Não me Cavem uma Sepultura

(por Robert E. Howard)



O troar da minha aldraba antiga, a ecoar assustadoramente pela casa, despertou-me de um sono inquieto e povoado de pesadelos. Espreitei pela janela. À luz dos últimos raios de luar, o rosto alvo do meu amigo John Conrad voltou-se para mim.

— Kirowan, posso subir? — perguntou, com voz trêmula e tensa.

— Com certeza! — Saltei da cama e vesti um roupão de banho, ao mesmo tempo em que o ouvia entrar pela porta da frente e subir as escadas.

Pouco depois, ele estava à minha frente e, à luz que eu tinha acendido, vi que as mãos lhe tremiam e reparei na invulgar palidez do seu rosto.

— O velho John Grimlan morreu há uma hora — disse ele abruptamente.

— Deveras? Eu não sabia que ele estava doente.

— Foi de repente, um ataque fulminante, uma espécie de convulsão parecida com a epilepsia. Como você sabe, de uns anos para cá ele sofria desses ataques.

Eu assenti. Sabia alguma coisa sobre o velho eremita que vivia na sua grande casa escura da colina. De fato, uma vez eu tinha presenciado um dos seus estranhos ataques, e ficara apavorado com as convulsões, os uivos e os gritos daquele pobre coitado, que rastejara pelo chão como uma cobra ferida, balbuciando terríveis maldições e tenebrosas blasfêmias, até a sua voz se tornar um grito sem palavras que lhe salpicava os lábios de espuma. Ao ver aquilo, percebi por que motivo as pessoas antigamente consideravam que essas vítimas estavam possuídas por demônios.

— … uma qualquer doença hereditária — dizia Conrad. — O velho John, sem dúvida, foi vítima de uma crescente debilidade provocada por uma doença nefasta, a qual teria talvez herdado de um antepassado remoto. Estas coisas às vezes acontecem. Ou então… bem, você sabe que o velho John, durante a sua juventude, esquadrinhou partes misteriosas da terra e vagou por todo o Oriente. É muito possível que tenha sido infectado por uma misteriosa malária durante as suas viagens. Ainda existem muitas doenças desconhecidas na África e no Oriente.

— Mas — eu retorqui — você ainda não disse a razão desta sua súbita visita a horas tão tardias — pois eu tinha reparado que já passava da meia-noite.

O meu amigo pareceu algo confuso.

— Bem, na verdade John Grimlan morreu sozinho, exceto pela minha presença. Ele recusou-se a receber qualquer tipo de ajuda médica e, nos últimos instantes, quando se tornou evidente que estava a morrer... eu já estava preparado para ir buscar ajuda de qualquer espécie, mesmo contra sua vontade... desatou numa gritaria tamanha que eu não podia recusar as suas súplicas inflamadas, nas quais ele dizia que não devia morrer sozinho.

“Eu já vira homens morrendo — acrescentou Conrad, limpando a transpiração da sua pálida fronte —, mas a morte de John Grimlan foi a mais assustadora que já presenciei”.

— Sofreu muito?

— Aparentava estar em grande agonia física, mas isso era largamente ultrapassado por um monstruoso sofrimento mental ou psíquico. O medo, refletido nos seus olhos esbugalhados, e os seus gritos, transcendiam qualquer concebível terror terreno. Deixe-me que eu lhe diga, Kirowan: o medo de Grimlan era maior e mais profundo do que o habitual medo do Além demonstrado pelo comum pecador.

Eu me mexi irrequieto. As tenebrosas implicações do que ele acabava de afirmar provocaram-me um arrepio de desconhecida apreensão que percorreu a minha espinha.

— Eu sei que as pessoas do campo diziam que, na juventude, ele tinha vendido a alma ao Diabo, e que os seus súbitos ataques epilépticos eram apenas um sinal visível do poder que o Demônio tinha sobre ele; mas tais afirmações eram, obviamente, tolices e pertenciam à Era das Trevas. Todos nós sabemos que a vida de John Grimlan era particularmente perversa e depravada, mesmo já perto do fim. Havia motivos muito bons para ele ser universalmente detestado e temido, pois eu nunca ouvi dizer que tivesse feito uma única boa ação. Você era o único amigo dele.

— E o nosso relacionamento era estranho — observou Conrad. — Eu me sentia atraído pelos seus invulgares poderes, pois, apesar da sua natureza grosseira, John Grimlan era um homem muito instruído e extremamente culto. Ele tinha-se embrenhado profundamente em estudos do Oculto, e foi assim que o conheci, dado que, como você sabe, eu mesmo sempre demonstrei um forte interesse por essa linha de investigação.

“Mas também aqui, como em todas as outras coisas, Grimlan era diabólico e perverso. Ignorou o lado branco do Ocultismo e mergulhou no lado negro, nas suas facetas mais terríveis, na adoração do diabo, no Vodu e no Xintoísmo. O seu conhecimento sobre estas infames artes e ciências era enorme, além de terrível. E ouvi-lo falar sobre as suas pesquisas e experiências causava tanto terror e repulsa como os que um réptil venenoso poderia inspirar. Pois não havia nada que não tivesse experimentado, e sobre algumas dessas coisas, até mesmo a mim, falou de forma muito breve. Uma coisa eu posso lhe dizer, Kirowan, é fácil rirmos de histórias sobre o mundo do oculto quando estamos bem acompanhados e sob a brilhante luz do sol, mas, se você tivesse se sentado a horas impróprias na silenciosa e bizarra biblioteca de John Grimlan, olhasse para os antigos e bolorentos livros e ouvisse os seus relatos medonhos, tal como eu ouvi, a sua língua enrolar-se-ia de puro terror como me aconteceu, e o sobrenatural lhe pareceria extremamente real e extremamente próximo, como pareceu a mim”.

— Mas, pelo amor de Deus, homem! — exclamei, visto a tensão estar se tornando insuportável. — Diz lá o que você quer de mim.

— Quero que me acompanhe à casa de John Grimlan e me ajude a cumprir as estranhas instruções que ele deixou, quanto ao que se devia fazer com o seu corpo.

Esta aventura não me agradava nada, mas vesti-me apressadamente, sentindo um ocasional arrepio premonitório a me agitar. Depois de me vestir, saí de casa com Conrad e subimos a estrada deserta que levava à casa de John Grimlan. A estrada serpenteava colina acima e, durante todo o caminho, olhando para o alto e para diante, eu podia ver que aquela casa grande e assustadora, empoleirada como um pássaro diabólico no cume da colina, era uma enorme sombra negra e austera recortada contra a luz das estrelas. A oeste, por detrás das baixas colinas negras onde a jovem lua se escondera dos olhares, aparecia uma difusa luz avermelhada. A noite parecia estar repleta de um mal crescente, e o constante zumbido provocado pelas asas dos morcegos, algures por cima da minha cabeça, fizera com que ficasse com os nervos em franja. Para acalmar o bater descompassado do meu próprio coração, eu disse:

— É da mesma opinião de muitos outros, que afirmavam que John Grimlan era louco?

Caminhamos durante alguns instantes antes de Conrad responder, aparentemente com uma estranha relutância.

— Se não fosse por causa de um certo incidente, eu diria que não havia homem mais lúcido. Mas, uma noite no seu estúdio, me pareceu que ele tinha subitamente abandonado todos os limites da razão.

“Ele tinha discursado durante horas sobre o seu tema favorito, a magia negra, quando de repente começou a gritar, ao mesmo tempo em que a sua face se iluminava com um estranho brilho diabólico: ‘Porque é que eu hei de ficar aqui sentado, tagarelando sobre estas criancices com você? Os rituais de vodu, os sacrifícios xintoístas, as serpentes emplumadas, as cabras sem cornos, os cultos à pantera, ora!... Sujidade e poeira que o vento afasta! Partículas do verdadeiro Oculto, dos mistérios mais profundos! Meros ecos do Abismo!...’.

“‘Podia contar-lhe coisas que destruiriam o seu cérebro torpe! Poderia sussurrar-lhe ao ouvido nomes que te aniquilariam como se fosses uma semente ressequida! Que sabe você de Yog-Sothoth (1), de Cthulhu e das cidades submersas? Nenhum destes nomes faz sequer parte das suas mitologias. Nem mesmo nos seus sonhos vocês vislumbraram as ciclópicas muralhas de Koth, nem se encolheram perante os terríveis ventos que sopram de Yuggoth (2)!’.

“‘Mas eu não vou lhe deixar mortificado com a minha sabedoria negra! Não posso esperar que o seu cérebro infantil abranja tudo aquilo que o meu guarda. Se fosses tão velho quanto eu, se tivesses visto o que eu vi – reinos a se desmoronarem e gerações que passam –, se tivesses recolhido como grãos maduros os tenebrosos segredos dos séculos…’.

“Nessa altura, ele delirava: a sua face selvaticamente iluminada tinha uma aparência pouco humana e, subitamente, reparando no meu evidente espanto, irrompeu numa horrível gargalhada.

“‘Meu Deus!’, exclamou ele num tom de voz e com um sotaque que me pareceram estranhos. ‘Parece-me que lhe assustei, e certamente não é para admirar, afinal de contas nada mais pareço do que um selvagem desnudo nas artes da vida. Você pensa que eu sou velho, não é? Ora, você ficaria boquiaberto e cairia de espanto, se eu revelasse as gerações de homens que conheci’.

“Nesse momento, fui tomado de tal horror que fugi dele como se fugisse de uma víbora, e o clímax do seu diabólico riso seguiu-me até ao exterior da casa sombria. Alguns dias mais tarde, recebi uma carta onde ele me pedia desculpa pelos seus modos, atribuindo-os candidamente, demasiado candidamente, às drogas. Eu não acreditei, mas retomei o nosso relacionamento depois de alguma hesitação”.

— Parece-me pura loucura — murmurei.

—Sim — anuiu Conrad hesitantemente. — Mas, Kirowan, alguma vez você conheceu alguém que tivesse conhecido John Grimlan na sua juventude?

Eu abanei a cabeça.

— Empenhei-me em fazer uma discreta investigação sobre ele — disse Conrad. — Esse homem viveu aqui, há exceção de algumas ausências misteriosas, muitas vezes de meses seguidos, durante vinte anos. Os aldeões mais velhos lembram-se perfeitamente de quando ele chegou e ocupou aquela velha casa na colina, e todos dizem que, nos anos que se seguiram, ele não pareceu envelhecer perceptivelmente. Quando chegou, a sua aparência era exatamente a mesma que tem agora, ou tinha, até ao momento da sua morte: a aparência de um homem com cerca de cinqüenta anos.

“Eu encontrei o velho Von Boehnk em Viena, e ele me disse que tinha conhecido Grimlan quando era muito jovem e estudava em Berlim, há já cinqüenta anos, e ficou bastante surpreendido com o fato desse idoso ainda estar vivo, pois me disse que, na época, Grimlan parecia ter cerca de cinqüenta anos”.

Soltei uma exclamação incrédula, ao alcançar o sentido que a conversa ia tomando.

— Que disparate! O Professor Von Boehnk já tem mais de oitenta anos, e incorre nos erros característicos de uma idade avançada. Ele confundiu esse homem com outro. — No entanto, à medida que falava, o meu corpo retesou-se e os cabelos na minha nuca eriçaram-se.

— Bom — disse Conrad encolhendo os ombros —, já chegamos à casa.

O enorme edifício erguia-se ameaçadoramente diante de nós e, quando nos aproximávamos da porta da frente, um vento errante gemeu nas árvores ali próximas e eu sobressaltei-me tolamente quando ouvi de novo o fantasmagórico bater das asas dos morcegos. Conrad girou uma enorme chave na fechadura antiga e, logo que entramos, uma aragem fria passou por nós como um sopro vindo de uma sepultura, bafiento e frio. Estremeci.

Tateamos o nosso caminho através de um escuro corredor, até entrarmos no escritório e, uma vez lá, Conrad acendeu uma vela, pois naquela casa não havia candeeiros a óleo nem luz elétrica. Olhei à minha volta, receando o que a luz poderia revelar, porém essa sala, exageradamente coberta de tapeçarias e mobiliada de forma bizarra, estava vazia, exceto pela presença de nós dois.

— Onde… onde é que está… aquilo? — eu perguntei num sussurro rouco, vindo da minha garganta seca.

— Lá em cima — respondeu Conrad em voz baixa, mostrando que o silêncio e mistério da casa também o tinham enfeitiçado. — Lá em cima, na biblioteca, que foi onde ele morreu.

Olhei para cima involuntariamente. Algures sobre as nossas cabeças, o único proprietário dessa tenebrosa casa jazia no seu último sono, silencioso, o seu rosto branco tolhido numa máscara mortuária. O pânico tomou conta de mim e eu me esforcei para recuperar o controle. Afinal de contas, era apenas o corpo de um velho malvado, que já não poderia fazer mal a ninguém. Esse argumento ecoava-me futilmente no cérebro como as palavras de uma criança assustada que tentava se acalmar.

Virei-me para Conrad. Ele tinha tirado do bolso um envelope amarelado pelo tempo.

— Isto — disse ele, retirando do envelope várias páginas, de pergaminho amarelado pelo tempo, cobertas por uma escrita miudinha — é na verdade a última vontade de John Grimlan, embora só Deus saiba há quanto tempo foi escrita. Ele me deu este envelope há dez anos, logo após ter voltado da Mongólia. Foi pouco depois que teve o seu primeiro ataque.

“Ele me entregou este envelope selado e me fez jurar que eu o esconderia cuidadosamente, e que não o abriria até que ele morresse, altura em que eu deveria ler o seu conteúdo e seguir rigorosamente as suas instruções. E mais, ele me fez jurar que, independente do que ele me dissesse ou fizesse depois de me dar o envelope, eu deveria cumprir o que ele me dissera em primeiro lugar. ‘Pois’, observou com um sorriso assustador, ‘a carne é fraca, mas eu sou um homem de palavra, e apesar de, num momento de fraqueza, poder querer voltar atrás, já é tarde, agora já é tarde demais. Podes nunca vir a perceber o porquê, mas deves fazer exatamente como eu te disse’”.

— E então?

— Então — Conrad limpou novamente a fronte —, esta noite, quando se contorcia nos seus estertores, os seus uivos misturavam-se com admoestações frenéticas de que eu deveria ir buscar o envelope e destruí-lo à sua frente! Enquanto bramia esses avisos, ergueu-se nos cotovelos, com os olhos esbugalhados, o cabelo espetado, e gritou comigo de uma forma capaz de gelar o sangue. E ele urrava para que eu destruísse o envelope, para que não o abrisse; e numa ocasião, uivou, no seu delírio, que eu devia decepar o seu corpo e espalhar os pedaços aos quatro ventos do céu!

Uma incontrolável exclamação de horror escapou-me dos lábios secos.

— Por fim — continuou Conrad —, acabei por ceder. Recordando-me das suas advertências de há dez anos, mantive-me firme; mas por fim, à medida que os seus gritos iam se tornando insuportavelmente desesperados, virei-me para ir buscá-lo, mesmo que isso significasse deixá-lo sozinho. No entanto, quando me virei, vi que, com uma última e horrível convulsão, a qual fez com que uma espuma ensangüentada lhe escapasse dos lábios contorcidos, a vida lhe abandonara com uma única e grande sacudidela.

Ele remexeu no pergaminho.

— Vou cumprir a minha promessa. As instruções que aqui constam parecem-me irreais e podem ser os caprichos de uma mente perturbada; não obstante, dei a minha palavra. Resumidamente, são para que coloque o seu corpo na grande mesa de ébano preto que se encontra na biblioteca, e disponha à sua volta sete velas negras acesas. As portas e as janelas devem estar bem fechadas e trancadas. Em seguida, durante a escuridão que antecede a alvorada, eu devo ler a fórmula, o encantamento ou feitiço que se encontra dentro do envelope selado menor, que está no interior do primeiro, e o qual eu ainda não abri.

— Mas é só isso?! — exclamei. — Não há indicações quanto à sua fortuna, a sua propriedade ou o que fazer com o corpo?

— Nada. No seu testamento, que eu vi noutro lado, ele deixa a sua fortuna e a sua propriedade a um certo senhor oriental, apelidado no documento de Malik Tous!

— O quê? — perguntei cheio de espanto, abalado até ao âmago da minha alma — Conrad, isto é loucura atrás de loucura! Malik Tous… Oh, meu Deus! Nunca nenhum homem se chamou assim! Esse é o nome do infame deus adorado pelos misteriosos Yazidis (3), que habitam o Monte Alamut (4), O Amaldiçoado, cujas Oito Torres de Bronze se erguem nos misteriosos desertos da Ásia profunda. O seu símbolo de idolatria é o pavão de bronze. E os muçulmanos que odeiam esses devotos adoradores do demônio, dizem que ele é a essência do mal de todo o universo, o Príncipe das Trevas, Arimã, a velha serpente, o verdadeiro Satanás! E você diz que Grimlan faz referência a este demônio mítico no seu testamento?

— É verdade! — A garganta de Conrad estava seca. — E repare, ele rabiscou uma estranha frase no canto do seu pergaminho: “Não me cavem uma sepultura, pois eu não precisarei dela.”

Um arrepio percorreu-me novamente a espinha.

— Pelo amor de Deus — exclamei numa espécie de frenesi —, vamos despachar de vez este estranho assunto!

— Uma bebida pode ajudar – respondeu Conrad, umedecendo os seus lábios. — Parece-me que vi Grimlan ir buscar vinho neste armário. — Curvou-se na direção da porta de um armário de mogno com ornamentos esculpidos, e conseguiu abri-la com alguma dificuldade.

— Aqui não há vinho — disse desalentadamente. — E, se alguma vez senti necessidade de um estimulante… O que é isto?

Ele então retirou um rolo de pergaminho poeirento, amarelado, e meio coberto por teias de aranha. Tudo naquela casa sombria parecia, aos meus nervos excitados, carregado de um significado misterioso e de um determinado propósito, e eu me inclinei sobre o seu ombro enquanto ele o desenrolava.

— Trata-se de um assentamento nobiliárquico — disse Conrad. — De um registro de nascimentos, mortes e assim por diante, como o que as famílias mais antigas costumavam fazer, no século XVI e anteriormente.

— Qual é nome? — perguntei-lhe.

Ele franziu a sobrancelha enquanto olhava para os tênues rabiscos, tentando decifrar a desbotada escrita arcaica.

— G-r-y-m… já sei… Grymlann, claro. É o registro da família do velho John, os Grymlann da Mansão da Charneca dos Sapos, em Suffolk. Que nome tão estranho para uma propriedade! Repare na última entrada.

Juntos lemos: John Grymlann, nascido a 10 de março de 1630. E então gritamos ao mesmo tempo. Por baixo desta entrada, estava algo escrito recentemente, numa estranha caligrafia: Falecido a 10 de março de 1930. Por baixo desta, estava um selo de lacre preto, com um estranho desenho, algo parecido com um pavão com a cauda aberta.

Conrad fitou-me sem palavras, todas as cores lhe tinham fugido do rosto. Eu tremia de uma raiva provocada pelo medo.

— É uma partida de mau gosto de um louco! — gritei. — O palco foi preparado com tal cuidado, que os atores excederam a si próprios. Quem quer que eles sejam, prepararam tantos efeitos incríveis como se os quisessem anular. É tudo muito estúpido, um drama ilusório muito aborrecido.

Enquanto falava, um suor gelado cobriu-me o corpo e eu tremi como se estivesse com febre. Com um movimento silencioso, Conrad virou-se na direção das escadas, levando consigo uma grande vela que estava em cima da mesa de mogno.

— Estava subentendido, suponho — murmurou, — que eu deveria executar sozinho esta horripilante tarefa, mas não tive coragem para tal, e ainda bem que não tive.

Um terror tranqüilo pairava na casa silenciosa, à medida que subíamos as escadas. Uma brisa suave soprou, vinda de algures e fez com que os pesados cortinados de veludo roçagassem, e eu visualizei dedos furtivos, parecidos com garras, a afastarem as tapeçarias e fixarem em nós uns malignos olhos vermelhos. A certa altura, pensei ter ouvido o indistinto bater de pés monstruosos, algures por cima de nós, mas deveria tratar-se do pulsar desenfreado do meu próprio coração.

As escadas desembocavam num largo corredor sombrio, no qual a nossa vela lançava um brilho tênue que não iluminava nada mais que os nossos rostos, e que fazia com que as sombras parecessem mais escuras. Paramos em frente a uma porta pesada, e eu ouvi Conrad inspirar profundamente, tal como faz um homem que quer acalmar-se tanto física como mentalmente. Fechei involuntariamente as mãos até cravar as unhas nas palmas; então Conrad escancarou a porta.

Um grito agudo lhe escapou dos lábios. A vela caiu dos seus dedos nervosos e apagou-se. A biblioteca de John Grimlan estava inundada de luz, apesar de, quando nós entramos, o resto da casa estar às escuras.

Esta luz provinha de sete velas negras colocadas em intervalos regulares à volta da grande mesa de ébano. Em cima da mesa, por entre as velas… eu tinha tentado manter-me afastado dessa visão. Agora, tendo em conta a misteriosa forma de luz e a visão do que estava em cima da mesa, quase voltei atrás na minha resolução. Em vida, John Grimlan não era bonito, mas morto era hediondo. Sim, era hediondo, apesar de o seu rosto estar misericordiosamente coberto com o mesmo estranho manto de seda, o qual tinha bordado um fantástico padrão que se assemelhava a aves, e que cobria todo o seu corpo, exceto as mãos deformadas que pareciam garras e os pés brancos que estavam descalços.

Um som estrangulado saiu da boca de Conrad:

— Meu Deus! – murmurou — O que é isto? – Eu deitei o corpo dele em cima da mesa e coloquei as velas à sua volta, mas não as acendi nem o tapei com o manto! E, quando o deixei, ele tinha chinelos calçados.

Conrad calou-se subitamente. Nós não estávamos sozinhos na biblioteca do falecido.

Quando entramos não o tínhamos visto, pois essa pessoa estava sentada na grande poltrona no canto mais afastado, tão quieta que parecia fazer parte das sombras projetadas pelas pesadas tapeçarias. Quando os meus olhos pousaram nele, fui abalado por um violento estremecimento e um sentimento semelhante a uma náusea me apertou o estômago. A minha primeira impressão foi vívida: uns olhos amarelos e oblíquos que olhavam para nós sem pestanejarem. Então o homem levantou-se e fez uma grande vênia. Reparamos que era um oriental. Hoje em dia, quando tento evocar na minha mente uma nítida imagem sua, não o consigo fazer. A única coisa da qual me recordo são aqueles olhos penetrantes e o fantástico manto amarelo que usava.

Retribuímos o seu cumprimento mecanicamente e ele falou numa voz baixa e refinada: — Senhores, peço-vos que me perdoem! Eu tomei a liberdade de acender as velas. Vamos então continuar com o assunto referente ao nosso amigo mútuo?

Fez um gesto ligeiro em direção ao corpo imóvel em cima da mesa. Conrad acenou com a cabeça em concordância, obviamente incapaz de falar. O pensamento brotou nas nossas mentes ao mesmo tempo, que esse homem também recebera um envelope… Mas como é que ele tinha chegado tão depressa à casa de Grimlan? John Grimlan morrera há pouco menos de duas horas e, que nós soubéssemos, mais ninguém sabia o que quer que fosse acerca da sua morte. Como é que esse chinês entrara numa casa que estava fechada e trancada?

Tudo aquilo era demasiado grotesco e irreal. Nós não nos apresentamos nem perguntamos o nome àquele estranho. Na verdade ele tomou o controle da situação, e nós estávamos tão enfeitiçados pelo horror e pela ilusão, que nos movíamos entorpecidamente, obedecendo de forma involuntária às suas sugestões, que nos eram dadas num tom de voz baixo e respeitoso.

Dei comigo parado no lado esquerdo da mesa, olhando para Conrad por cima da coisa medonha que se encontrava sobre a mesma. O oriental postara-se à cabeceira da mesa de braços cruzados e cabeça inclinada; nem me pareceu estranho que fosse ele que ali estivesse em vez de Conrad, que deveria ler o que Grimlan tinha escrito. A minha atenção foi atraída para a figura trabalhada no peito do manto do estranho. Uma figura peculiar, em seda preta, que tanto se assemelhava a um pavão, quanto a um morcego ou a um dragão alado. Reparei subitamente que era o mesmo padrão do manto que cobria o corpo.

As portas tinham sido fechadas, e as janelas trancadas. Com a mão trêmula, Conrad abriu o envelope menor e agitou as folhas de pergaminho, que lá estavam dentro, para que se abrissem. Estas folhas pareciam mais antigas que aquelas do envelope maior que continham as instruções de Conrad. Este começou a ler num tom de voz monótono, o qual teve um efeito hipnótico nos ouvintes. Assim, por vezes, as velas turvavam-se sob o meu olhar, e a sala, e os seus ocupantes flutuavam estranhos e monstruosos, indistintos e distorcidos como numa alucinação. A maior parte do que ele leu era algaraviada, não significava nada; no entanto, a sua sonoridade e o seu estilo arcaico me enchiam de um intolerável terror.

«De acordo com o contrato registrado em outro local, eu, John Grimlan, juro, por Honra do Inominável, cumpri-lo com boa fé. Razão pela qual agora escrevo com sangue estas palavras que me foram proferidas nesta terrível e silenciosa câmara nas desaparecidas cidades de Koth, onde nenhum mortal chegou a não ser eu. Estas mesmas palavras agora escritas por mim devem ser lidas sobre o meu cadáver, na altura certa, para que se cumpra a minha parte do acordo, no qual entrei de livre e espontânea vontade e em plena posse das minhas faculdades mentais, aos cinqüenta anos de idade, no ano de 1680 D.C. Aqui começa o encantamento:

» Antes do homem existir, já os Anciãos existiam, apesar de o seu senhor viver nas sombras, as quais podiam fazer um homem perder o rumo caso se atrevesse a entrar nelas».

As palavras fundiam-se numa algaraviada bárbara, à medida que Conrad esbarrava numa linguagem desconhecida, uma linguagem que sugeria vagamente o fenício, mas que estremecia com o toque de uma antiguidade hedionda para além de qualquer recordada língua terrestre. Uma das velas tremeluziu e apagou-se. Fiz um movimento para acendê-la novamente, mas um gesto do silencioso oriental impediu-me. Os seus olhos ardentes estavam fixos nos meus, e dirigiram-se então para a forma imóvel em cima da mesa.

As palavras do manuscrito tinham voltado ao inglês arcaico.

«… E o mortal que alcançou as negras fortalezas de Koth e que fala com o Senhor das Trevas cujo rosto está oculto, por um preço poderá realizar todos os seus desejos, alcançar riquezas e conhecimento incomensuráveis e uma vida para além da expectativa de vida de qualquer mortal, podendo chegar mesmo aos duzentos e cinqüenta anos.»

A voz de Conrad hesitou novamente ao proferir sons guturais desconhecidos. Apagou-se outra vela.

«Não deixem que um mortal se acovarde conforme se aproxima a altura de pagar, e os fogos do Inferno se agarram aos seus órgãos vitais como sinal de mercê. Pois o Príncipe das Trevas toma o que lhe é devido, e ele não deve ser ludibriado. O prometido é devido. Augantha ne shuba…».

Ao ouvir aquele dialeto bárbaro, uma fria mão de terror envolveu a minha garganta. Os meus olhos frenéticos viraram-se para as velas, e não fiquei surpreso ao ver outra tremeluzir. No entanto, não havia vestígios de nenhuma corrente de ar que abanasse as pesadas tapeçarias negras. A voz de Conrad estremeceu; passou a mão pela garganta, calando-se por momentos. Os olhos do oriental nunca se alteravam.

«… Por entre os filhos dos homens, deslizam sombras estranhas para toda a eternidade. Os homens vêem as marcas das garras, mas não os pés que as fizeram. Por cima das almas dos homens, abrem-se grandes asas. Existe apenas um Senhor do Mal, apesar de os homens lhe chamarem Satanás, Belzebu, Satã, Arimã e Malik Tous».

Névoas de horror me rodeavam. Eu estava vagamente consciente da monocórdica voz de Conrad, tanto em Inglês quanto nas outras apavorantes línguas cujo horripilante significado eu mal me atrevia a adivinhar. E, com um medo absoluto apertando-me o coração, vi as velas se apagarem uma a uma. E, com cada tremeluzir, à medida que as crescentes sombras escureciam à nossa volta, o meu horror crescia. Eu não podia falar, não conseguia me mexer; os meus olhos esbugalhados fixavam-se com uma intensidade agonizante na vela que restava. O oriental silencioso, na cabeceira daquela horripilante mesa, fazia parte do meu medo. Ele não tinha se mexido nem falado, mas, por baixo das suas pálpebras semicerradas, seus olhos brilhavam de triunfo diabólico; eu sabia que, por baixo do seu inescrutável exterior, ele rejubilava cruelmente. Mas por que, por quê?

Eu sabia que, no momento em que a última vela se extinguisse e a sala mergulhasse na mais completa escuridão, algo abominável e inominável iria acontecer. Conrad aproximava-se do fim. A sua voz atingia o clímax num crescendo que aumentava:

«Aproxima-se agora o momento da retribuição. Os corvos voam. Os morcegos levantam vôo em direção ao céu. Há caveiras nas constelações. O corpo e a alma foram prometidos e serão entregues. Não novamente ao pó, nem aos elementos dos quais a vida brota».

A vela tremeluziu ligeiramente. Eu tentei gritar, mas a minha boca abriu-se num grito silencioso. Tentei fugir, mas permaneci imóvel, incapaz até mesmo de fechar os olhos.

«O abismo boceja e a dívida é para ser paga. A luz falta, as sombras se avolumam. Não existe o bem, mas sim o mal; não existe luz, mas sim escuridão; não existe esperança, mas sim perdição».

Um gemido profundo ressoou pela sala. Parecia vir da coisa que estava em cima da mesa, tapada pelo manto. Aquele manto agitou-se convulsivamente.

Eu tremi violentamente; ouviu-se um vago roçagar nas sombras que se agigantavam. Seriam as escuras tapeçarias que ondulavam? Parecia um ruído de asas gigantescas.

«Oh, olhos vermelhos nas trevas! O que é prometido, o que é escrito em sangue, é devido! A luz é engolida pela escuridão! Ya… Koth!».

A última vela apagou-se subitamente e um horripilante grito inumano, que não saiu dos meus lábios nem dos de Conrad, ressoou insuportavelmente. O horror cobriu-me como se fosse uma negra onda gelada; no meio da mais completa escuridão, ouvi-me a gritar assustadoramente. Súbito, algo redemoinhou com rapidez através da sala, levantando as tapeçarias e arremessando para o chão cadeiras e mesas. Por momentos, um odor insuportável queimou nossas narinas e um riso baixinho escarnecia de nós na escuridão; o silêncio nos cobriu como uma mortalha.

De alguma forma, Conrad conseguiu encontrar uma vela e acendeu-a. A luz tênue nos mostrou a terrível desordem que havia na sala; mostrou-nos os nossos medonhos rostos e o fato da mesa de negro ébano estar vazia! As portas e as janelas continuavam fechadas, mas o oriental tinha desaparecido, bem como o corpo de John Grimlan.

Gritando como homens amaldiçoados, arrombamos a porta e fugimos desvairadamente pelas escadas abaixo, onde a escuridão parecia agarrar-se a nós com negros dedos pegajosos. Quando aterramos no andar inferior, um brilho lúgubre rompeu a escuridão e o cheiro de madeira queimada nos encheu as narinas.

A porta da rua resistiu momentaneamente às nossas investidas frenéticas; por fim cedeu e nós nos apressamos a sair ao encontro da luz das estrelas. Atrás de nós, as chamas agigantavam-se com um rugido crepitante, enquanto nós corríamos colina abaixo. Conrad olhou por cima do ombro, parou subitamente, rodopiou, levantou os braços como um louco, e gritou:

— Há duzentos e cinqüenta anos, ele vendeu a Malik Tous, que é Satanás, a sua alma e o seu corpo! Esta era a noite da retribuição, e... oh, meu Deus… olhe! Olhe! O Demônio reclamou o que era seu!

Eu olhei, gelado de horror. As chamas tinham envolvido a casa com espantosa rapidez, e agora o grande edifício estava desenhado contra o céu sombrio. Tratava-se de um inferno carmesim. E, por cima daquele holocausto pairava uma gigantesca sombra negra, como se fosse um morcego monstruoso, e nas suas negras garras estava pendurada uma pequena coisa branca, parecida com o corpo de um homem, balouçando ligeiramente. Súbito, enquanto nós gritávamos de horror, ela desapareceu, e o nosso olhar esgazeado contemplou apenas as paredes periclitantes e o telhado flamejante, que desabaram por entre as chamas, com um rugido que fez estremecer a terra.




1) Yog-Sothoth: Personagem fictícia, mencionada pela primeira vez na novela de H. P. Lovecraft, The Case of Charles Dexter Word, publicada pela primeira vez em 1941 (Nota da Tradutora).

2) Yuggoth: Planeta fictício, mencionado por H. P. Lovecraft, e que consistiria no então recém-descoberto Plutão (N. da T.).

3) Yazidis: Seguidores de uma religião do Oriente Médio, na qual os fiéis acreditam terem sido criados à parte do resto do gênero humano e se segregam do resto da sociedade (idem).

4) Alamut: Monte cuja localização exata é imprecisa, pois somente os que possuem os mapas corretos são capazes de encontrá-lo (ibidem).




Tradução: Susana Clara.

Revisão: Fernando Neeser de Aragão.

Fonte: Revista Bang #6, páginas 55 a 63.

Agradecimento especial: Ao howardmaníaco Rogério Silvério e ao amigo Alessandro Nunes.
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