kull da Atlântida, rei da Valúsia!

Cormac sentiu um calafrio lhe percorrer a espinha. Os frios olhos cinzas estavam firmes... mas aquilo era incrível... monstruoso... anti-natural.

- Valúsia! – exclamou Bran – Ora, homem, as ondas do mar rolaram sobre os pináculos da Valúsia há incontáveis séculos.

Kull riu imediatamente:

- Que louco pesadelo! Quando Gonar me pôs o feitiço do sono profundo na noite passada... ou nesta noite... na sala secreta do palácio interno, ele me disse eu sonharia com coisas estranhas, mas isto é mais fantástico do que eu imaginava. E a coisa mais estranha é que eu sei que estou sonhando!

Gonar se interpôs, antes que Bran falasse:

- Não discuta os atos dos deuses. – murmurou o feiticeiro – Você é rei porque, no passado, você viu e aproveitou as oportunidades. Os deuses do primeiro Gonar lhe enviaram este homem. Deixe-me tratar com ele.

Bran assentiu, e enquanto o exército silencioso se embasbacava em mudo espanto, Gonar lhe falou ao ouvido:

- Ó grande rei, você sonha, mas acaso a vida toda não é um sonho? Como pode saber se sua vida anterior não apenas um sonho, do qual acaba de acordar? Agora nós, o povo dos sonhos, temos nossas guerras e nossa paz, e agora mesmo uma grande hoste se aproxima do sul, para destruir o povo de Brule. Você vai nos ajudar?

Kull sorriu largamente, com puro entusiasmo:

- Sim! Já lutei batalhas em sonhos antes, já matei e fui morto, e me assombrei ao acordar de minhas visões. E, às vezes, como agora, sabia que estava sonhando. Veja, eu me belisco e sinto, mas sei que estou sonhando, pois já senti a dor de ferimentos violentos, em sonhos. Sim, povo de meu sonho, lutarei por vocês contra outro povo do sonho. Onde estão eles?

- E, para que desfrute mais do sonho – disse subitamente o mago –, esqueça que é um sonho e faça de conta que, pela magia do primeiro Gonar e a qualidade da jóia que você deu a Brule, a qual agora brilha na coroa do Morni, você tenha sido realmente transportado para diante a uma outra era, mais selvagem, onde o povo de Brule luta por sua vida contra um inimigo mais forte.

Por um momento, o homem que chamava a si mesmo de rei da Valúsia pareceu sobressaltado; uma estranha expressão de dúvida, quase de medo, lhe nublou os olhos. Logo ele riu.

- Bom! Conduza-me feiticeiro.

Mas agora Bran interveio. Ele havia se recuperado e estava tranqüilo. Se ele pensava, como Cormac, que aquilo era uma grande farsa arranjada por Gonar, não deu sinais.

- Rei Kull, está vendo aqueles homens lá longe, que se apóiam em seus machados de cabos longos, enquanto lhe contemplam?

- Os homens altos, de cabelos e barbas douradas?

- Sim... nosso sucesso na batalha que se aproxima depende deles. Eles juram que passarão para o lado do inimigo, se não dermos a eles um rei para guiá-los... o deles está morto. Você os guiará para a batalha?

Os olhos de Kull arderam com estima:

- São homens semelhantes aos meus próprios Matadores Vermelhos, meu melhor regimento. Vou liderá-los.

- Então venha.

O pequeno grupo desceu a inclinação, através de multidões de guerreiros que avançavam ansiosas para terem uma melhor visão do forasteiro, e logo recuavam quando ele se aproximava. Uma subcorrente de sussurros tensos corria pela horda.

Os escandinavos estavam à parte, num grupo compacto. Seus olhos frios se cravaram em Kull, e ele lhes devolveu os olhares, observando cada detalhe da aparência deles.

- Wulfhere – disse Bran –, nós lhe trouxemos um rei. Faço você lembrar-se de seu juramento.

- Deixe que ele fale conosco. – disse asperamente o viking.

- Ele não pode falar sua língua. – respondeu Bran, sabendo que os escandinavos nada sabiam das lendas de sua raça – Ele é um grande rei do Sul...

- Ele vem do passado. – interrompeu calmamente o feiticeiro – Ele foi o maior de todos os reis, há muito tempo.

- Um morto!

Os vikings se moveram inquietos, e o resto da horda avançou, bebendo cada palavra. Mas Wulfhere franziu a testa:

- Um fantasma liderará homens vivos? Você nos traz um homem que você diz estar morto. Não seguiremos um cadáver.

- Wulfhere – disse Bran em fúria calma –, você é um mentiroso e um traidor. Você nos deu esta tarefa, imaginando-a impossível. Você está ansioso para lutar sob as Águias de Roma. Nós lhe trouxemos um rei que não é picto, nem gaélico nem bretão, e você nega seu juramento!

- Então, deixe-o lutar comigo! – uivou Wulfhere, em fúria incontrolável, girando o machado ao redor da cabeça num arco cintilante – Se seu morto me vencer... então minha gente lhe seguirá. Se eu o vencer, você nos deixará partir em paz para o acampamento das legiões!

- Bom! – disse o mago – Estão de acordo, lobos do Norte?

Um brado feroz e um brandir de espadas foram a resposta. Bran se voltou para Kull, que havia permanecido em silêncio, sem entender nada do que foi dito. Mas os olhos do atlante lampejavam. Cormac sentiu que aqueles olhos frios haviam visto muitas cenas como aquela, para não entenderem algo do que havia passado.

- Este guerreiro diz que você deve lutar com ele pela liderança. – disse Bran, e Kull, com os olhos brilhando pela crescente alegria do combate, assentiu:

- Eu já imaginava. Dê-nos espaço!

- Um escudo e um elmo! – gritou Bran, mas Kull sacudiu a cabeça:

- Não preciso de nenhum. – ele grunhiu – Para trás, e nos dê espaço para girarmos nossos aços!

Os homens recuaram de ambos os lados, formando um sólido anel ao redor dos dois homens, que agora se aproximavam cautelosamente um do outro. Kull havia desembainhado sua espada, e a grande lâmina tremeluzia em sua mão como um ser vivo. Wulfhere, cicatrizado por cem lutas selvagens, lançou para o lado seu manto de pele de lobo e se aproximou cautelosamente, os olhos ferozes despontando sobre o topo de seu escudo estendido e o machado meio erguido na mão direita.

Súbito, quando os guerreiros ainda estavam a alguns metros de distância, Kull saltou. Seu ataque arrancou um ofego de homens acostumados a atos de bravura; pois, como um tigre saltando, ele cruzou o ar e sua espada se chocou no escudo rapidamente erguido. Faíscas voaram, e o machado de Wulfhere golpeou, mas Kull estava sob seu giro e, enquanto ele assobiava malignamente sobre sua cabeça, ele estocou para cima e se afastou novamente de um pulo, como um gato. Seus movimentos foram rápidos demais para serem acompanhados com os olhos. A borda superior do escudo de Wulfhere apresentava um corte profundo, e havia um longo rasgo em sua cota-de-malha, onde a espada de Kull por pouco não havia cortado a carne sob ela.

Cormac, tremendo com a terrível vibração da luta, se perguntou sobre aquela espada, que conseguia cortar cota-de-malha daquele jeito. E o golpe que cortou o escudo deveria ter despedaçado a lâmina. Mas o aço valusiano não apresentava um só talho! Com certeza, esta lâmina foi forjada por outro povo, em outra era!

Agora, os dois gigantes saltavam novamente ao ataque e, como dois raios, suas armas se entrechocaram. O escudo de Wulfhere caiu em dois pedaços de seu braço, quando a espada do atlante o partiu, e Kull cambaleou quando o machado do escandinavo, dirigido com toda a força de seu grande corpo, desceu sobre o diadema dourado em sua cabeça. Aquele golpe deveria ter atravessado o ouro como manteiga, para partir o crânio sob ele, mas o machado ricocheteou, mostrando um grande corte no gume. No instante seguinte, o escandinavo foi submerso por um turbilhão de aço... uma tempestade de golpes, dada com tamanha rapidez e força, que ele foi levado para trás, como se na crista de uma onda, incapaz de lançar seu próprio ataque. Com toda sua habilidade experimentada, ele tentou aparar, com seu machado, o aço que cantava. Mas ele só conseguiu evitar seu destino por poucos segundos; só conseguiu, por um momento, desviar a lâmina assobiante que lhe cortava a cota-de-malha em pedacinhos, de tão perto que caíam os golpes. Um dos chifres lhe voou do elmo; logo, a própria cabeça do machado caiu, e o mesmo golpe que cortou o cabo mordeu, através do elmo do viking, o couro cabeludo sob ele. Wulfhere foi derrubado de joelhos, com um fio de sangue lhe brotando do rosto.

Kull deteve seu segundo golpe e, lançando a espada para Cormac, enfrentou sem armas o atordoado escandinavo. Os olhos de atlante resplandeciam com alegria feroz, e ele rugiu algo numa língua estranha. Wulfhere se levantou e saltou, rosnando feito um lobo, um punhal lhe faiscando na mão. A horda de espectadores soltou um uivo que rasgou os céus, quando os dois corpos se chocaram. A mão de Kull não conseguiu agarrar o pulso do escandinavo, mas o punhal desesperadamente arremetido se partiu na malha do atlante e, deixando o cabo inútil cair, Wulfhere fechou os braços ao redor do inimigo, num abraço de urso que quebraria as costelas de um homem menor. Kull sorriu como um tigre e devolveu a abraço, e, por um momento, os dois oscilaram sobre os pés. Lentamente, o guerreiro de cabelos negros curvou o adversário para trás, até parecer que a coluna deste ia se quebrar. Com um uivo que nada tinha de humano, Wulfhere arranhou furiosamente o rosto de Kull, tentando lhe arrancar os olhos, e logo virou a cabeça e cravou os dentes como presas no braço do atlante. Um uivo se ergueu, quando brotou um fio de sangue:

- Ele sangra! Ele sangra! Ele não é fantasma, afinal de contas, mas um homem mortal!

Enraivecido, Kull mudou o aperto, empurrando o espumante Wulfhere para longe e golpeando-o terrivelmente sob a orelha com a mão direita. O viking caiu de costas a mais de três metros de distância. Depois, uivando feito um louco, ele se ergueu de um salto, com uma pedra na mão, e a arremessou. Só a incrível rapidez de Kull lhe salvou o rosto; mesmo assim, o fio áspero do projétil lhe rasgou a bochecha e o inflamou de loucura. Com um rugido leonino, ele pulou sobre seu inimigo, o envolveu com uma explosão irresistível de pura fúria, o girou bem acima da cabeça como se fosse uma criança e o lançou a três metros de distância. Wulfhere caiu pesadamente e ficou imóvel... quebrado e morto.

Um silêncio deslumbrado reinou por um instante; logo, se ergueu dos gaélicos um rugido trovejante, e os bretões e pictos se uniram a ele, uivando como lobos, até os ecos dos gritos e o estrondo das espadas sobre os escudos alcançarem os ouvidos dos legionários em marcha, milhas ao sul.

- Homens do Norte cinza – gritou Bran –, manterão agora seu juramento?

As almas ferozes dos escandinavos estavam em seus olhos, quando seu porta-voz respondeu. Primitivos, supersticiosos, mergulhados na tradição tribal de deuses guerreiros e heróis míticos, eles não duvidavam que o combatente de cabelos negros fosse algum ser sobrenatural, enviado pelos ferozes deuses da batalha.

- Sim! Nunca vimos um homem como este! Morto, fantasma ou demônio, nós o seguiremos, seja na trilha para Roma ou para Valhalla!

Kull entendeu o significado, apesar de não entender as palavras. Pegando sua espada de Cormac, com uma palavra de agradecimento, ele se voltou para os escandinavos que esperavam e, silenciosamente, segurou a lâmina acima da cabeça, em direção a eles, com ambas as mãos, antes de devolvê-la à bainha. Apreciaram a ação sem entendê-la. Manchado de sangue e despenteado, ele era uma impressionante figura de barbarismo majestoso e magnífico.

- Venha – disse Bran, tocando o braço do atlante –; um exército está marchando até nós, e temos muito a fazer. Há pouco tempo para arrumarmos nossas forças, antes que eles estejam sobre nós. Venha para o alto daquela elevação.

Lá, o picto apontou. Eles olhavam em direção a um vale que corria de norte a sul, se alargando desde uma garganta estreita ao norte até desembocar sobre uma planície ao sul. Todo o vale tinha menos de 1600 metros de comprimento.

- Nossos inimigos subirão este vale – disse o picto –, porque eles têm carroças carregadas de suprimentos e, em todos os lados deste vale, o chão é muito áspero para tal viagem. Aqui, nós planejamos uma emboscada.

- Eu pensei que você tivesse seus homens postados à espera há muito tempo. – disse Kull – E quanto aos batedores que o inimigo certamente enviará?

- Os selvagens que lidero jamais aguardariam tanto tempo numa emboscada. – disse Bran, com um toque de amargura – Eu não poderia postá-los até estar certo dos escandinavos. Mesmo assim, eu não ousaria postá-los antes de agora... eles podem ficar em pânico por causa da passagem de uma nuvem ou de uma folha soprada pelo vento, e se dispersarem como pássaros diante de um vento frio. Rei Kull... o destino da nação picta está em jogo. Sou chamado de rei dos pictos, mas meu governo até agora não passa de uma zombaria oca. As colinas estão cheias de clãs selvagens, que se recusam a lutar por mim. Dos mil arqueiros que estão agora sob meu comando, mais da metade são de meu próprio clã.

“Uns 80 mil romanos estão marchando contra nós. Não é uma invasão autêntica, mas muita coisa depende dela. É o começo de uma tentativa de estenderem suas fronteiras. Eles planejaram construir uma fortaleza a um dia de marcha ao norte deste vale. Se o fizerem, construirão outros fortes, traçando faixas de aço ao redor do coração do povo livre. Se eu vencer esta batalha e varrer este exército, terei uma vitória dupla. Então, as tribos se unirão a mim, e a próxima invasão encontrará um muro sólido de resistência. Se eu perder, os clãs se dispersarão, fugindo para o norte até não poderem mais, lutando mais como clãs separados do que como uma nação forte.

“Tenho 1000 arqueiros, 500 cavaleiros, 50 bigas com seus condutores e guerreiros... 150 homens, ao todo... e, graças a você, 300 piratas escandinavos fortemente armados. Como você arrumaria suas linhas de batalha?”.

- Bem – disse Kull –, eu colocaria barricadas no extremo norte do vale... não! Isso sugeriria uma armadilha. Mas eu o bloquearia com um bando de homens desesperados, como estes que você me deu para guiar. Trezentos poderiam manter a garganta por um tempo contra qualquer número. Então, quando o inimigo estivesse lutando contra estes homens na parte estreita do vale, eu faria meus arqueiros dispararem sobre eles, de ambos os lados do vale, até suas fileiras se quebrarem. Depois, mantendo meus cavaleiros ocultos atrás de uma aresta e minhas carruagens atrás de outra, atacaria com ambos simultaneamente e varreria o inimigo numa destruição vermelha.

Os olhos de Bran brilharam:

- Exatamente, rei da Valúsia. Este era meu plano exato...

- Mas, e quanto aos batedores?

- Meus guerreiros são como panteras; se escondem debaixo dos narizes dos romanos. Aqueles que cavalgarem dentro do vale só verão o que quisermos que eles vejam. Aqueles que cavalgarem sobre a aresta não retornarão para informar. Uma flecha é veloz e silenciosa.

“Como vê, o pivô de tudo depende dos homens que defendem o desfiladeiro. Devem ser homens capazes de lutar a pé, e de resistirem ao ataque dos pesados legionários, o tempo suficiente para a armadilha se fechar. Além desses escandinavos, não tenho tal força de homens. Meus guerreiros nus, com suas espadas curtas, nunca conseguiram agüentar tal ataque por um instante. Nem as armaduras dos celtas são feitas para tal trabalho; além disso, eles não lutam a pé, e preciso deles em outro lugar.

“Desse modo, você vê por que preciso tão desesperadamente dos escandinavos. Agora, você estará com eles no desfiladeiro e deterá os romanos, até que eu possa lançar a armadilha? Lembre-se, muitos de vocês morrerão”.

Kull sorriu:

- Tenho corrido riscos a vida inteira, embora Tu, o conselheiro-chefe, dissesse que minha vida pertence à Valúsia e que eu não tenho o direito de arriscá-la... – Sua voz se quebrou, e uma estranha expressão lhe percorreu o rosto – Por Valka – ele disse, rindo incerto –, às vezes esqueço que isto é um sonho! Tudo parece tão real. Mas é... claro que é! Bom, então se eu morrer, simplesmente acordarei como já fiz no passado. Avante, rei da Caledônia!

Cormac, indo até seus guerreiros, se interrogava. Certamente, era tudo uma farsa; mas... ele ouvia as discussões dos guerreiros ao redor, enquanto eles se armavam e se preparavam para tomarem seus postos. O rei de cabelos negros era o próprio Neid, o deus celta da guerra; era um rei antediluviano, trazido do passado por Gonar; era um guerreiro mítico saído do Valhalla. Não era um homem, afinal, mas um fantasma! Não, ele era mortal, pois havia sangrado. Mas os próprios deuses sangravam, embora não morressem. Assim, as controvérsias se inflamavam. Pelo menos, pensou Cormac, se era tudo uma farsa para inspirar os guerreiros com a sensação de ajuda sobrenatural, ela deu certo. A crença de que Kull era mais que um homem mortal havia inflamado igualmente ao celta, picto e viking, numa espécie de loucura inspirada. E Cormac se perguntava... no que ele acreditava? Este homem era certamente de alguma terra distante... Mas, em cada aspecto e ação dele, havia uma vaga sugestão de uma diferença maior do que mera distância de espaço – uma sugestão de Tempo distinto, de abismos nebulosos e gigantescos golfos de eons, jazendo entre o forasteiro de cabelos negros e os homens com quem andava e conversava. Nuvens de perplexidade confundiram o cérebro de Cormac, e ele gargalhou em extravagante mofa de si mesmo.


3) “E os dois povos selvagens do norte
Se enfrentaram ao anoitecer,
E ouviram e conheceram, cada um em sua mente,
Um terceiro clamor sobre o vento,
Os muros vivos que dividem a humanidade,
Os muros em marcha de Roma”.

(Chesterton)

O sol se inclinava em direção ao leste. O silêncio jazia como uma bruma invisível sobre o vale. Cormac juntou as rédeas na mão e ergueu o olhar para as arestas em ambos os lados. A urze ondulante, que crescia em abundância naquelas elevações íngremes, não dava evidência das centenas de guerreiros selvagens que se escondiam ali. Na garganta estreita, que se alargava gradualmente para o sul, se encontrava o único sinal de vida. Entre as paredes íngremes, 300 escandinavos se aglomeravam solidamente, em sua muralha de escudos em forma de cunha, bloqueando o desfiladeiro. Na extremidade, como a ponta de uma lança, estava o homem que chamava a si próprio Kull, rei da Valúsia. Não usava elmo – só a grande e estranhamente trabalhada faixa de ouro duro –, mas trazia, no braço esquerdo, o grande escudo usado pelo falecido Rognar; e, na mão direita, segurava a pesada maça de ferro empunhada pelo rei do mar. Os vikings o observavam, maravilhados e com selvagem admiração. Não conseguiam entender sua linguagem, nem ele a deles. Mas não eram necessárias mais ordens. Sob a direção de Bran, haviam se agrupado na garganta, e sua única ordem era: defender a passagem!

Bran Mak Morn estava diante de Kull. Assim, encararam um ao outro: um, com seu reino ainda por nascer, e o outro, cujo reino havia se perdido nas brumas do Tempo por eras incalculáveis. Reis da escuridão, pensou Cormac, reis anônimos da noite, cujos reinos são abismos e sombras.

O rei picto estendeu a mão:

- Rei Kull, você é mais que um rei... é um homem. Nós dois podemos cair dentro de uma hora... mas, se vivermos, peça-me o que quiser.

Kull sorriu, devolvendo o firme aperto:

- Você também é um homem que me agrada, rei das sombras. Com certeza, você é mais que um produto de minha imaginação sonhadora. Talvez nos encontremos em vida desperta algum dia.

Bran sacudiu a cabeça, perplexo, saltou para a sela e se afastou a galope, subindo a ladeira leste e desaparecendo sobre a aresta. Cormac hesitou:

- Homem estranho, você é realmente de carne e sangue, ou é um fantasma?

- Quando sonhamos, somos todos de carne e sangue... enquanto estamos sonhando. – respondeu Kull – Este é o mais estranho pesadelo que já tive... mas você, que logo desaparecerá em puro nada quando eu acordar, me parece tão real agora quanto Brule, Kananu, Tu ou Kelkor.

Cormac sacudiu a cabeça como Bran havia feito e, com uma última saudação, a qual Kull devolveu com majestade bárbara, deu a volta e se afastou trotando. No topo da aresta ocidental, ele parou. Ao sul distante, se erguia uma leve nuvem de pó e podia-se avistar a cabeça da coluna em marcha. Ele acreditava já poder sentir a terra vibrar levemente sob o passo calculado de mil pés encouraçados, batendo em perfeita harmonia. Ele desmontou, e um de seus chefes tribais, Domnail, tomou seu cavalo e o levou para baixo da ladeira, longe do vale, onde as árvores cresciam espessas. Apenas um ocasional movimento vago, entre eles, dava evidência dos 500 homens que se encontravam ali, cada um próximo ao seu cavalo, com a mão pronta para silenciar o mais leve relincho.

Oh, pensou Cormac, os próprios deuses fizeram este vale para a emboscada de Bran! O chão do vale não tinha árvores, e as ladeiras internas estavam nuas, exceto pelas urzes que chegavam até a cintura. Mas, ao pé de cada aresta, no lado que se afastava do vale, onde a terra bem apagada das ladeiras rochosas havia se acumulado, cresciam árvores suficientes para esconder 500 cavaleiros ou 50 carruagens.

No extremo norte do vale, se encontrava Kull e seus 300 vikings, bem visíveis, flanqueados a cada lado por 50 arqueiros pictos. Ocultos no lado oeste da aresta ocidental, estavam os gaélicos. Ao longo do alto das ladeiras, escondidos na urze alta, havia 100 pictos, com suas flechas nas cordas dos arcos. O resto dos pictos estava escondido nas inclinações orientais mais além, onde estavam os bretões, com suas bigas bem preparadas. Nem eles nem os gaélicos a oeste conseguiam ver o que acontecia no vale, mas sinais haviam sido preparados.

Agora, a longa coluna estava entrando na larga boca do vale, e seus batedores, homens levemente armados sobre cavalos rápidos, estavam se espalhando entre as ladeiras. Eles galoparam quase ao alcance de um tiro de flecha da hoste silenciosa que bloqueava a passagem, e então pararam. Alguns giraram e correram de volta à força principal, enquanto outros se desdobraram e subiram as ladeiras a meio-galope, procurando ver o que havia além. Aquele era o momento crucial. Se percebessem qualquer sugestão de emboscada, tudo estaria perdido. Cormac, se encolhendo dentro da urze, se maravilhou com a habilidade dos pictos em sumirem tão completamente de vista. Ele viu um cavaleiro passar a menos de um metro de onde ele sabia haver um arqueiro, mas o romano não viu nada.

Os batedores galgaram as arestas e olharam ao redor; logo, a maioria deles deu a volta e desceu trotando as ladeiras. Cormac se surpreendeu com sua maneira descuidada de explorar. Ele nunca havia lutado contra romanos antes, e nada sabia de sua arrogante auto-confiança, de sua incrível astúcia em certas coisas e sua incrível estupidez em outras. Aqueles homens eram confiantes demais; uma sensação irradiada por seus oficiais. Haviam se passado anos, desde que uma força de caledônios resistiria às legiões. E a maioria daqueles homens era recém-chegada à Bretanha; parte de uma legião que havia estado aquartelada no Egito. Desprezavam aos seus inimigos e não suspeitavam de nada.

Mas... espere! Três cavaleiros na aresta oposta haviam dado a volta e desaparecido no outro lado. E agora um, detendo seu corcel no alto da aresta ocidental, a uns 90 metros de onde Cormac estava, olhou atentamente para a massa de árvores ao pé da ladeira. Cormac viu a suspeita crescer naquele rosto marrom e aquilino. Ele meio se virou, como que para chamar seus companheiros, e logo, ao invés disso, conduziu o cavalo ladeira abaixo, se curvando para a frente em sua sela. O coração de Cormac disparou. A qualquer momento, esperava ver o homem girar e galopar de volta para dar o alarme. Ele resistiu ao louco impulso de se erguer de um salto e atacar o romano a pé. O homem certamente podia sentir a tensão no ar... as centenas de olhos ferozes sobre ele. Agora, ele estava na metade da descida da ladeira, fora da vista dos homens no vale. E agora, o som agudo e vibrante de um arco invisível quebrou a aflitiva imobilidade. Com um ofego estrangulado, o romano ergueu as mãos e, enquanto o corcel se empinava, ele caiu de ponta-cabeça, trespassado por uma longa flecha negra que se movera como um relâmpago de dentro da urze. Um anão robusto saltou aparentemente do nada e agarrou as rédeas, tranqüilizando o cavalo que resfolegava e guiando-o ladeira abaixo. Diante da queda do romano, homens baixos e arqueados se ergueram da grama como um súbito vôo de pássaros, e Cormac viu o reluzir de uma faca. Logo, com pressa irreal, tudo se acalmou. Assassinos e morto estavam invisíveis, e só a calma ondulação da urze marcava o ato sombrio.

O gaélico voltou a olhar para dentro do vale. Os três que haviam cavalgado sobre a aresta leste não haviam voltado, e Cormac sabia que eles nunca o fariam. Evidentemente, os outros batedores haviam levado a notícia de que só um pequeno grupo de guerreiros estava pronto para disputar a passagem dos legionários. Agora, a cabeça da coluna se encontrava quase sob ele, e vibrou ao ver estes homens condenados, desfilando com sua soberba arrogância. E a visão de suas esplêndidas armaduras, seus rostos aquilinos e perfeita disciplina o impressionaram tanto quanto um gaélico é capaz de ser impressionado.

Mil e duzentos homens em pesada armadura, marchando como um, de modo que o chão tremia ao seu passo! Muitos deles eram de estatura mediana, com peitos e ombros poderosos, e rostos bronzeados – veteranos endurecidos por cem campanhas. Cormac lhes notou as azagaias, as curtas espadas afiadas e escudos pesados; suas armaduras brilhantes e capacetes com cristas, as águias nos estandartes. Aqueles eram os homens sob cuja passagem o mundo havia tremido, e impérios se desagregado! Nem todos eram latinos; havia bretões romanizados entre eles, e uma centúria – ou 100 – era composta de enormes homens de cabelos amarelos – gauleses e germanos, que lutavam por Roma tão ferozmente quanto os nascidos nela, e odiavam seus parentes selvagens mais ferozmente.

A cada lado, havia um enxame de cavalaria, batedores, e a coluna era flanqueada por arqueiros e atiradores de funda. Um grupo de carroças lentas carregava os suprimentos do exército. Cormac viu o comandante cavalgando em seu posto – um homem alto, com um rosto delgado e imperioso, evidente mesmo àquela distância. Marcus Sulius... o gaélico o conhecia pela fama.

Um rugido gutural se ergueu dos legionários, ao se aproximarem de seus inimigos. Evidentemente, pretendiam abrir caminho através deles e continuarem sem uma pausa, pois a coluna se movia implacável. A quem os deuses destroem, eles primeiro enlouquecem – Cormac nunca tinha ouvido essa frase, mas lhe ocorreu que o grande Sulius era um idiota. Arrogância romana! Marcus estava acostumado a açoitar os povos encolhidos de um Leste decadente; ele pouco imaginava do ferro nestas raças ocidentais.

Um grupo de cavalaria se destacou e correu para a boca do desfiladeiro, mas era apenas um gesto. Com fortes gritos zombeteiros, eles giraram à distância de três lanças e atiraram suas azagaias, as quais ricochetearam inofensivamente nos escudos sobrepostos dos silenciosos escandinavos. Mas o líder deles se arriscou demais: ao girar, ele se inclinou da sela e arremeteu em direção ao rosto de Kull. O grande escudo desviou a lança, e Kull devolveu o golpe como uma serpente; a poderosa maça esmagou capacete e cabeça como uma casca de ovo, e o próprio corcel caiu de joelhos diante do impacto daquele terrível golpe. Um rugido curto e feroz se ergueu dos escandinavos, e os pictos ao lado deles uivaram exultantes e lançaram suas flechas entre os cavaleiros que se retiravam. O primeiro sangue para o povo da urze! Os romanos que se aproximavam gritaram vingativamente e aceleraram o passo, enquanto o cavalo aterrorizado corria entre eles, com uma horrível caricatura de homem, o pé preso no estribo, sendo arrastada sob os cascos retumbantes.

Agora, a primeira linha de legionários, comprimida por causa da estreiteza da garganta, se espatifou contra a sólida parede de escudos – se espatifou e recuou. O muro de escudos não havia se movido uma só polegada. Esta era a primeira vez em que as legiões romanas haviam se deparado com aquela formação inquebrável... a mais velha de todas as linhas de batalhas arianas... a ancestral do regimento espartano, da falange tebana, da formação macedônia, do quadro inglês.

Escudo se chocou contra escudo, e a curta espada romana buscou uma brecha naquela muralha de ferro. Lanças vikings, se eriçando em sólidas fileiras acima, estocaram e se avermelharam; pesados machados desciam, atravessando ferro, carne e ossos. Cormac viu Kull, se erguendo acima dos atarracados romanos na vanguarda do conflito, assentando golpes como raios. Um robusto centurião se lançou para a frente, com o escudo no alto e golpeando para cima. A maça de ferro se espatifou terrivelmente, despedaçando a espada, dividindo o escudo, destruindo o capacete e esmagando o crânio – tudo em um só golpe.

A linha frontal dos romanos se curvou como uma barra de ferro ao redor da cunha, enquanto os legionários tentavam abrir caminho lutando, através da garganta a ambos os lados, e cercar seus oponentes. Mas a passagem era muito estreita; agachados contra os muros escarpados, os pictos lançavam suas flechas negras, numa saraivada de morte. A esta distância, as pesadas setas penetravam escudos e corselete, trespassando os homens encouraçados. A linha frontal da batalha rolou para trás, vermelha e quebrada, e os escandinavos pisaram seus próprios – e poucos – mortos, para fechar a brecha que a queda deles havia feito. Estendendo-se amplamente diante deles, jazia uma linha delgada de formas destroçadas – a espuma vermelha da maré que se quebrava em vão sobre eles.

Cormac havia se erguido de um pulo, agitando os braços. Domnail e seus homens haviam saído dos refúgios diante do sinal, e vieram galopando pela ladeira, contornando a aresta. Cormac montou o cavalo trazido para ele, e olhou impacientemente através do vale estreito. Nenhum sinal de vida aparecia na aresta leste. Onde estava Bran... e os bretões?

Lá embaixo do vale, as legiões, enfurecidas diante da inesperada oposição da pequena força diante deles, embora não desconfiados, estavam se reunindo numa formação mais compacta. As carroças, que haviam parado, estavam novamente se movendo com dificuldade, e toda a coluna estava em movimento outra vez, como se pretendesse abrir caminho só com seu peso. Com os 100 gauleses na primeira linha, os legionários avançavam de novo ao ataque. Desta vez, com toda a força dos 1200 homens atrás, o ataque desmantelaria a resistência dos guerreiros de Kull como um pesado aríete; iria pisoteá-los, lhes varrendo os destroços vermelhos. Os homens de Cormac tremiam de impaciência. Súbito, Marcus Sulius deu a volta e olhou para oeste, onde a linha dos cavaleiros se destacava contra o céu. Mesmo àquela distância, Cormac viu seu rosto empalidecer. O romano finalmente percebeu o metal dos homens aos quais enfrentava, e que caminhava dentro de uma armadilha. Com certeza, naquele momento, uma imagem caótica relampejou em sua mente: derrota... vergonha... ruína vermelha!

Era tarde demais para bater em retirada... tarde demais para formar um quadro defensivo, com as carroças como barricada. Só havia uma saída possível, e Marcus, general astuto apesar de seu erro recente, a usou. Cormac ouviu sua voz cortando o tumulto como um clarim, e, apesar de não entender as palavras, sabia que o romano gritava aos seus homens para que golpeassem como uma rajada àquela aglomeração de escandinavos – para abrirem caminho para fora da armadilha, antes que ela pudesse se fechar!

Agora os legionários, conscientes de sua situação desesperadora, se lançavam de cabeça e terrivelmente sobre seus inimigos. A parede de escudos tremeu, mas não cedeu uma polegada sequer. Os rostos selvagens dos gauleses, e os duros rostos marrons dos italianos, olhavam ferozmente por cima dos escudos fechados, em direção aos olhos flamejantes do Norte. Com os escudos tocando uns nos outros, eles golpeavam, matavam e morriam numa tempestade vermelha de matança, onde machados escarlates subiam e desciam, e lanças gotejantes se quebravam em espadas marcadas e cegas.

Onde, em nome de Deus, estava Bran com suas bigas? Mais uns poucos minutos significariam a condenação de todos os homens que defendiam a passagem. Já estavam caindo rapidamente, embora fechassem suas fileiras ainda mais e resistissem como ferro. Aqueles homens selvagens do Norte morriam em seus postos; e, avultando entre suas cabeças douradas, a negra cabeleira leonina de Kull brilhava como um símbolo de matança, e sua maça ensangüentada derramava uma chuva medonha, enquanto salpicava miolos e sangue como água.

Algo estalou no cérebro de Cormac.

- Estes homens morrerão enquanto esperamos pelo sinal de Bran! – ele gritou – Avante! Sigam-me para o Inferno, filhos de Gael!

Um rugido selvagem lhe respondeu, e, soltando as rédeas, ele disparou ladeira abaixo, com 500 cavaleiros urrantes se precipitando atrás dele. E, naquele mesmo instante, uma tempestade de flechas varreu o vale de ambos os lados, como uma nuvem negra, e o terrível clamor dos pictos partiu os céus. E, sobre a aresta leste, como uma súbita explosão de trovão oscilante no Dia do Juízo, corriam as carruagens de guerra. Desceram, correndo e rugindo, a ladeira, com a espuma voando das narinas dilatadas dos cavalos; seus cascos furiosos mal pareciam tocar o chão, transformando a urze alta em nada. Na primeira carruagem, com os olhos escuros ardendo, se agachava Bran Mak Morn, e entre todos eles, os bretões nus guinchavam e chicoteavam como se possuídos por demônios. Atrás das bigas que corriam, vinham os pictos, uivando como lobos e lançando suas flechas enquanto corriam. A urze os vomitava de todos os lados, numa onda negra.

Foi o que Cormac viu em vislumbres caóticos, durante aquela selvagem cavalgada ladeiras abaixo. Uma onda de cavalaria correu entre ele e a linha principal da coluna. Três longos pulos adiante de seus homens, o príncipe gaélico enfrentou as lanças dos cavaleiros romanos. A primeira lança ricocheteou em seu escudo e, erguendo-se sobre os estribos, ele golpeou para baixo, partindo um homem das costas ao osso do peito. O romano seguinte lançou uma azagaia que matou Domnail, mas naquele instante o corcel de Cormac se chocou com o dele, peito a peito, e o cavalo mais leve rolou de ponta-cabeça sob o impacto, lançando seu montador para debaixo dos cascos golpeantes.

Depois, toda a rajada do ataque gaélico golpeou a cavalaria romana, despedaçando-a, espatifando-a e derrubando-a. Sobre suas ruínas vermelhas, os demônios urrantes de Cormac golpearam a pesada infantaria romana, e toda a linha cambaleou diante do impacto. Espadas e machados reluziram para cima e para baixo, e a força de sua investida os levou bem para dentro das filas aglomeradas. Ali, impedidos, eles oscilaram e golpearam. Azagaias eram arremetidas, espadas reluziam para cima, derrubando cavalo e cavaleiro; e, grandemente superados em número, acossados em todos os lados, os gaélicos teriam perecido entre seus inimigos, mas, naquele instante, do outro lado, as bigas despedaçantes feriram as fileiras romanas. Atacaram quase simultaneamente, numa longa linha, e, no momento do impacto, os cocheiros desviaram seus cavalos para o lado e correram paralelamente pelas fileiras, tosquiando homens como se estivessem ceifando trigo. Morreram centenas sob aquelas lâminas curvas naquele momento, e, saltando de suas bigas, gritando como sanguissedentos gatos selvagens, os espadachins bretões se lançaram sobre as lanças dos legionários, talhando loucamente com suas espadas de cabos longos. Agachados, os pictos lançaram suas flechas à queima-roupa, e logo saltaram para dentro, para talhar e furar. Enlouquecidos pela visão da vitória, estes povos selvagens eram como tigres feridos que não sentem os ferimentos, e morriam de pé com seu último suspiro transformado num rosnado de fúria.

Mas a batalha ainda não tinha acabado. Atordoados e quebrados, sua formação quebrada e quase metade dos seus já caídos, os romanos lutavam com fúria desesperada. Encurralados em todas as direções, eles talhavam e golpeavam isoladamente; ou em pequenos grupos, lutavam com as costas coladas às costas do aliado – arqueiros, manejadores de fundas, cavaleiros e pesados legionários, misturados numa massa caótica. A confusão era completa, mas não a vitória. Aqueles que estavam detidos no desfiladeiro ainda se lançavam sobre os machados vermelhos que lhes barravam o caminho, enquanto a batalha aglomerada e cerrada trovejava atrás deles. De um lado, os gaélicos de Cormac esbravejavam e talhavam; de outro, as bigas avançavam e recuavam, se retirando e voltando como furacões de ferro. Não havia retirada, pois os pictos haviam lançado um cordão através do caminho por onde vieram, e, tendo cortado as gargantas dos seguidores do acampamento e se apossado das carroças, lançavam suas setas numa tempestade de morte sobre a retaguarda da coluna destroçada. Aquelas longas flechas negras perfuravam armadura e osso, espetando homens de dois em dois. Mas a matança não estava toda em um lado. Pictos morriam sob a estocada relampejante de azagaias e espadas curtas. Gaélicos, comprimidos sob seus cavalos que caíam, eram cortados em pedaços; e bigas, separadas de seus cavalos, eram inundadas com o sangue de seus cocheiros.

E, na extremidade estreita do vale, a batalha ainda rolava e redemoinhava. Grandes deuses... pensou Cormac, olhando entre os golpes que pareciam relâmpagos... aqueles homens ainda defendiam a garganta? Sim! Eles a mantinham! Um décimo de seu número original, morrendo de pé, continuava detendo os ataques frenéticos dos legionários que diminuíam em número.

Por todo o campo, se erguia o rugido e o estrondo de armas, e aves de rapina, voando rapidamente desde o crepúsculo, faziam círculos no alto. Cormac, se esforçando para alcançar Marcus Sulius através da multidão, viu o cavalo do romano afundar sob ele, e o cavaleiro se erguer sozinho num mar de inimigos. Viu a espada romana relampejar três vezes, matando a cada golpe; então, da parte mais revolta do conflito, pulou uma figura terrível. Era Bran Mak Morn, manchado da cabeça aos pés. Ele arremessou a espada quebrada enquanto corria, sacando um punhal. O romano golpeou, mas o rei picto se esquivou da estocada e, agarrando-lhe o punho que segurava a espada, ele enfiou várias e várias vezes o punhal através da armadura brilhante.

Um enorme rugido se ergueu quando Marcus morreu, e Cormac, com um grito, reagrupou os remanescentes de sua força ao seu redor e, batendo as esporas no cavalo, irrompeu através das linhas despedaçadas e cavalgou a toda velocidade para o outro extremo do vale.

Mas, ao se aproximar, viu que era tarde demais. Como haviam vivido, assim haviam morrido aqueles ferozes lobos-do-mar, com seus rostos encarando o inimigo e suas armas quebradas avermelhadas nas mãos. Jaziam num grupo sombrio e silencioso, preservando, mesmo na morte, algo da formação do muro de escudos. Entre eles, à frente deles e ao redor deles, jaziam em um grande amontoado os corpos daqueles que haviam tentado, em vão, lhes romper as fileiras. Eles não haviam recuado um passo! Haviam morrido em seus postos até o último homem. E também não havia ninguém para pisar sobre suas figuras dilaceradas; aqueles romanos que haviam escapado dos machados vikings, haviam sido derrubados pelas setas dos pictos e espadas dos gaélicos por trás.

Mas esta parte da batalha não havia acabado. No alto da íngreme ladeira ocidental, Cormac viu o final daquele drama. Um grupo de gauleses em armadura romana avançava sobre um único homem – um gigante de cabelos negros, em cuja cabeça brilhava uma coroa dourada. Havia aço nestes homens, assim como no homem que os arrastava ao seu destino. Estavam condenados – seus camaradas estavam sendo trucidados atrás deles –, mas antes que chegasse sua vez, eles pelos menos teriam a vida do chefe de cabelos negros, que havia liderado os homens de cabelos dourados do Norte.

Avançando sobre ele por três direções, eles o haviam forçado lentamente a recuar para o alto da íngreme parede do desfiladeiro, e os corpos amarrotados que se estendiam ao longo de seu recuo, mostravam o quão ferozmente cada passo do caminho havia sido disputado. Aqui, neste escarpado, já era trabalho suficiente manter o equilíbrio; mas aqueles homens ao mesmo tempo galgavam e lutavam. O escudo de Kull e sua enorme maça haviam desaparecido, e a grande espada em sua mão direita estava tingida de escarlate. Sua cota de malha, trabalhada com uma arte esquecida, agora pendia em retalhos, e o sangue brotava de uma centena de ferimentos nos membros, cabeça e corpo. Mas seus olhos ainda resplandeciam com a alegria da batalha, e seu braço cansado ainda impelia a poderosa espada com golpes mortíferos.

Mas Cormac viu que o fim chegaria antes que eles pudessem alcançá-lo. Agora, no próprio cume do escarpado, um círculo de pontas ameaçava a vida do estranho rei, e até mesmo sua força de ferro estava diminuindo. Agora, ele partia o crânio de um enorme guerreiro e, no retorno do golpe, rasgava o pescoço do outro; cambaleando sob uma verdadeira chuva de espadas, ele golpeou novamente, e sua vítima lhe caiu aos pés, partida até o osso do peito. Então, quando uma dúzia de espadas se ergueu acima do cambaleante atlante para o golpe fatal, uma coisa estranha aconteceu. O sol afundava no mar ocidental; toda a urze parecia nadar num rubro oceano de sangue. Destacado contra o sol poente, como havia aparecido pela primeira vez, Kull se ergueu, e então, como uma neblina se levantando, um enorme panorama se abriu atrás do rei cambaleante. Os olhos assombrados de Cormac perceberam um rápido e gigantesco vislumbre de outros climas e esferas – como se refletida em nuvens de verão, ele viu, ao invés das colinas de urzes se estendendo até o mar, uma vaga e vasta terra de montanhas azuis e brilhantes lagos tranqüilos... os pináculos dourados, púrpuras e safiras, e os muros colossais de uma cidade enorme, tal como a terra não havia conhecido por muitas eras.

Então, como o sumiço de uma miragem, ela desapareceu, mas os gauleses na alta elevação haviam deixado suas armas caírem e arregalavam os olhos como homens pasmados... Pois o homem chamado Kull havia desaparecido, e não havia sinal de sua partida!

Como se confuso, Cormac girou o corcel e voltou através do campo atropelado. Os cascos de seu cavalo esparrinhavam em lagos de sangue e retiniam nos capacetes de homens mortos. Através do vale, trovejava o grito de vitória. Mas tudo parecia ensombrecido e estranho. Uma figura caminhava por entre os corpos dilacerados, e Cormac percebeu vagamente que era Bran. O gaélico desmontou e encarou o rei. Bran estava desarmado e ensangüentado; o sangue lhe escorria de talhos na testa, peito e membros; a armadura que usava estava totalmente despedaçada, e um talho lhe havia meio cortado sua coroa de ferro. Mas a jóia vermelha ainda brilhava sem manchas, como uma estrela de matança.

- Estou pensando em lhe matar – disse o gaélico pesadamente, falando como um homem em transe –, pois o sangue de homens valentes cai sobre sua cabeça. Se você tivesse dado o sinal de ataque mais cedo, alguns estariam vivos.

Bran cruzou os braços; seus olhos estavam assombrados:

- Golpeie se quiser; estou cansado de matança. O hidromel de reinar é frio. Um rei deve jogar com as vidas dos homens e as espadas nuas. As vidas de todo meu povo estavam em jogo; sacrifiquei os escandinavos... sim; e meu coração dói dentro de mim, pois eram homens! Mas, se eu tivesse dado a ordem quando você desejava, tudo poderia ter dado errado. Os romanos ainda não estavam aglomerados na boca estreita da garganta, e poderiam ter tido tempo e espaço para formar suas fileiras de novo e nos derrotar. Esperei até o último momento... e os piratas morreram. Um rei pertence ao seu povo, e não pode deixar que nenhum de seus próprios sentimentos, ou as vidas dos homens, lhe influenciem. Agora meu povo está salvo; mas meu coração está frio em meu peito.

Cormac deixou cair lentamente a ponta de sua espada até o chão.

- Você nasceu para reinar sobre os homens, Bran. – disse o príncipe gaélico.

Os olhos de Bran percorreram o campo. Uma névoa de sangue pairava sobre ele todo, onde os bárbaros vitoriosos saqueavam os mortos, enquanto os romanos, que haviam escapado à matança ao largarem as espadas, e agora sob vigilância, contemplavam tudo com olhos ardentes.

- Meu reino... meu povo... estão a salvo. – disse Bran, cansadamente – Virão aos milhares da urze, e quando Roma se mover novamente contra nós, encontrará uma nação sólida. Mas estou cansado. E quanto a Kull?

- Meus olhos e cérebro estavam confusos com a batalha. – respondeu Cormac – Creio tê-lo visto desaparecer como um fantasma no pôr-do-sol. Vou procurar seu corpo.

- Não o procure. – disse Bran – Ele veio ao amanhecer... e se foi ao pôr-do-sol. Ele veio a nós desde as brumas das eras, e retornou para as brumas dos eons... ao seu próprio reino.

Cormac se afastou; a noite se acumulava. Gonar se erguia como um fantasma branco diante dele.

- Ao seu próprio reino. – ecoou o bruxo – O Tempo e o Espaço nada são. Kull retornou para seu próprio reino... sua própria coroa... sua própria era.

- Era, então, um fantasma?

- Você não sentiu o aperto de sua mão sólida? Não ouviu sua voz? Não o viu comer, beber, rir, matar e sangrar?

Cormac ainda continuava como que em transe:

- Então, se é possível para um homem passar de uma era para outra na qual não nasceu, ou vir de um século morto e esquecido, como queira, com seu corpo de carne e sangue e suas armas... então, ele é tão mortal quanto o era em seus próprios dias. Kull está morto, então?

- Ele morreu há cem mil anos, como os homens contam o tempo – respondeu o feiticeiro –, mas em sua própria era. Não morreu pelas espadas dos gauleses desta era. Acaso não ouvimos as lendas, sobre como o rei da Valúsia viajou para uma terra estranha e eterna de nebulosas eras futuras, e lá lutou numa grande batalha? Ora, ele o fez! Há 100 mil anos, ou hoje!

“E, há cem mil anos – ou há um momento atrás! –, Kull, rei da Valúsia, se levantou do leito de seda em sua câmara secreta e, rindo, falou com o primeiro Gonar, dizendo: ‘Há, feiticeiro, realmente tive um sonho estranho, pois fui para um clima e tempo distante em minhas visões, e lutei pelo rei de um estranho povo das sombras!’. E o grande sacerdote sorriu, e apontou silenciosamente para a espada vermelha e marcada, e para a cota-de-malha rasgada e os muitos ferimentos que o rei tinha. E Kull, totalmente desperto de sua ‘visão’ e sentindo a dor e a fraqueza daqueles ferimentos que ainda sangravam, ficou em silêncio e perplexo, e toda a vida, tempo e espaço lhe pareceram um sonho de fantasmas, e ele se interrogou por isso o resto de sua vida. Pois a sabedoria das Eternidades é negada até mesmo aos príncipes, e Kull não poderia entender o que Gonar lhe disse mais do que você consegue entender minhas palavras”.

- Então, Kull viveu, apesar de seus muitos ferimentos – disse Cormac –, e retornou às brumas do silêncio e dos séculos. Bem... ele pensou que fôssemos um sonho; nós achamos que ele fosse um fantasma. E, claro, a vida não passa de uma teia tecida de fantasmas, sonhos e ilusão, e me ocorre que o reino, nascido hoje das espadas e matança neste vale uivante, não é mais sólido que a espuma do mar brilhante.



FIM



Tradução: Fernando Neeser de Aragão

Digitação: Edilene Brito da Cruz de Aragão

Fonte: http://gutenberg.net.au/ebooks06/0607311h.html
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