A Fênix na Espada




(por Robert E. Howard) 

Saiba, ó príncipe, que entre os anos em que os mares engoliram a Atlântida e as cidades brilhantes, e os anos do surgimento dos Filhos de Aryas, houve uma era inimaginada, quando reinos esplendorosos se espalharam pelo mundo como mantos azuis sob as estrelas – Nemédia, Ophir, Britúnia, Hiperbórea; Zamora, com suas mulheres de cabelos negros e torres de mistério assombradas por aranhas; Zingara e sua nobreza; Koth, que fazia fronteira com as terras pastoris de Shem; Stygia, com suas tumbas guardadas por sombras; Hirkânia, cujos cavaleiros vestiam aço, seda e ouro. Porém, o reino mais orgulhoso do mundo era a Aquilônia, reinando suprema no oeste sonhador. Para cá veio Conan, o cimério de cabelos negros, olhar sombrio e espada na mão, um ladrão, saqueador e matador, com gigantescas melancolias e gigantesca alegria, para pisar os tronos adornados de jóias, da Terra, com seus pés calçados em sandálias”. (Crônicas da Nemédia) 

1) “Minhas canções são tochas para a pira de um rei!” 

- À meia-noite, o rei morre!

O homem que falou era alto, moreno e esguio; uma cicatriz perto da boca enfatizava o seu aspecto já sinistro. Os ouvintes aquiesceram, com olhos severos. Um deles era um homem baixo, gordo e ricamente vestido, com uma boca frágil e petulante e olhos agitados. Um outro era um gigante sombrio em uma armadura trabalhada em ouro. O terceiro era um homem alto, magro e rijo numa vestimenta de bufão, cujos desalinhados cabelos loiros caíam de forma rebelde sobre flamejantes olhos azuis. O último era um anão com rosto cruel e aristocrático, cujos ombros anormalmente largos e os braços longos contrastavam estranhamente com sua figura atrofiada.

O primeiro a falar olhou inconscientemente para as portas fechadas por barras e para as janelas com cortinas de veludo, e sorriu friamente:

- Vamos fazer o juramento da Adaga e da Chama. Eu confio em vocês, é claro. Ainda assim, é melhor termos uma forma de nos sentirmos seguros. Estou percebendo tremores em alguns de vocês.

- Para você é fácil falar, Ascalante. – interrompeu o homem gordo, de forma petulante – Você já é um fora-da-lei, tem a cabeça a prêmio... tem tudo a ganhar e nada a perder, enquanto nós...

- Têm muito a perder e mais a ganhar. – respondeu o fora-da-lei, imperturbável – Vocês me chamaram de minha fortaleza no deserto no sul distante para ajudá-los a depor um rei. Bem, eu fiz os planos, preparei a armadilha, coloquei a isca e estou pronto para apanhar a presa... mas preciso ter certeza de que não serei deixado sozinho. Vocês vão jurar?

- Chega dessa conversa fútil. – gritou o homem com trajes de bufão – Sim, nós juramos neste amanhecer, e nesta noite abateremos um rei! “Oh, o canto das carroças, o sussurro das asas dos abutres...”.

- Poupe sua canção para outra hora, Rinaldo. – riu Ascalante – Este é um momento para adagas, não para rimas.

- Minhas canções são tochas para a pira de um rei! – bradou o menestrel, desembainhando uma longa adaga – Ei, escravos, tragam uma vela! Serei o primeiro a fazer o juramento.

Um escravo, cuja pele escura revelava seu sangue stígio, trouxe uma longa vela de cera, e Rinaldo espetou o próprio pulso, tirando sangue. Os outros seguiram seu exemplo, depois se deram as mãos numa espécie de círculo, com a vela acesa ao centro, e gotejaram sangue sobre a chama. Enquanto o fogo chiava e bruxuleava, eles repetiram:

- Eu, Ascalante, um homem sem terra, juro fidelidade irrestrita à nossa missão e ao pacto de silêncio, pelo aço, pela chama e pelo sangue, e que o juramento seja inquebrável.

- E eu, Rinaldo, primeiro menestrel da Aquilônia! – exclamou o poeta.

- E eu, Volmana, conde de Karaban. – disse o anão.

- E eu, Gromel, comandante da Legião Negra da Aquilônia. – rugiu o gigante.

- E eu, Dion, barão de Attalus, legítimo herdeiro ao trono da Aquilônia. – falou, com voz trêmula, o homem gordo.

A vela apagou, sufocada pelas gotas de sangue que pingavam.

- Assim se extingue a vida do nosso inimigo. – observou Ascalante, soltando as mãos de seus companheiros e observando-os com um desprezo cuidadosamente velado. Ele mesmo já havia quebrado juramentos demais para considerar aquele pacto algo mais do que um ato cínico, mas sabia que Dion, em quem ele menos confiava, era supersticioso. Não havia razão para desprezar nenhuma salvaguarda, mesmo que mínima.

- Amanhã... – disse Ascalante abruptamente – Ou melhor, hoje, porque já está amanhecendo... o conde Trocero de Poitain, mordomo do rei, viaja para a Nemédia com Prospero, o braço-direito do rei Conan, com a maior parte dos soldados poitainianos e um bom número dos Dragões Negros que formam a guarda pessoal do rei. Com exceção dos poucos esquadrões desse regimento agora no palácio, todos os restantes estão patrulhando a fronteira picta... graças ao aumento da atividade dos bárbaros ao longo da fronteira ocidental. Quando Conan estiver morto, o povo se levantará para dar as boas-vindas ao novo regime, e os amigos do rei, ao se apressarem para vingá-lo, vão encontrar os portões da cidade trancados para o resto de seus exércitos... especialmente a Legião Negra... prontos para defender a nova dinastia. Ou melhor, a antiga dinastia restaurada.

- Sim – disse Volmana com alguma satisfação –, esse era o seu plano, Ascalante, mas sem minha ajuda você não teria conseguido. Eu tenho parentes em alta posição na corte da Nemédia, e foi simples fazer com que eles sutilmente persuadissem o rei Numa a requisitar a presença de Trocero. E, já que Conan honra o conde de Poitain acima de todos os outros, ele precisa ter uma grande escolta de tropas reais, assim como seus próprios súditos.

O fora-da-lei aquiesceu.

- É verdade. Como disse a vocês, eu finalmente consegui, por meio de Gromel, corromper um oficial perdulário dos Dragões Negros. Esse homem vai afastar a guarda dos aposentos reais pouco antes da meia-noite, sob algum pretexto. Os diversos escravos que poderão estar por ali, trabalhando ou não, também serão dispensados. Nós vamos esperar com 16 homens que convoquei no deserto, e que agora se escondem em várias partes da cidade. Vamos entrar no palácio através de um túnel secreto conhecido apenas por você, Volmana, e com uma vantagem de 20 para um...

Ele riu. Gromel aquiesceu seriamente; Volmana sorriu de forma sinistra; Dion empalideceu e suspirou. Rinaldo bateu palmas e gritou de forma estridente:

- Por Mitra, eles vão se lembrar desta noite, quando as cordas douradas foram tocadas! A queda do tirano, a morte do déspota... quantas canções irei compor!

Os olhos dele queimavam com um brilho fanático, e os outros o observavam duvidosamente, exceto Ascalante, que virou o rosto para esconder um esgar. Em seguida, o fora-da-lei levantou-se subitamente.

- Basta! O sol logo vai nascer, e vocês não podem ser vistos saindo deste lugar. Voltem aos seus devidos postos, e não revelem o que se passa em suas mentes por palavras, atos ou expressões. – Ele hesitou, olhando para Dion – Barão, sua palidez o trai. Se Conan se aproximar e observar sua expressão com seu olhar inquiridor, você vai desabar. Espere até que o sol esteja alto, para não causar suspeita por ter se levantado tão cedo... depois vá para sua província e espere lá, até que o mande chamar. Nós quatro e meus homens podemos realizar a missão desta noite.

Dion quase desmaiou de alegria e saiu, tremendo como uma folha ao vento e balbuciando palavras desconexas; os outros aquiesceram para o fora-da-lei e partiram.

Ascalante espreguiçou-se como um grande gato e sorriu. Pediu vinho, que lhe foi trazido por seu sombrio escravo stígio.

- Amanhã – disse Ascalante, pegando o cálice –, vou aparecer e deixar o povo da Aquilônia deitar os olhos em mim. Há meses, desde que os Quatro Rebeldes me chamaram no deserto, tenho me escondido como um rato... vivendo no coração dos meus inimigos nesta obscura casa de Dion, me escondendo da luz do dia, e de noite me esgueirando, disfarçado, por ruelas escuras e corredores ainda mais escuros. Mas consegui realizar o que aqueles lordes rebeldes não conseguiram. Trabalhando através deles e de outros agentes, muitos dos quais jamais viram meu rosto, espalhei descontentamento e inquietação pelo império. Subornei e corrompi funcionários, difundi sedição pela população e incentivei motins nos regimentos... em resumo, eu, trabalhando nas sombras, abri caminho para a queda do rei que, neste instante, está sentado no trono sob o sol. Por Mitra, eu quase me esqueci de que fui um estadista antes de ser fora-da-lei.

- O senhor trabalha com ferramentas estranhas. – comentou o escravo.

- São homens fracos, porém fortes em seus motivos. – respondeu displicentemente o fora-da-lei – Quanto às ferramentas, eles acham que eu os sirvo. Volmana, um homem astuto, ousado e audacioso, com sua família em altos postos, porém empobrecido por suas províncias estéreis e cheias de dívidas. Gromel, forte e feroz como um leão, com um poder considerável entre os soldados, mas fraco em termos de inteligência. Dion, esperto em sua baixeza, porém tolo e covarde. Mas sua imensa riqueza foi essencial para o meu esquema... para subornar soldados e oficiais, e para contrabandear bebidas fortes para enlouquecer e enfurecer os pictos nas fronteiras. Rinaldo, um poeta louco, cheio de visões insanas e galanterias ultrapassadas. Um grande ídolo do povo por causa de suas canções, que atingem os pontos sensíveis de seus corações. É o nosso melhor trunfo em termos de popularidade. Cada um desses homens tem algum estofo valioso... e eu sou o centro da teia, a força que os forjou e os reuniu por um objetivo em comum. Se eu morrer esta noite pela espada de Conan, a conspiração irá sucumbir.

- Quem ocupará o trono, se o senhor for bem-sucedido?

- Dion, é claro... ou ao menos é o que ele pensa. Ele tem vestígios de sangue real. Conan cometeu um erro ao deixar vivos os homens que ainda se gabam de ser descendentes da velha dinastia, da qual ele usurpou o trono da Aquilônia. Volmana almeja recuperar o posto que desfrutava no antigo regime, para reerguer sua província e seu título à grandeza anterior. Gromel, com toda a teimosia de seu sangue bossoniano, odeia Pallantides, o comandante dos Dragões Negros, e acha que deveria ser o general de todos os exércitos da Aquilônia. Rinaldo... bah! Eu o desprezo e admiro ao mesmo tempo. É o nosso verdadeiro idealista. É o único entre nós que não tem ambições pessoais. Ele vê Conan como um bárbaro rude de mãos manchadas de sangue, que saiu do Norte para saquear uma terra pacífica. Pensa estar presenciando o barbarismo triunfar sobre a cultura. Já imagina o rei Conan morto, esquecendo a verdadeira natureza do antigo vilão, lembrando-se apenas ocasionalmente que ele apoiava os artistas, e esquecendo os males sob os quais a terra gemia durante seu reinado, e fazendo o povo esquecer isso também. Eles já cantam abertamente “O Lamento pelo Rei”, no qual Rinaldo louva o vilão santificado e denuncia Conan como “o selvagem de coração negro vindo do abismo”. Conan ri, mas ao mesmo tempo se pergunta por que o povo está se voltando contra ele.

- Mas por que Rinaldo odeia Conan?

- Porque ele é um poeta. Os poetas sempre odeiam os poderosos. Para eles, a perfeição está sempre logo atrás da última esquina, ou além da próxima. Eles fogem do presente em sonhos do passado e do futuro. Rinaldo é uma tocha ardente de idealismo, e se vê como um herói, um cavaleiro sem armadura... o que afinal ele é!... erguendo-se para derrubar o tirano e libertar o povo.

- E o senhor?

Ascalante riu e esvaziou o cálice:

- Os poetas são perigosos, porque acreditam no que cantam... enquanto cantam. Bem, eu acredito no que penso, e penso que Dion não vai mais pressionar pelo trono. Alguns meses atrás, eu havia perdido todas as ambições, exceto a de atacar caravanas pelo resto de minha vida. Agora... bem, veremos.

O stígio encolheu seus largos ombros.

- Houve um tempo – disse ele com visível amargura –, em que eu também tive minhas ambições, que fazem as suas parecerem espalhafatosas e infantis. A que ponto caí! Meus antigos pares e rivais ficariam espantados se vissem Thoth-Amon do Anel servindo de escravo para um forasteiro, ainda mais a um criminoso; e fomentando as mesquinhas ambições de barões e reis!

- Você confiou em magias e disfarces. – respondeu Ascalante com indiferença – Eu confio em minha astúcia e na minha espada.

- Astúcia e espada são como gravetos contra a sabedoria das Trevas. – resmungou o stígio, com seus olhos negros faiscando com luzes e sombras ameaçadoras – Se eu não tivesse perdido o Anel, nossos papéis estariam invertidos.

- No entanto – respondeu impacientemente o criminoso –, você carrega as marcas do meu chicote nas costas e, ao que parece, vai continuar carregando.

- Não tenha tanta certeza! – por um instante, os olhos do stígio faiscaram vermelhos de ódio diabólico – Algum dia, de alguma maneira, vou encontrar o meu Anel novamente, e quando o fizer, pelas presas ofídicas de Set, você vai me pagar...

O exaltado aquiloniano ergueu-se e deu um soco na boca do outro. Thoth retrocedeu, com o sangue escorrendo de seus lábios.

- Está se tornando ousado demais, cão. – rosnou o criminoso – Cuidado; ainda sou seu senhor e conheço seu segredo sombrio. Suba no teto das casas e atreva-se a gritar que Ascalante está na cidade conspirando contra o rei... se tiver coragem.

- Eu não ousaria. – murmurou o stígio, enxugando o sangue de seus lábios.

- Não, você não ousaria. – Ascalante sorriu friamente – Pois, se eu for morto por alguma ação furtiva ou traição sua, um sacerdote eremita no deserto do Sul saberá disso e quebrará o selo de um manuscrito que lhe confiei. E depois de lê-lo, uma palavra será sussurrada na Stygia, e um vento se erguerá do Sul, à meia-noite. E então, onde você irá esconder sua cabeça, Thoth-Amon?

O escravo estremeceu, e seu rosto obscuro ficou pálido.

- Basta! – Ascalante mudou o tom de voz peremptoriamente – Tenho um serviço para você. Não confio em Dion. Vá até ele e, se não o alcançar no caminho, prossiga até a cidade dele e fique por lá até que eu o mande chamar. Não o perca de vista. Ele está transtornado de medo, e pode se descontrolar... pode até ir correndo em pânico até Conan e revelar-lhe o plano inteiro, esperando assim salvar a própria pele. Vá!

O escravo fez uma reverência, ocultando o ódio em seus olhos, e foi fazer o que lhe fora ordenado. Ascalante voltou ao seu vinho. Acima das torres adornadas de Tarantia, erguia-se uma aurora rubra como sangue.


<strong>2)</strong> <em>"Quando eu era um guerreiro, os tambores retumbavam,
As pessoas espalhavam pó de ouro diante das patas do meu cavalo;
Mas agora que sou um grande rei, as pessoas perseguem meus passos
Com veneno na minha taça de vinho e punhais às minhas costas."
</em>(A Estrada dos Reis)


O salão era grande e bem decorado, com ricas tapeçarias enfeitando paredes forradas de painéis encerados, tapetes espessos no chão cor de marfim e o teto alto cheio de entalhes intrincados e arabescos de prata. Atrás de uma escrivaninha clara, com incrustações de ouro, estava sentado um homem, cujos ombros largos e pele bronzeada pelo sol pareciam estar fora de lugar naquele ambiente luxuoso. Ele mais parecia fazer parte de planaltos distantes, banhados pelo sol e pelo vento. O menor dos movimentos que fazia deixava transparecer músculos rígidos como o aço, coordenados por um cérebro aguçado e reflexos de um guerreiro nato. Não havia nada deliberado ou calculado em suas atitudes. Ficava ou em repouso total, como uma estátua de bronze, ou em movimento, não com a rapidez agitada de nervos tensos demais, mas com uma velocidade felina que perturbava a visão de quem quisesse segui-lo.

Suas vestes eram de um tecido luxuoso, mas de feitio simples. Não usava anéis nem enfeites, e seu cabelo negro, de corte reto, era preso apenas por uma tiara prateada ao redor da cabeça.

Nesse momento, estava inclinado sobre uma caneta dourada com o qual estivera rabiscando laboriosamente sobre um papiro encerado, descansando o queixo numa das mãos, e seus ardentes olhos azuis fitaram com inveja o homem que estava em pé à sua frente. Esta pessoa estava ocupada com seus próprios afazeres, prendendo os cordões de sua armadura entalhada com ouro, assobiando distraído – numa atitude um tanto quanto sem cerimônia, considerando-se que estava na presença de um rei.

- Próspero – disse o homem sentado à mesa –, essas questões de Estado me cansam muito mais que todas as lutas de que já participei.

- Faz parte do jogo, Conan. – respondeu o poitainiano de olhos escuros – Você é um rei... deve fazer a sua parte.

- Gostaria de poder cavalgar com você até a Nemédia. – disse Conan, invejoso – Parece que se passaram séculos desde a última vez que eu tive um cavalo entre os meus joelhos... mas Publius diz que os problemas da cidade exigem minha presença. Amaldiçoado seja ele! Quando derrubei a velha dinastia – continuou, falando com uma calma e familiaridade que existiam somente entre ele e o poitainiano –, era mais fácil, embora parecesse muito difícil na ocasião. Agora, olhando para trás e vendo o caminho tumultuado que percorri, todos aqueles dias de intriga, matança e aflição parecem um sonho. Eu não vi isso aqui em meus sonhos, Próspero. Quando o rei Numedides caiu morto aos meus pés e arranquei a coroa de sua cabeça ensangüentada para colocá-la na minha, eu havia alcançado o limite dos meus sonhos. Eu tinha me preparado para tomar a coroa, não para mantê-la. Nos velhos tempos de liberdade, eu só queria uma espada afiada e uma trilha direta até os meus inimigos. Agora não há trilhas diretas, e minha espada é inútil. Quando derrubei Numedides, eu era o Libertador. Agora eles cospem na minha sombra. Ergueram uma estátua daquele porco no templo de Mitra, e as pessoas vão se lamuriar perante ela, adorando-a como se fosse a efígie sagrada de um monarca santo assassinado por um bárbaro sanguinário. Quando eu, como mercenário, conduzi os exércitos da Aquilônia para a vitória, eles fecharam os olhos para o fato de que eu era um estrangeiro, mas agora não conseguem me perdoar por isso. Agora, vão ao templo de Mitra para acender incenso em memória de Numedides, homens que foram aleijados e cegados por seus carrascos, homens cujos filhos morreram em seus cárceres, cujas esposas e filhas foram arrastadas para o seu harém. Tolos volúveis!

- Rinaldo é o principal responsável. – respondeu Próspero, apertando em mais uma casa o cinturão de sua espada – Ele canta canções que enlouquecem os homens. Enforque-o em sua veste de palhaço na torre mais alta da cidade. Que componha rimas para os abutres.

Conan balançou a cabeça leonina:

- Não, Próspero, ele está fora de meu alcance. Um grande poeta é maior do que qualquer rei. Suas canções são mais poderosas que meu cetro; ele quase arrancou o coração de meu peito quanto resolveu cantar para mim. Eu morrerei e serei esquecido, mas as canções de Rinaldo viverão para sempre. Não, Próspero – continuou o rei, com um olhar sombrio de dúvida –; há algo oculto, um movimento subterrâneo do qual não temos conhecimento. Sinto isso como, na minha juventude, eu sentia o tigre escondido no matagal. Há uma agitação indefinível espalhada pelo reino. Sou como um caçador que se acocora ao lado de sua pequena fogueira no meio da floresta, ouve passos furtivos na escuridão e quase chega a ver o brilho de olhos chamejantes. Se eu pudesse ao menos agarrar algo tangível, eu o cortaria com a minha espada! Vou lhe dizer uma coisa, não é por acaso que ultimamente os pictos têm atacado as fronteiras com tanta ferocidade, obrigando os bossonianos a pedirem ajuda para detê-los. Eu deveria ter ido junto com os soldados.

- Publius receava um possível plano para aprisionar e matar você, além da fronteira. – retrucou Próspero, alisando seu manto de seda sobre a malha reluzente e admirando sua figura alta e esguia, num espelho de prata – Foi por isso que ele insistiu para que você ficasse na cidade. Essas dúvidas nascem de seus instintos bárbaros. Deixe que as pessoas resmunguem! Os mercenários são nossos, e os Dragões Negros, e cada patife em Poitain jura lealdade a você. O único perigo que você corre é o de um assassinato, mas isto é impossível, pois os homens das tropas imperiais protegem-no dia e noite. Em que você está trabalhando aí?

- Num mapa. – respondeu Conan com orgulho. – Os mapas da corte mostram bem os países do sul, do leste e do oeste, mas os do Norte são vagos e errôneos. Eu mesmo estou acrescentando as terras do Norte.

- Por Mitra – disse Próspero –, poucos conhecem essas terras. Todos sabem que, a leste da Aquilônia, está a Nemédia, depois a Britúnia e depois Zamora; ao sul está Koth e as terras de Shem; a oeste, além dos pântanos bossonianos, estendem-se as Terras Pictas; além dos pântanos bossonianos do norte está a Ciméria. Quem sabe o que existe além dessas terras?

- Eu sei – respondeu o rei –, e estou passando meu conhecimento para este mapa. Aqui é a Ciméria, onde nasci. E...

- Asgard e Vanaheim. – Próspero examinou o mapa – Por Mitra, eu quase cheguei a acreditar que essas terras só existissem em lendas.

Conan deu um sorriso largo, tocando involuntariamente as cicatrizes em seu rosto escuro e bem barbeado.

- Por Mitra, se você tivesse passado sua juventude nas fronteiras setentrionais da Ciméria, saberia que elas existem! Asgard fica mais ao norte, e Vanaheim a noroeste, e existe uma guerra constante ao longo das fronteiras. A parte ocidental de Vanaheim fica ao longo das praias do mar do oeste, e a leste de Asgard estão as terras dos hiperbóreos, que são civilizados e vivem em cidades. No leste, além de suas terras, estão os desertos dos hirkanianos.

- Como são os homens que vivem no Norte? – perguntou Próspero, curioso.

- Altos, claros e de olhos azuis, com o mesmo sangue e linguagem, só que os aesires têm cabelos loiros, e os vanires, cabelos vermelhos. O principal deus deles é Ymir, o Gigante de Gelo, e cada tribo tem seu próprio rei. Eles são indóceis e ferozes. Lutam o dia inteiro, e bebem cerveja e gargalham ao som de suas canções bárbaras todas as noites.

- Então, acho que você se parece mais com eles do que com seu próprio povo. – riu Próspero – Você ri abertamente, bebe intensamente e canta alto boas canções; afinal, nunca vi outro cimério que bebesse outra coisa além de água, ou que risse, ou que só cantasse hinos lúgubres.

- Talvez seja por causa da terra onde vivem. – respondeu o rei – Não há terra mais lúgubre. É toda cheia de colinas, coberta por florestas densas, e as árvores são estranhamente escuras, a ponto de fazer com que a terra pareça sombria e ameaçadora, mesmo durante o dia. Até onde um homem pode enxergar, seus olhos avistam infindáveis colinas atrás de colinas, cada vez mais escuras à distância. Sempre há nuvens entre essas colinas; os céus estão quase sempre cinzentos. Os ventos sopram frios e cortantes, trazendo chuva, granizo ou neve, e gemendo melancolicamente ao passar pelos vales. Há pouca alegria naquelas terras.

- Não é de surpreender que os homens sejam taciturnos por lá. – observou Próspero, encolhendo os ombros, pensando nas planícies sorridentes, banhadas pelo sol, e nos preguiçosos rios azuis de Poitain, a província mais meridional da Aquilônia.

- Realmente estranhos e taciturnos. – respondeu Conan – A vida parece dura, amarga e fútil. Os homens dessas colinas meditam muito sobre o desconhecido. Têm sonhos monstruosos. Os deuses deles são Crom e sua raça sombria, e eles acreditam que o mundo dos mortos é um lugar frio e sem sol, sempre envolto em névoas, onde fantasmas errantes lamentam por toda a eternidade. Eles não têm esperança nem nesta vida nem no além, e pensam demais no vazio da existência. Já vi a estranha loucura da futilidade acometê-los quando coisas pequenas, como um redemoinho de poeira, o canto oco de um pássaro ou o gemido do vento passando por galhos nus transporta suas mentes tristes para o vazio da vida e a falta de sentido da existência. Somente na guerra, os cimérios se sentem felizes. Mitra! Os costumes dos aesires eram mais do meu gosto.

- Bem – sorriu Próspero –, as colinas sombrias da Ciméria estão muito longe de você agora. E agora, eu preciso ir. Tomarei uma taça de vinho branco nemédio por você na corte de Numa.

- Ótimo – grunhiu o rei –, mas só beije as dançarinas de Numa por você mesmo, para não envolver o Estado!

Sua risada sonora seguiu Próspero até o lado de fora do salão. A porta entalhada fechou-se atrás do poitainiano, e Conan voltou ao seu trabalho. Fez uma pausa por um momento, ouvindo ociosamente os passos do amigo se afastando, que soavam nas lajotas. E, como se aquele som vazio tocasse um acorde familiar em sua alma, uma torrente de repulsa o envolveu. Sua alegria caiu como uma máscara, e seu rosto ficou subitamente velho, os olhos cansados. A inexplicável melancolia do cimério caiu como uma mortalha sobre sua alma, paralisando-o com uma esmagadora sensação da futilidade dos esforços humanos e da falta de sentido da vida. Sua realeza, seus prazeres, seus temores, suas ambições, e todas as coisas terrenas se revelaram subitamente como pó e brinquedos quebrados. As fronteiras da vida murcharam e as linhas da existência se fecharam ao seu redor, entorpecendo-o. Deixando cair a cabeça leonina em suas poderosas mãos, ele gemeu em voz alta.

Depois, ao erguer a cabeça, como um homem procurando escapar, seu olhar pousou sobre um jarro de cristal com vinho amarelado. Levantou-se rapidamente, encheu um cálice até a borda e sorveu num só gole. Novamente encheu e esvaziou o cálice, e mais uma vez. Quando o pousou sobre a mesa, um calor agradável percorreu suas veias. Coisas e acontecimentos assumiram novas dimensões. As sombrias colinas da Ciméria desapareceram atrás dele. Afinal, a vida era boa, real e vibrante – não o sonho de um deus idiota. Ele se espreguiçou como um gato gigantesco e sentou-se à mesa, consciente da magnitude e da vital importância de si mesmo e de sua tarefa. Contente, ele mordiscou sua pena e olhou para o mapa.

- Ao sul da Hiperbórea está a Britúnia. – murmurou em voz alta. Selecionando um grande espaço em branco, suficientemente distante do deserto hirkaniano, para surpreender um explorador curioso, escreveu com cuidado: “Aqui há dragões”. Em seguida, reclinou-se e revisou seu trabalho com um orgulho infantil.


<strong>3)</strong> <em>"Ao pé das pirâmides cavernosas, o grande Set dorme enrolado em seus anéis;
Entre as sombras dos túmulos se esgueira seu povo sombrio.
Dos abismos ocultos que nunca conheceram o sol, eu pronuncio a Palavra...
Envia-me um servo para servir ao meu ódio, ó Escamoso e Reluzente!"</em>



O sol se punha, retocando, com breves tons dourados, o tom verde e o vago azul da floresta. Os raios enfraquecidos refletiam-se na grossa corrente dourada que Dion de Attalus torcia constantemente em sua mão gorda, sentado num mar chamejante de flores e arbustos floridos que era o seu jardim. Ele movia o corpo obeso sobre o assento de mármore e olhava furtivamente ao seu redor, como se estivesse procurando um inimigo escondido. Estava sentado num bosque circular de árvores delgadas, cujos galhos entrelaçados lançavam uma sombra espessa sobre ele. Ao alcance de sua mão, uma fonte tinia prateada, e outras fontes, em diversas partes do enorme jardim, sussurravam uma sinfonia ininterrupta.

Dion estava sozinho, com exceção da companhia de uma figura escura acomodada num banco de mármore próximo a ele, que observava o barão com profundos olhos sombrios. Dion dedicava pouca atenção a Thoth-Amon. Sabia vagamente que ele era um escravo em quem Ascalante depositava muita confiança, mas, assim como muitos homens ricos, Dion mal notava os homens que estivessem abaixo de sua posição.

- Não precisa ficar tão nervoso. – disse Thoth – O plano não pode falhar.

- Ascalante pode cometer erros, como qualquer um. – retorquiu Dion, suando com a mera idéia de fracasso.

- Não ele – disse o stígio, com um sorriso selvagem –; ou eu não seria seu escravo, mas seu senhor.

- Que conversa é essa? – devolveu Dion irritado, com apenas meia atenção na conversa.

Os olhos de Thoth-Amon se estreitaram. Apesar de todo o seu rígido autocontrole, estava prestes a explodir por causa da vergonha, do ódio e da fúria longamente acumulados, pronto para assumir qualquer tipo de risco desesperado. Ele não esperava que Dion o considerasse não um ser humano dotado de cérebro e inteligência, mas um mero escravo e, como tal, uma criatura desprezível.

- Ouça-me. – disse Thoth – Você será rei. Mas conhece pouco a mente de Ascalante. Não poderá confiar nele depois que Conan for morto. Eu posso ajudar. Proteja-me quando assumir o poder, e eu o ajudo.

“Ouça, milorde. Eu era um grande feiticeiro no sul. Os homens falavam de Thoth-Amon como falavam de Rammon. O Rei Ctesphon da Stygia me dedicava grande estima, derrubando magos de altos postos para me enaltecer acima deles. Eles me odiavam, mas tinham medo de mim, pois eu controlava seres do além, que respondiam ao meu chamado e cumpriam minhas ordens. Por Set, meus inimigos não sabiam a hora em que poderiam acordar no meio da noite, e sentirem as garras de um horror sem nome nas suas gargantas! Eu era um mestre da magia negra. Realizei magias negras e terríveis com o Anel da Serpente de Set, que encontrei num túmulo tenebroso, uma légua abaixo da terra, esquecido lá antes que o primeiro homem se arrastasse para fora do mar lamacento.

“Mas um ladrão roubou o Anel, e meu poder se foi. Os magos se insurgiram e tentaram me matar, mas eu fugi. Disfarçado de condutor de camelos, estava viajando com uma caravana pelo país de Koth, quando os saqueadores de Ascalante caíram em cima de nós. Todos da caravana foram mortos, exceto eu. Salvei minha vida revelando minha identidade a Ascalante e jurando servi-lo. Que amarga tem sido esta escravidão!

“Para manter minhas mãos amarradas, ele escreveu sobre mim num manuscrito, selou-o e o depositou nas mãos de um eremita que mora na fronteira sul de Koth. Não ouso apunhalá-lo enquanto ele dorme, nem entregá-lo para seus inimigos, porque então o eremita abriria o manuscrito e o leria... conforme as instruções de Ascalante. E enviaria a notícia de onde estou por toda Stygia...”.

Thoth tremeu de novo, e uma coloração cinzenta cobriu-lhe a pele escura.

- Ninguém me conhece na Aquilônia – disse ele – Mas, se meus inimigos na Stygia souberem do meu paradeiro, nem que eu estivesse do outro lado do mundo, estaria a salvo de um destino tão terrível que seria capaz de explodir a alma de uma estátua de bronze. Somente um rei com castelos e exércitos de espadachins pode me proteger. Portanto, contei-lhe meu segredo e insisto que faça um pacto comigo. Posso ajudá-lo com minha sabedoria, e você pode me proteger. E no dia em que eu encontrar o Anel...

- Anel? Anel? – Thoth havia subestimado o absoluto egoísmo do homem. Dion nem ao menos ouvira as palavras do escravo, de tão absorto que estava em seus próprios pensamentos, mas a última palavra avivou uma fagulha em seu egoísmo.

- Anel? – repetiu ele – Isto me faz lembrar... do meu anel da boa sorte. Ganhei de um ladrão shemita, que jurou tê-lo roubado de um mago do sul, e que ele me traria sorte. Paguei caro por ele, Mitra sabe quanto. Pelos deuses, preciso de toda a sorte que puder conseguir nessa situação, em que Volmana e Ascalante me arrastam para suas conspirações sangrentas... vou procurar o anel.

Thoth levantou-se de um salto, o sangue subindo-lhe ao rosto, enquanto os olhos queimavam com a fúria pasmada de um homem que percebe de repente a profundidade da estupidez suína de um tolo. Dion não ouvira palavra alguma. Erguendo uma tampa secreta no seu assento de mármore, ele remexeu por alguns momentos num monte de quinquilharias de todos os tipos – amuletos bárbaros, pedaços de ossos, jóias espalhafatosas –, objetos de sorte e de encantamento que a natureza supersticiosa do homem o impulsionara a colecionar.

- Ah, aqui está! – ergueu triunfante um anel de feitio estranho. Era de um metal parecido com cobre, na forma de uma serpente escamada, enrolada em três anéis, mordendo o próprio rabo. Os olhos eram pedras amarelas que brilhavam maldosamente. Thoth-Amon gritou como se tivesse sido atingido, e Dion cambaleou ofegante, seu rosto repentinamente pálido. Os olhos do escravo ardiam em fogo, a boca escancarada, as enormes mãos escuras estendidas como garras.

- O Anel! Por Set! O Anel! – berrou ele – Meu Anel, que me foi roubado...

O aço reluziu na mão do stígio e, contraindo seus largos ombros escuros, ele enfiou o punhal no corpo gordo do barão. O guincho agudo e estridente de Dion passou para um engasgado gorgolejo e seu corpo balofo desabou como manteiga derretida. Um tolo até o fim, que morreu enlouquecido de terror, sem saber por quê. Afastando o cadáver disforme, já esquecido dele, Thoth agarrou o anel com as duas mãos, seus olhos escuros brilhando com uma temível avidez.

- Meu Anel! – ele sussurrou, em terrível alegria – Meu poder!

Nem o próprio stígio saberia dizer quanto tempo ficara curvado sobre aquela coisa maligna, imóvel como uma estátua, absorvendo a aura maléfica do anel através de sua alma. Quando acordou de seu devaneio e afastou sua mente dos abismos soturnos onde esteve perscrutando, a lua já subia no céu, lançando longas sombras no encosto de mármore liso do banco do jardim, ao pé do qual estava estendida uma sombra mais escura, que fora o senhor de Attalus.

- Finalmente, Ascalante, acabou! – murmurou o stígio, e seus olhos arderam vermelhos como os de um vampiro na escuridão. Abaixando-se, ele recolheu um punhado de sangue coagulado da poça pegajosa na qual sua vítima estava estendida e esfregou-o nos olhos da serpente de cobre, até as faíscas amarelas ficarem cobertas por uma máscara rubra.

- Cegue seus olhos, serpente mística. – entoou ele num sussurro de congelar o sangue – Fecha seus olhos para a luz da lua e abra-os sobre golfos mais sombrios! O que vês, ó serpente de Set? A quem chamas desde os abismos da Noite? De quem são as sombras que caem sobre a Luz enfraquecida? Chama-o para mim, ó serpente de Set!

Acariciando as escamas com um movimento circular e específico de seus dedos, um movimento que sempre voltava ao ponto inicial, sua voz baixava cada vez mais enquanto sussurrava nomes obscuros e encantamentos sombrios, esquecidos pelo mundo salvo nas soturnas terras do interior da escura Stygia, onde formas monstruosas se movem nas sombras dos túmulos.

Então o ar ao redor do mago começou a se mover, como o redemoinho que acontece na água quando alguma criatura emerge à superfície. Uma lufada de vento abominável e gelado o envolveu brevemente, como se viesse de uma porta aberta. Thoth sentiu uma presença atrás de si, mas não se voltou para olhar. Manteve os olhos fixos sobre o espaço de mármore banhado pelo luar, sobre o qual pairava uma sombra tênue. Enquanto continuava a sussurrar seus encantamentos, a sombra crescia em tamanho e nitidez, até delinear-se em toda a sua horripilante definição. Seu contorno não era diferente do de um gigantesco babuíno, mas jamais um babuíno assim andou sobre a Terra, nem mesmo na Stygia. Mesmo assim, Thoth não olhou, mas, tirando de seu cinto uma sandália pertencente ao seu senhor – ele sempre a levava, na tênue esperança de usá-la um dia –, jogou-a atrás de si.

- Observe bem esta sandália, escravo do Anel! – exclamou – Encontre e destrua aquele que a usou! Olhe bem nos olhos dele e destrua sua alma, antes de estraçalhar sua garganta! Mate-o! Sim – num assomo de paixão cega –, e a todos que estiverem com ele!

Delineado na parede enluarada, Thoth viu o horror abaixar sua cabeça disforme e farejar o objeto como um mastim horrendo. Em seguida, a horrível cabeça caiu para trás, e a coisa virou-se e desapareceu como um vento entre as árvores. O stígio jogou os braços para cima, enlouquecido de alegria, e seus dentes e olhos brilharam ao luar.

Um soldado, montando guarda fora dos muros, deu um grito de assustado terror quando uma enorme sombra negra, com olhos chamejantes, desprendeu-se da parede e passou por ele, com um redemoinho de vento. Mas ela desapareceu tão rapidamente que o perplexo guerreiro ficou se perguntando se acabara de ter um sonho ou uma alucinação.



<strong>4)</strong> <em>Quando o mundo era jovem, os homens eram fracos e os inimigos da noite caminhavam livremente,
Eu lutei contra Set com fogo, com aço e com a seiva das árvores-upas;
Agora que durmo no coração negro da montanha e os séculos cobram seu tributo.
Esqueceis daquele que lutou com a Serpente para salvar a alma humana?</em>


Sozinho no grande quarto de dormir com abóbada dourada, o rei Conan dormitava e sonhava. Em meio a rodopiantes névoas cinzentas, ele ouviu um estranho chamado, fraco e distante; e, embora não o entendesse, não era capaz de ignorá-lo. Empunhando a espada, ele foi caminhando através da névoa cinzenta, como um homem andando através de nuvens, e a voz ia ficando cada vez mais clara à medida que ele avançava, até que entendeu a palavra que estava sendo pronunciada – era seu próprio nome que estava sendo chamado, através dos abismos do Espaço e do Tempo.

Então, as névoas ficaram mais claras, e ele se viu num grande corredor escuro que parecia ter sido escavado em sólida rocha negra. Não estava iluminado, mas por alguma magia, ele conseguia ver claramente. O chão, o teto e as paredes eram bem polidos e emitiam uma luz opaca, e estavam entalhados com figuras de antigos heróis e deuses semi-esquecidos. Ele tremeu ao ver os grandes contornos sombreados dos Antigos Seres Sem Nome, e percebeu de algum modo que havia séculos que pés mortais não atravessavam o corredor.

Ele chegou até uma escada larga, escavada na sólida rocha: os lados da coluna estavam ornamentados com símbolos esotéricos tão antigos e terríveis que a pele do rei Conan se arrepiou. Em cada um dos degraus, havia entalhada uma figura abominável da Velha Serpente, Set, de modo que, a cada passo, ele plantava o calcanhar na cabeça da Serpente, como era a intenção nos tempos antigos. Mas ele não se sentia nada à vontade com aquilo tudo.

A voz continuava a chamá-lo e, finalmente, envolvido na escuridão que seria impenetrável para seus olhos materiais, ele entrou numa cripta estranha e viu um vulto difuso, de barbas brancas, sentado sobre uma tumba. O cabelo de Conan ficou em pé, e ele agarrou a espada, mas o vulto falou em tons sepulcrais:

- Ó homem, tu me conheces?

- Não, por Crom! – jurou o rei.

- Homem – disse o ancião –, eu sou Epemitreus.

- Mas Epemitreus, o Sábio, está morto há 1500 anos! – exclamou Conan.

- Ouça! – falou o outro com autoridade – Assim como um seixo lançado num lago escuro envia ondas às mais distantes praias, eventos do Mundo Invisível estouraram como ondas sobre meu sono. Eu tenho te observado muito bem, Conan da Ciméria, e a marca de acontecimentos poderosos e de feitos grandiosos está em ti. Mas a destruição está à solta nessas terras, contra a qual tua espada não poderá te ajudar.

- Você fala por enigmas. – disse Conan inquieto – Deixe-me ver o inimigo, e eu arrebento o crânio dele até os dentes.

- Solta tua fúria de bárbaro contra teus inimigos de carne e osso. – respondeu o ancião – Não é contra homens que eu devo te proteger. Existem mundos obscuros que os homens mal imaginam existir; Vazios Exteriores, de onde monstros disformes podem ser chamados e materializados por magos perversos para dilacerar e devorar as pessoas. Há uma serpente em tua casa, ó rei... uma víbora em teu reino, vinda da Stygia, que tem a sabedoria negra das trevas em sua alma sombria. Assim como um homem adormecido sonha com a serpente que rasteja perto dele, eu senti a presença maléfica do neófito de Set. Ele está embriagado de poder terrível, e os golpes que ele desfecha contra seus inimigos podem derrubar o teu reino. Eu te trouxe até aqui para te dar uma arma contra ele e suas hostes infernais.

- Mas por quê? – perguntou Conan espantado – Os homens dizem que você dorme no coração negro de Golamira, de onde envia seu espírito sobre asas invisíveis para ajudar a Aquilônia em tempos de necessidade, mas eu... eu sou um estrangeiro e um bárbaro.

- Paz! – os tons fantasmagóricos ressoaram pela grande caverna obscurecida – Teu destino está unido ao da Aquilônia. Acontecimentos gigantescos estão se formando na teia e no ventre do Destino, e um feiticeiro louco por sangue não se porá no caminho do destino imperial. Eras atrás, Set se enrolou ao redor do mundo como uma píton ao redor de sua presa. Durante toda a minha vida, que equivaleu à de três homens comuns, lutei contra ele. Eu o afugentei para as sombras do sul misterioso, mas na obscura Stygia, os homens ainda adoram aquele que para nós é o arqui-demônio. Assim como eu lutei contra Set, eu também combato seus adoradores, seus seguidores e seus acólitos. Desembainha tua espada.

Surpreso, Conan obedeceu, e sobre a grande lâmina, perto do pesado guarda-mão de prata, o ancião traçou com seu dedo esquelético um estranho símbolo, que reluziu como fogo branco nas sombras. E, no instante seguinte, a cripta, a tumba e o ancião desapareceram. Conan, confuso, despertou sobressaltado em seu leito na enorme câmara de domo dourado. E, enquanto se levantava, aturdido com seu estranho sonho, percebeu que segurava a espada. E o cabelo ficou eriçado na sua nuca, pois havia um símbolo gravado sobre a lâmina larga – o contorno de uma fênix. E ele se lembrou de que sobre o túmulo na cripta, ele vira o que pensava ser uma figura semelhante, escavada na pedra. Agora ele se perguntava se teria sido apenas uma figura de pedra, e sua pele se arrepiou diante da estranheza de tudo isso.

Então, um ruído furtivo no corredor o trouxe de volta à realidade, e sem parar para investigar, começou a vestir sua armadura; era novamente o bárbaro, desconfiado e alerta como um lobo cinza acuado.


<strong>5)</strong> <em>“Que sei eu sobre educação, ouro, artes e mentira?
Eu, que nasci numa terra nua e cresci sob o céu aberto.
A língua sutil e a astúcia sofista fracassam quando as espadas cantam;
Correi e morrei, cães – eu era um homem antes de ser um rei”.
</em>(A Estrada dos Reis)


Em meio ao silêncio que envolvia o corredor do palácio real, esgueiravam-se vinte figuras furtivas. Seus pés silenciosos, nus ou calçados com couro macio, não faziam ruído no tapete espesso nem no ladrilho de mármore. As tochas acesas nos nichos ao longo dos corredores refletiam-se vermelhas sobre punhais, espadas e machados bem afiados.

- Quietos! – sibilou Ascalante – Pare com esta maldita respiração ruidosa, seja quem for! O oficial do turno da noite retirou a maioria das sentinelas destes salões e embriagou o resto, mas nós devemos ter cuidado do mesmo jeito. Para trás! A guarda está vindo!

Eles se espremeram atrás de um aglomerado de colunas entalhadas, e quase que imediatamente dez gigantes em armaduras negras passaram marchando por eles. Seus olhares demonstravam dúvida, dirigindo-se ao oficial que os retirava de seus postos. Este oficial estava bastante pálido; quando a tropa passou pelos esconderijos dos conspiradores, ele foi visto enxugando o suor de sua testa com a mão trêmula. Era jovem, e sua traição a um rei não era fácil. Amaldiçoava em pensamentos a sua extravagância fútil, que o havia colocado em débito com agiotas e fizera dele uma marionete nas mãos de conspiradores políticos.

Os guardas passaram tinindo suas armaduras e desapareceram no corredor.

- Ótimo! – sorriu Ascalante – Agora Conan está dormindo desprotegido. Depressa! Se formos pegos matando-o, estamos perdidos... mas poucos homens abraçarão a causa de um rei morto.

- Sim, depressa! – gritou Rinaldo, com seus olhos azuis combinando com o brilho da espada que brandia acima da cabeça – Minha lâmina está sedenta! Posso ouvir os abutres se reunindo! Vamos!

Eles se precipitaram pelo corredor, parando diante da porta dourada, entalhada com o dragão real, símbolo da Aquilônia.

- Gromel! – ordenou Ascalante – Arrombe esta porta para mim!

O gigante respirou fundo e lançou seu corpo poderoso contra os painéis, que gemeram e vergaram com o impacto. Ele recuou e arremeteu mais uma vez. Os cravos saltaram para fora, a madeira se despedaçou, e a porta rachou e cedeu para dentro.

- Entrem! – bramiu Ascalante, inflamado com o espírito da ação.

- Para dentro! – berrou Rinaldo – Morte ao tirano!

Os conspiradores estancaram. Quem os encarava era Conan; não um homem nu, desarmado, confuso e tirado de seu sono profundo, para ser massacrado como uma ovelha, mas um bárbaro bem alerta, acuado e pronto para se defender, parcialmente vestido com sua armadura e empunhando sua longa espada.

Por alguns instantes, a cena ficou imóvel – os quatro nobres rebeldes na porta destruída e a horda de selvagens rostos barbudos aglomerados atrás dele –, e todos momentaneamente paralisados diante da visão do gigante de olhos ardentes, de pé, segurando a espada na mão, parado no meio do salão iluminado por velas. No mesmo instante, Ascalante viu, sobre uma pequena mesa perto do leito real, o cetro de prata e o delgado diadema de ouro que era a coroa da Aquilônia, e aquela visão deixou-o louco de desejo.

- Entrem, malditos! – berrou a criminoso – Ele é um contra vinte, e está sem o capacete!

Verdade; não houve tempo para colocar o pesado capacete emplumado, nem para amarrar as placas laterais da armadura, nem para pegar o enorme escudo da parede. Mesmo assim, Conan estava mais protegido do que qualquer um de seus inimigos, exceto Volmana e Gromel, que vestiam armaduras completas.

O rei fitava-os, confuso quanto à identidade deles. Não conhecia Ascalante; não conseguia ver através das viseiras fechadas dos elmos dos conspiradores blindados, e Rinaldo havia enfiado o capuz de sua capa folgada por cima dos olhos. Mas não havia tempo para conjecturas. Com um grito que ecoou até o teto, os assassinos invadiram o quarto, com Gromel à frente. Ele investiu como um touro ao ataque, a cabeça abaixada e a espada também baixa, para dar um golpe estripador. Conan pulou ao seu encontro, e toda a sua força de tigre se concentrou no braço que brandia a espada. Sibilando, a grande lâmina descreveu um semicírculo faiscante, e golpeou o capacete do bossoniano. A lâmina e o capacete se estilhaçaram, e Gromel rolou sem vida no chão. Conan pulou para trás, ainda segurando o cabo quebrado.

- Gromel! – cuspiu ele, com os olhos queimando de espanto, quando o capacete fendido revelou a cabeça despedaçada; em seguida, o resto da matilha se lançou sobre ele. A ponta de um punhal arranhou suas costelas, entre o peitoral e o dorsal da armadura, uma lâmina de espada relampejou diante de seus olhos. Com o braço esquerdo, ele jogou de lado o portador do punhal, e esmagou a têmpora do espadachim com o cabo da espada. Os miolos do homem espirraram em seu rosto.

- Guardem a porta, cinco de vocês! – berrou Ascalante, dançando na beira do sibilante redemoinho de aço, pois receava que Conan pudesse abrir caminho no meio deles e fugir. Os bandidos retrocederam momentaneamente, quando o seu líder agarrou vários deles e empurrou-os em direção à única porta; neste breve intervalo, Conan pulou e arrancou da parede um antigo machado de guerra que, intocado pelo tempo, ficara pendurado ali durante meio século.

Encostando-se à parede, ele encarou, por um breve instante, o círculo humano que se fechava ao seu redor, e então pulou para o meio deles. Conan não era um lutador defensivo; sempre partia para o ataque, mesmo quando estava nas presas de uma desvantagem devastadora, sempre levando a guerra ao inimigo. Qualquer outro homem já teria morrido ali, e o próprio Conan não esperava sobreviver, mas desejava ferozmente infligir tanto estrago quanto pudesse antes de cair. Sua alma de bárbaro estava em fogo, e os cantos de velhos heróis ecoavam em seus ouvidos.

Quando ele se afastou da parede com um pulo, seu machado derrubou um criminoso, decepando-lhe o ombro, e o terrível contra-golpe esmagou o crânio de outro. Espadas sibilavam ameaçadoras ao seu redor, mas a morte o poupava por pequenas margens. O cimério se movia numa velocidade estonteante. Era um tigre entre babuínos, pulando, recuando, girando e sempre oferecendo um alvo móvel, enquanto seu machado tecia uma roda brilhante de morte à sua volta.

Por um breve momento, os assassinos aglomeraram-se ferozmente em torno dele, golpeando cegamente, atrapalhados pelo próprio grande número deles; em seguida, recuaram abruptamente: dois cadáveres no chão davam a muda evidência da fúria do rei, embora o próprio Conan estivesse sangrando de ferimentos no braço, pescoço e pernas.

- Covardes! – berrou Rinaldo, arrancando seu gorro emplumado, os olhos selvagens faiscando – Estão evitando o combate? O déspota deve viver? Ataquem!

Ele avançou, golpeando loucamente, mas Conan, reconhecendo-o, despedaçou-lhe a espada com uma terrível machadada e, com um poderoso empurrão com a mão aberta, derrubou-o rolando ao chão. O rei sentiu, no braço direito, a ponta da lâmina de Ascalante, e o criminoso mal teve tempo para salvar a vida, abaixando-se e pulando para trás, evitando assim o giro do machado. Os lobos tornaram a atacar, e o machado de Conan cantou e esmagou. Um patife cabeludo agachou-se para escapar do machado e agarrou as pernas do rei, mas depois de lutar por um breve momento com o que lhe parecia uma sólida torre de ferro, ergueu o olhar a tempo de ver o machado caindo, mas não de evitá-lo. Nesse ínterim, um de seus camaradas ergueu um sabre com as mãos e o enfiou através do protetor do ombro esquerdo do rei, ferindo seu ombro. Em poucos instantes, a armadura de Conan estava toda ensangüentada.

Volmana, empurrando os atacantes para os lados em sua impaciência selvagem, arremeteu um golpe assassino na cabeça desprotegida de Conan. O rei abaixou-se e a espada cortou-lhe uma mecha de cabelo negro, ao passar assobiando por cima dele. Conan girou sobre os calcanhares e golpeou de lado. O machado esmagou a armadura de aço e Volmana desabou com todo o seu lado esquerdo cortado.

- Volmana! – resfolegou Conan – Eu reconheceria esse anão até no Inferno...

Ele se endireitou para aparar o ataque enlouquecido de Rinaldo, que investiu selvagem e abertamente, armado apenas com um punhal. Conan pulou para trás, erguendo o machado.

- Rinaldo! – sua voz estava estridente de desespero – Para trás! Não quero matar você...

- Morra, tirano! – berrou o menestrel louco, jogando-se de cabeça contra o rei. Conan retardou o golpe que relutava em desferir, até que foi tarde demais. Foi só quando sentiu a mordida do aço em seu flanco desprotegido que ele golpeou, numa fúria absolutamente cega.

Rinaldo caiu, com o crânio esfacelado, e Conan cambaleou apoiando-se na parede, com o sangue espirrando entre os dedos que apertavam o ferimento.

- Vamos, matem agora! – gritou Ascalante.

Conan apoiou-se de costas na parede e ergueu o machado. Erguia-se como uma imagem da força primordial inconquistável: pernas bem afastadas, cabeça jogada para a frente, uma mão agarrando-se à parede, a outra segurando o machado erguido, os grandes músculos salientes como cordilheiras de ferro, e o rosto paralisado num esgar de fúria mortal – os olhos brilhando terrivelmente através da névoa de sangue que os encobria. Os homens hesitaram – embora fossem selvagens, criminosos e dissolutos, mesmo assim pertenciam a uma raça dita civilizada, com uma educação civilizada; à sua frente estava o bárbaro – o matador nato. Eles recuaram – o tigre moribundo ainda era capaz de matar.

Conan sentiu a hesitação deles e abriu um sorriso feroz e sem alegria.

- Quem morre primeiro? – resmungou através dos lábios esmagados e ensangüentados.

Ascalante pulou como um lobo, parou quase em pleno ar com uma rapidez incrível e caiu prostrado para evitar a morte que vinha sibilando em sua direção. Retirou freneticamente os pés do caminho, e rolou para evitar o ataque, enquanto Conan se recuperava do golpe perdido e investia de novo. Desta vez, o machado mergulhou fundo no chão polido, perto das pernas agitadas de Ascalante.

Outro assassino alucinado escolheu esse instante para atacar, seguido sem muita convicção pelos companheiros. Ele pretendia matar Conan antes que o cimério conseguisse arrancar o machado do chão; mas seu julgamento estava equivocado. O machado vermelho subiu e desceu, e uma caricatura escarlate de um homem foi arremessada contra as pernas dos outros atacantes.

Nesse instante, um grito aterrador partiu dos bandidos postados à porta e uma sombra negra e disforme tomou a parede. Todos, menos Ascalante, voltaram-se na direção do grito; e, em seguida, uivando como cães, eles se precipitaram cegamente pela porta, uma turba delirante blasfemando, que se espalhou pelos corredores numa fuga barulhenta.

Ascalante não olhou para a porta; tinha olhos somente para o rei ferido. Ele supunha que o ruído da luta houvesse finalmente acordado o palácio, e que os guardas leais estavam sobre ele, embora lhe parecesse estranho que seus calejados velhacos berrassem tão terrivelmente na fuga. Conan não olhou para a porta, porque fitava o criminoso com os olhos chamejantes de um lobo agonizante. Mesmo nesta situação extrema, a filosofia cínica de Ascalante não o abandonou:

- Parece que tudo está perdido, principalmente a honra. – murmurou – No entanto, o rei está morrendo de pé, e...

Não se soube que outra cogitação poderia estar passando por sua mente; pois, sem completar a frase, ele investiu facilmente contra Conan no momento em que o cimério estava, por força, usando o braço que segurava o machado para limpar o sangue dos olhos.

Mas, quando começou a atacar, houve uma estranha agitação no ar, e algo muito pesado golpeou com força entre seus ombros. Ele foi lançado de cabeça, e enormes garras enterraram-se dolorosamente em sua carne. Debatendo-se desesperadamente sob seu atacante, virou a cabeça e seus olhos fitaram a face do Pesadelo e da loucura. Sobre ele se agachava uma enorme coisa negra que, ele sabia, não havia nascido em nenhum mundo são ou humano. Suas negras presas, gotejando baba, estavam perto de sua garganta e o brilho dos olhos amarelos fazia murchar seus membros como um vento assassino que seca o trigo novo.

A feiúra da face transcendia a mera bestialidade. Poderia ser a face de uma múmia antiga e maléfica, animada por uma vida demoníaca. Nesses traços horripilantes, os olhos dilatados do fora-da-lei pareciam ver, como uma sombra na loucura que o envolvia, uma fraca e terrível semelhança com o escravo Thoth-Amon. Então a filosofia cínica e auto-suficiente abandonou Ascalante que, com um grito tenebroso, entregou a alma antes mesmo que aquelas presas babantes o tocassem.

Conan, sacudindo as gotas de sangue de seus olhos, observava a cena, paralisado. Primeiro, ele pensou que era um enorme mastim negro que estava sobre o corpo distorcido de Ascalante; em seguida, quando sua vista clareou, viu que não era nem um mastim nem um babuíno.

Com um brado, que era como um eco do grito de morte de Ascalante, ele se desprendeu da parede e investiu contra o horror, que saltava em sua direção, com um golpe de seu machado, imbuído de toda a força desesperada de seus nervos eletrificados. A arma voou e rebateu cantando do crânio inclinado que deveria ter sido despedaçado, e o rei foi jogado no meio do salão pelo impacto do corpo gigantesco.

As mandíbulas salivantes apertaram o braço que Conan erguera para proteger sua garganta, mas o monstro não precisou de esforço algum para firmar seu aperto mortal. Por cima do braço lacerado, aqueles olhos estavam fixos de forma demoníaca nos do rei, nos quais começava a se espelhar a imagem do horror que se refletia nos olhos mortos de Ascalante. Conan sentiu sua alma estremecer e começar a ser drenada de seu corpo, para afogar-se nos poços amarelos de horror cósmico que brilhavam espectrais no caos disforme que crescia ao seu redor e engolia toda a vida e sanidade. Aqueles olhos cresceram e se tornaram gigantescos, e neles o cimério vislumbrou a realidade de todos os horrores abissais e blasfemos que espreitam nos umbrais tenebrosos e vazios disformes de soturnos abismos. Ele abriu os lábios ensangüentados para gritar seu ódio e desprezo, mas somente um ruído seco escapou de sua garganta.

Mas o horror, que paralisara e destruíra Ascalante, despertou no cimério uma fúria frenética igual à loucura. Com uma torção vulcânica de seu corpo inteiro, ele se jogou para trás, sem se importar com a agonia de seu braço rasgado e arrastando o monstro consigo. E, estendendo a mão, sentiu algo que seu atordoado cérebro de lutador reconheceu como sendo o cabo de sua espada quebrada. Instintivamente, agarrou-o e golpeou com toda a energia de seus nervos, como se tivesse nas mãos uma adaga. A lâmina quebrada afundou, e o braço de Conan foi libertado quando a boca horrenda se abriu, como se agonizante. O rei foi jogado violentamente para o lado e, apoiando-se sobre uma das mãos, viu, perplexo, as terríveis convulsões do monstro, do qual jorrava um sangue espesso pelo grande ferimento aberto por sua lâmina quebrada. Enquanto observava, o monstro parou de se debater e jazia em espasmos, com os terríveis olhos mortos virados para cima. Conan pestanejou e sacudiu o sangue de seus próprios olhos; parecia-lhe que a coisa estava derretendo e se desintegrando numa massa pegajosa e disforme.

Então, uma confusão de vozes alcançou seus ouvidos, e o quarto foi invadido pelos cortesãos que finalmente haviam despertado – cavaleiros, fidalgos, damas, soldados armados, conselheiros –, todos falando, gritando e empurrando-se. Os Dragões Negros estavam próximos, enlouquecidos de raiva, praguejando e se agitando, com as mãos sobre as empunhaduras das espadas e com juramentos estrangeiros entre os dentes. Não havia sinal do jovem oficial da guarda da porta, nem conseguiram achá-lo mais tarde, embora o tenham procurado intensamente.

- Gromel! Volmana! Rinaldo! – exclamou Publius, o conselheiro-chefe, torcendo as mãos gordas por entre os cadáveres – Traição negra! Alguém vai pagar por isso! Chamem a guarda.

- A guarda já está aqui, velho tolo! – retorquiu galantemente Pallantides, comandante dos Dragões Negros, esquecendo-se da posição de Publius no sufoco do momento – É melhor parar de miar e nos ajudar a atar os ferimentos do rei. Ele pode sangrar até morrer.

- Sim, sim! – exclamou Publius, que era mais um homem de planos do que de ação – Precisamos cuidar das feridas dele. Mandem chamar todos os médicos da corte! Oh, meu senhor, que vergonha tenebrosa para a cidade! Estão mesmo totalmente mortos?

- Vinho! – arfou o rei do leito onde eles o depuseram. Eles aproximaram uma taça dos seus lábios ensangüentados e ele bebeu como um homem semi-morto de sede.

- Ótimo! – grunhiu ele, caindo para trás – Matar me dá uma sede maldita.

Eles haviam estancado o jorro de sangue; e a vitalidade natural do bárbaro estava começando a tomar conta.

- Cuide primeiro da ferida feita pelo punhal no meu lado. – ordenou aos médicos da corte – Rinaldo escreveu aqui um hino fúnebre para mim, e o estilo estava bem afiado.

- Deveríamos tê-lo enforcado há muito tempo. – resmungou Publius – Os poetas não servem para nada de bom... quem é este?

Ele tocou nervosamente o corpo de Ascalante com a ponta da sandália.

- Por Mitra! – exclamou o comandante – É Ascalante, o antigo conde de Thune! Que artimanha demoníaca o tirou de suas plagas desertas?

- Mas por que este olhar? – sussurrou Publius, afastando-se, com os olhos arregalados e com um estranho arrepio entre os pêlos da nuca gorda. Os outros ficaram em silêncio enquanto olhavam para o criminoso morto.

- Se tivessem visto o que ele e eu vimos – resmungou o rei, sentando-se, apesar dos protestos dos sanguessugas –, não estariam perguntando. Vejam por vocês mesmos este espanto... – Ele parou bruscamente, o queixo caído, o dedo apontando para o nada. No lugar onde o monstro havia morrido, havia apenas o chão vazio.

- Crom! – praguejou ele – A coisa se desfez e voltou ao lugar imundo que a gerou!

- O rei está delirando. – murmurou um nobre. Conan ouviu e exclamou pragas bárbaras.

- Por Badb, Morrigan, Macha e Nemain! – ele concluiu, furioso – Estou em posse de meu pleno juízo! Era como um cruzamento entre uma múmia stígia e um babuíno. Entrou pela porta, e os bandidos de Ascalante fugiram dele. Matou Ascalante, que estava prestes a me matar. Então aquilo me atacou e eu o matei, não sei como, pois meu machado rebateu contra ele como se fosse uma rocha. Mas acho que o Sábio Epemitreus teve algo a ver com isso...

- Vejam como ele fala de Epemitreus, morto há 1500 anos! – sussurraram uns aos outros.

- Por Ymir! – trovejou o rei – Esta noite eu falei com Epemitreus! Ele me chamou em meus sonhos e andei por um escuro corredor de pedra, entalhado com figuras de antigos deuses; subi uma escada de pedra, em cujos degraus havia desenhos de Set, e cheguei a uma cripta, e a uma tumba com uma fênix entalhada nela...

- Em nome de Mitra, meu rei, fique quieto! – Era o sumo sacerdote de Mitra que gritara, e seu rosto estava pálido.

Conan jogou a cabeça para trás, como um leão sacudindo sua juba, e seus olhos faiscaram.

- E quem é você para calar minha boca? – sua voz era grave como o rugido de um tigre enlouquecido.

- Não, não, meu senhor! – o sumo sacerdote tremia, mas não era por recear a ira do rei – Eu não quis ofender. – Ele inclinou a cabeça perto do rei, e falou num sussurro que somente Conan podia ouvir.

- Milorde, este é um assunto que está além da compreensão humana. Somente o círculo interno do sacerdócio sabe sobre o corredor de pedras negras, escavado por mãos desconhecidas no coração do Monte Golamira, ou sobre a tumba protegida pela fênix, onde Epemitreus foi colocado para descansar há 1500 anos. E, desde aquele tempo, nenhum homem vivo entrou lá, pois os sacerdotes escolhidos por ele, depois de colocarem o Sábio na cripta, fecharam a saída do corredor de maneira que homem algum pudesse achá-la, e atualmente nem mesmo os sumo sacerdotes sabem onde é. Somente por transmissão oral, passada pelos sumos sacerdotes a seus poucos escolhidos, e guardada com muito ciúme, os acólitos do círculo interno de Mitra sabem do local de descanso de Epemitreus, no coração negro de Golamira. Este é um dos Mistérios sobre os quais se assenta o culto de Mitra.

- Não sei dizer com que tipo de magia Epemitreus me levou até ele. – respondeu Conan – Mas falei com ele, e ele fez uma marca em minha espada. Não sei por que essa marca a tornou mortífera para o demônio, nem que magia está contida nela; mas, mesmo depois que a espada se quebrou sobre o capacete de Gromel, o pedaço que sobrou foi suficientemente para matar o horror. Ele morreu ali no chão.

O silêncio caiu assustadoramente sobre as pessoas que se aproximavam, e algumas caíram de joelhos, evocando Mitra, e outros fugiram gritando do quarto.

Pois no chão onde o monstro havia morrido, havia, como uma sombra tangível, uma enorme mancha escura que jamais poderia ser removida; a coisa deixara seu contorno bem nítido gravado no chão com seu próprio sangue, e a silhueta não era de homem nem de animal, nem de qualquer ser originário de um mundo saudável e normal

- Deixe-me ver sua espada. – sussurrou o sumo sacerdote, com a garganta repentinamente seca.

Conan estendeu a arma quebrada e o sumo sacerdote deu um grito, caindo de joelhos.

- Mitra nos proteja contra os poderes das trevas! – arfou ele – Você falou mesmo com Epemitreus esta noite! É o sinal secreto que ninguém além dele pode fazer: o emblema da fênix imortal, que paira eternamente sobre seu túmulo!

Conan fez uma carranca, atônito:

- Como essa marca tornou os demônios vulneráveis à minha espada?

O sumo sacerdote balançou a cabeça ao se erguer.

- Os mistérios das sombras estão além da nossa compreensão. Os símbolos são apenas os sinais externos de poderes ocultos. Nós somente vemos as evidências exteriores; não vemos o eterno jogo das forças que jazem por trás: os poderes da Luz opostos aos poderes das Trevas. Através de um símbolo do mal, um feiticeiro atrai formas de pesadelo do abismo; através de um símbolo de Luz, elas são rechaçadas de volta. Asas sombrias ensombram nossas almas; outras asas invisíveis abrem-se sobre nós como proteção. Os mais sábios de nós são como meras crianças cegas, tateando na escuridão.

- Por Crom – disse Conan –, os deuses e demônios da civilização são tão complexos e misteriosos quanto tudo o mais que a ela pertence. Sou realmente um homem cego tateando na noite. Mas de uma coisa eu entendo: há um mago no reino que terá que ser eliminado. Mas isso... esta mancha no chão, o que é?

O sumo sacerdote estremeceu, ao pegar a espada com mãos inseguras.

- Só Mitra sabe quais formas espreitam na Escuridão Exterior, ou se esgueiram no mundo invisível. Mas vejo a mão de Set por trás disso. Procure um stígio quando for caçar seu mago, meu rei. Esta mancha no chão... a não ser que estejamos todos loucos... é uma contraparte da sombra que seria projetada pela escultura de um deus simiesco que vi muito tempo atrás, agachada no altar de um templo obscuro das sombras, numa terra distante, na fronteira do país escuro da Stygia.

Fontes: Conan – Espada e Magia #1 (Ed. Unicórnio Azul/ 1995), Conan O Cimério Vol. 1 (Ed. Conrad/ 2006) e http://www.vb-tech.co.za/ebooks/Howard%20Robert%20E%20-%20Conan%2000%20-%20The%20Coming%20of%20Conan%20The%20Cimmerian%20-%20FF.txt

Agradecimento especial: Ao howardmaníaco Fabrício Souza.
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