A Lua das Caveiras

(por Robert E. Howard)


Originalmente publicado em Weird Tales, junho e julho de 1930.


1) Um Homem Vem Procurando

Uma grande sombra negra jazia pela terra, dividindo a chama vermelha do rubro pôr-do-sol. Para o homem que subia penosamente a trilha na selva, ela avultava como um símbolo de morte e horror, uma ameaça meditativa e terrível, como a sombra de um assassino furtivo sobre uma parede iluminada a vela.

Mas, era apenas a sombra do grande penhasco que se erguia diante dele; o primeiro posto avançado dos sombrios contrafortes, os quais eram sua meta. Ele parou por um momento ao pé do penhasco, olhando para o alto, onde ele se erguia sombriamente destacado contra o sol poente. Ele era capaz de jurar ter percebido a insinuação de um movimento no topo, enquanto olhava com a mão lhe protegendo os olhos. Mas o clarão moribundo o ofuscou, e ele não pôde ter certeza. Era um homem que corria para a cobertura? Um homem, ou...?

Ele encolheu os ombros e se pôs a examinar a trilha áspera, que guiava para o alto e sobre a beirada do penhasco. À primeira vista, parecia que apenas um cabrito montês seria capaz de subi-la, mas um exame mais de perto mostrava vários pontos de apoio para os dedos, perfurados na rocha sólida. Seria um trabalho testar suas forças até o extremo, mas ele não havia percorrido 1600 km para agora dar as costas.

Ele deixou cair a grande bolsa que usava sobre o ombro, e deitou o tosco mosquete, ficando apenas com sua longa espada estreita de dois gumes, a adaga e uma de suas pistolas, as quais prendera atrás de si, e, sem olhar para trás em direção à trilha na qual viera, ele começou a longa subida.

Era um homem alto, de braços longos e músculos de aço, embora várias vezes ele fosse forçado a parar em sua escalada e descansar por um momento, agarrando-se feito uma formiga à superfície íngreme do despenhadeiro. A noite caiu rapidamente, e o penhasco acima dele era uma mancha ensombrecida, na qual era forçado a cravar os dedos cegamente, em busca de orifícios que lhe servissem como uma precária escada de mão.

Abaixo dele, irrompiam os ruídos noturnos da selva tropical; mas lhe parecia que mesmo estes sons eram abrandados e calados, como se as grandes colinas negras, que avultavam no alto, lançassem um feitiço de silêncio e medo, até mesmo sobre as criaturas da Selva.

Ele continuou se esforçando para o alto, e agora, para dificultar ainda mais seu caminho, o despenhadeiro tinha uma saliência próxima ao cume, e o esforço de nervos e músculos se tornou angustiante. Mais de uma vez, ele escorregou de um orifício, e escapou por um fio. Mas cada fibra de seu esguio corpo firme tinha perfeita coordenação, e seus dedos eram como garras de aço com o aperto de um torno. Seu avanço ficou mais lento, mas ele prosseguiu, até que finalmente viu a beirada rochosa dividindo as estrelas, a apenas 6 metros acima dele.

E, enquanto ele olhava, um vago vulto ficou visível, desabou na beirada e caiu em sua direção, com um grande movimento de ar ao redor. Com a pele se arrepiando, ele se comprimiu contra a superfície do penhasco e sentiu um baque pesado contra seu ombro – apenas um baque de raspão, mas mesmo assim, ele quase lhe tirou o equilíbrio e, enquanto lutava desesperadamente para se endireitar, ouviu um estrondo ecoar por entre as rochas lá embaixo. Com suor frio lhe escorrendo da testa, ele olhou para cima. Quem – ou o quê – havia empurrado aquele matacão por sobre a beirada do despenhadeiro? Ele era bravo, como os ossos em muitos campos de batalha poderiam declarar, mas o pensamento de morrer como um carneiro – indefeso e sem chance de resistir – lhe gelava o sangue.

Então, uma onda de fúria lhe suplantou o medo e ele renovou sua escalada com velocidade temerária. O esperado segundo matacão não veio, no entanto, e ele não viu nenhuma coisa viva enquanto subia pela beirada e se erguia de um pulo, com a espada recém-desembainhada brilhando.

Ele estava numa espécie de planalto, que desembocava numa região de colinas irregulares, uns 800 metros a oeste. O penhasco, o qual ele acabara de subir, se sobressaía do restante das elevações como um taciturno promontório, avultando acima do mar de folhagem ondulante lá embaixo, agora escuro e misterioso na noite tropical.

O silencio reinava em absoluta supremacia. Nenhuma brisa agitava as profundezas sombrias lá embaixo, e nenhum passo sussurrava entre as moitas raquíticas que encobriam a chapada; mas aquele matacão, que quase lançara o escalador para a morte, não havia caído por acaso. Quais criaturas se moviam por entre estas colinas sombrias? A escuridão tropical caía sobre o aventureiro solitário como um pesado véu, através do qual as estradas amarelas piscavam malignamente. Os vapores da vegetação podre da selva se erguiam até ele, tão tangíveis quanto uma névoa espessa; e, fazendo uma careta de nojo, ele se afastou do despenhadeiro e caminhou corajosamente pelo planalto, com a espada numa mão e a pistola na outra.

Havia uma sensação desconfortável de estar sendo observado no próprio ar. O silêncio permanecia inquebrado, exceto pelo suave zunir que marcava o caminhar felino do forasteiro, através da alta grama no terreno elevado; mas o homem sentia que coisas vivas deslizavam à sua frente e atrás, e de cada lado. Se algum homem ou animal o rasteava, ele não sabia, nem se importava muito, pois ele estava preparado para enfrentar qualquer homem ou demônio que lhe barrasse o caminho. Ocasionalmente, ele parava e olhava desafiadoramente ao redor, mas nada via, exceto os arbustos que se agachavam como baixos fantasmas escuros ao redor de seu caminho, se fundindo e ficando indistintos na espessa e quente escuridão, através da qual as próprias estrelas pareciam se esforçar, vermelhas.

Finalmente, ele chegou ao lugar onde o planalto irrompia em inclinações mais altas, e lá viu um amontoado de árvores, delineadas solidamente nas sombras menores. Aproximou-se cautelosamente, e logo parou ao ver, ficando um pouco acostumado à escuridão e distinguiu uma forma vaga por entre os troncos, a qual não era parte deles. Ele hesitou. A figura não avançava nem fugia. Uma forma indistinta de ameaça silenciosa, ela se ocultava como que em espera. Um horror pensativo pairava sobre aquele imóvel aglomerado de árvores.

O forasteiro avançou cautelosamente, com a lâmina estendida. Mais perto, forçando os olhos em busca de alguma insinuação de movimento ameaçador, ele julgou que a figura fosse humana, mas estava confuso com sua falta de movimento. Então o motivo ficou evidente – era o corpo de um homem negro que se encontrava entre as árvores, mantido em pé por lanças atravessadas em seu corpo e pregando-o aos troncos das árvores. Um dos braços estava estendido em frente a ele, preso ao longo de um grande galho por uma adaga enfiada em seu pulso, o dedo indicador estirado como se o corpo apontasse rigidamente – de volta ao caminho pelo qual o estrangeiro havia chegado. O significado era óbvio: aquele mudo e sombrio poste indicador não tinha outro... a morte está depois dali. O homem que estava olhando para aquele aviso raramente ria, mas agora ele se permitia o luxo de um sorriso sardônico. Mil e seiscentos quilômetros de terra e mar – viagem pelo oceano e pela selva –, e agora esperavam fazê-lo voltar atrás com tal pantomima – quem quer que fossem. Ele resistiu à tentação de saudar o corpo, como uma ação desejada de decoro, e prosseguiu ousadamente pelo arvoredo, meio na expectativa de um ataque por trás ou uma armadilha. Nada do tipo aconteceu, entretanto; e, saindo das árvores, ele se encontrou ao pé de uma inclinação áspera, a primeira de uma série de declives. Ele caminhou imperturbavelmente para cima na noite, e nem sequer parou para refletir o quão incomuns suas ações deveriam parecer para um homem sensível. O homem comum teria acampado ao pé do penhasco e esperado pelo amanhecer, antes mesmo de tentar escalar os penhascos. Mas este não era um homem comum. Uma vez com um objetivo em vista, ele seguia a linha mais reta até o mesmo, sem pensar em obstáculos, fosse dia ou noite. O que era para ser feito, tinha que ser feito. Ele havia alcançado os postos avançados do reino do medo e da escuridão, e invadir seus abrigos mais internos à noite parecia seguir o objetivo de curso.

Enquanto ele subia as inclinações salpicadas por matacões, a lua se ergueu, emprestando seu ar de ilusão; e, à sua luz, as colinas irregulares à frente avultavam como as espirais negras de castelos de feiticeiros. Ele manteve os olhos fixos na vaga trilha que estava seguindo, pois ele não sabia quando outro matacão poderia ser arremessado pelas inclinações. Esperava algum tipo de ataque e, naturalmente, foi o inesperado que realmente aconteceu.

Súbito, um homem saiu de trás de uma grande rocha; um gigante de ébano sob o pálido luar, com uma longa lâmina de lança brilhando como prata em sua mão, seu cocar de plumas de avestruz flutuando acima dele como uma nuvem branca. Ele ergueu a lança em enfadonha saudação, e falou num dialeto das tribos do rio:

- Esta não é terra do homem branco. Quem é meu irmão branco em seu próprio curral, e por que ele adentrou a Terra das Caveiras?

- Meu nome é Solomon Kane. – o branco respondeu na mesma língua – Procuro a rainha vampira de Negari.

- Poucos procuram. Pouquíssimos encontram. Ninguém retorna. – o outro respondeu enigmaticamente.

- Vai me levar até ela?

- Você carrega uma longa adaga em sua mão direita. Não há leões aqui.

- Uma serpente desalojou um matacão. Achei que eu fosse encontrar cobras nas moitas.

O gigante reconheceu esta troca de sutilezas com um sorriso sombrio, e caiu em breve silêncio.

- Sua vida – disse, logo depois, o negro – está na minha mão.

Kane sorriu levemente:

- Eu carrego as vidas de muitos guerreiros em minha mão.

O olhar do negro percorreu, incerto, o comprimento tremeluzente da espada do inglês. Então, ele encolheu os ombros poderosos e deixou a ponta de sua lança afundar no chão.

- Você não carrega presentes – ele disse –; mas siga-me, e eu lhe guiarei à Terrível, à Senhora do Destino, à Mulher Vermelha, Nakari, que governa a terra de Negari.

Ele deu um passo para o lado e gesticulou para que Kane andasse à sua frente, mas o inglês, com a estocada de uma lança no pensamento, sacudiu a cabeça:

- Quem sou eu para andar à frente do meu irmão? Somos dois chefes... vamos andar lado a lado.

Em seu coração, Kane detestou ser forçado a usar tal desagradável diplomacia com um guerreiro selvagem, mas não demonstrou. O gigante se curvou com certa majestade bárbara, e juntos eles subiram a trilha da colina, sem se falarem.

Kane estava consciente de que havia homens saindo de esconderijos e ficando atrás deles; e um olhar furtivo sobre o ombro mostrou a ele uns 40 guerreiros, caminhando atrás deles em duas linhas em forma de cunha. O luar cintilava sobre corpos lustrosos, cocares ondulantes, e longas e cruéis lâminas de lanças.

- Meus irmãos são como leopardos – disse cortesmente Kane –; eles se deitam nas moitas baixas e nenhum olho os vê; eles andam furtivamente através da grama alta, e nenhum homem lhes ouve a chegada.

O chefe negro agradeceu o elogio com uma inclinação cortês de sua cabeça leonina, a qual fez as plumas sussurrarem.

- O leopardo da montanha é nosso irmão, ó chefe. Nossos pés são como a fumaça ascendente, mas nossos braços são como aço. Quando golpeiam, o sangue pinga vermelho e homens morrem.

Kane sentiu uma corrente oculta de ameaça no tom. Não havia verdadeira insinuação de ameaça onde ele baseava suas suspeitas, mas o sinistro tom menor estava lá. Ele não falou mais nada por um tempo, e o estranho bando caminhou silenciosamente para cima sob o luar, como uma cavalgada de espectros.

A trilha ficou mais íngreme e rochosa, serpenteando para os lados entre penhascos e gigantescos matacões. Súbito, uma enorme fenda apareceu diante deles, atravessada por uma ponte natural de pedra, ao pé da qual o líder parou.

Kane olhou curiosamente para o abismo. Tinha uns 12 metros de largura e, olhando para baixo, seu olhar foi engolido pela escuridão impenetrável, a muitas dezenas de metros, ele sabia. Do outro lado, se erguiam penhascos escuros e proibidos.

- Aqui – disse o chefe – começam as verdadeiras fronteiras do reino de Nakari.

Kane percebia que os guerreiros se aproximavam casualmente dele. Seus dedos se firmaram ao redor do cabo da espada, a qual ele não havia embainhado. O ar estava subitamente sobrecarregado de tensão.

- Aqui também – o chefe disse brevemente –, aqueles que não trazem presentes para Nakari... morrem!

A última palavra foi um guincho, como se o pensamento houvesse transformado quem falou num maníaco; e, quando ele gritou, o grande braço foi para trás e em seguida para a frente, com uma ondulação de músculos poderosos, e a longa lança saltou em direção ao peito de Kane.

Somente um lutador nato conseguiria evitar a estocada. A ação instintiva de Kane lhe salvou a vida... a grande lâmina lhe roçou as costelas, quando ele se inclinou para o lado e devolveu o golpe com uma estocada lampejante, a qual matou um guerreiro que se esbarrou entre ele e o chefe naquele instante.

Lanças brilhavam ao luar, e Kane, desviando uma e se curvando sob a estocada de outra, pulou para fora sobre a ponte estreita, onde apenas um de cada vez poderia atacá-lo.

Ninguém se interessou em ser o primeiro. Permaneceram sobre a beirada e estocaram em sua direção, avançando como um só quando ele recuava e recuando quando ele os pressionava. Suas lanças eram mais longas que a espada dele, mas ele compensava bastante a diferença e a grande inferioridade, com sua habilidade brilhante e a fria ferocidade de seu ataque.

Eles oscilaram para trás e para a frente; e então, subitamente, um gigante saltou dentre seus companheiros e atacou sobre a ponte como um búfalo selvagem, os ombros encurvados, a lança baixa e os olhos lampejando com um olhar que não era totalmente são. Kane pulou para trás, diante do furioso ataque, e saltou novamente para trás, esforçando-se para evitar aquela lança cortante e achar uma brecha para enfiar a espada. Deu um pulo para o lado e se viu cambaleando na beirada da ponte, com a eternidade abrindo a boca sob ele. Os guerreiros gritaram em selvagem exultação, quando ele oscilou e lutou pelo seu equilíbrio, e o gigante na ponte rugiu e pulou em direção ao seu inimigo cambaleante.

Kane aparou o golpe com toda sua força – uma proeza que poucos espadachins conseguiriam realizar fora do equilíbrio, como ele estava –, viu a cruel lâmina da lança lampejar por sua bochecha... e se sentiu caindo para trás, no abismo. Com um esforço desesperado, ele agarrou o cabo da lança, se endireitou e atravessou o corpo do lanceiro. A grande caverna vermelha, que era a boca do gigante, esguichou sangue e, com um esforço moribundo, ele se lançou cegamente contra seu inimigo. Kane, com os calcanhares sobre a beira da ponte, foi incapaz de evitá-lo, e os dois caíram juntos, para desaparecerem silenciosamente dentro das profundezas abaixo.

Tudo acontecera tão rapidamente, que os guerreiros ficaram aturdidos. O rugido de triunfo do gigante mal havia morrido em seus lábios, antes que os dois caíssem na escuridão. Agora o restante dos nativos subia até a ponte para olharem curiosos para baixo; mas nenhum som se erguia do vazio escuro.


2) O Povo da Morte que Espreita

Quando Kane caiu, seguiu seu instinto de luta, se contorcendo no meio da queda, para que, quando se espatifasse – fosse a três ou a 300 metros abaixo –, aterrissasse sobre o homem que caiu com ele.

O final veio subitamente – bem mais repentino do que o inglês havia pensado. Ele ficou meio atordoado por um instante, e então, olhando para cima, viu vagamente a ponte estreita enfaixando o céu acima de si, e as figuras dos guerreiros, delineadas ao luar e grotescamente escorçadas ao se curvarem sobre a beirada. Ficou imóvel, sabendo que os raios da lua não penetravam as profundezas nas quais estava escondido, e que ele estava invisível para aqueles observadores. Então, quando eles sumiram de vista, ele começou a examinar sua situação atual. Seu oponente estava morto e, se não fosse o fato de seu cadáver lhe amortecer a queda, Kane também estaria morto, pois haviam caído de uma altura considerável. Apesar disso, o inglês estava rígido e com contusões.

Ele puxou sua espada do corpo do nativo, grato por ela não ter se quebrado, e começou a tatear no escuro. Sua mão encontrou a beirada do que parecia ser um penhasco. Ele pensara que estava no fundo do abismo, e que a impressão de uma grande profundidade fosse uma ilusão, mas ele agora percebeu que havia caído numa saliência que era parte do caminho para baixo. Ele deixou cair uma pequena pedra sobre o lado e, após o que pareceu ser um tempo muito longo, ouviu o som distante de sua queda lá embaixo.

Meio sem saber o que fazer, ele puxou pederneira e aço de seu cinto e os bateu em certo estojo, protegendo cautelosamente a luz com as mãos. A luz fraca mostrou uma vasta beirada se sobressaindo do lado do penhasco, o lado próximo às colinas, o qual ele tentara cruzar. Ele caíra próximo à beirada, e foi graças à extremidade mais estreita que ele escapara de escorregar para fora dela, sem saber onde se encontrava.

Agachando-se ali, com os olhos tentando se acostumar à escuridão abismal, ele reconheceu o que parecia ser uma sombra mais escura entre as sombras da parede. Num exame mais atento, ele percebeu ser uma abertura, grande o bastante para permitir que seu corpo ficasse ereto. Uma caverna, ele percebeu, e embora seu aspecto fosse escuro e extremamente desagradável, ele entrou, tateando seu caminho quando o estojo se apagou.

Para onde levava, ele naturalmente não tinha idéia, mas qualquer ação era preferível a ficar parado, até que os abutres das montanhas roessem seus ossos. Por um longo caminho, o chão da caverna se inclinava para cima – rocha sólida sob seus pés –, e Kane subiu com certa dificuldade o caminho mais inclinado, escorregando de vez em quando. A caverna parecia grande, pois em nenhum momento após entrar, ele conseguira tocar o teto, nem pôde, com a mão numa parede, alcançar a outra.

Finalmente o chão ficou plano, e Kane percebeu que a caverna era muito maior ali. O ar parecia melhor, embora a escuridão fosse impenetrável no momento. De repente, ele parou. De algum lugar à sua frente, veio um estranho e indefinível farfalhar. Sem aviso, alguma coisa golpeou seu rosto e açoitou selvagemente. Tudo ao seu redor fazia soar os lúgubres murmúrios de muitas asas pequenas, e repentinamente Kane sorriu de forma falsa, divertida, aliviada e humilhada. Morcegos, é claro. A caverna estava apinhada deles. Mesmo assim, foi uma experiência estremecedora e, enquanto ele prosseguia e as asas farfalhavam pela vastidão desolada da grande caverna, a mente de Kane encontrou lugar para um bizarro pensamento: estaria ele se aventurando dentro do Inferno, de alguma estranha maneira, e eram aquilo morcegos de verdade, ou almas perdidas voando através da noite eterna? Então, pensou Solomon Kane, eu logo me defrontarei com o próprio Satã. E, enquanto pensava isso, suas narinas foram atacadas por um horrendo cheiro, fétido e repelente. O cheiro aumentou, enquanto ele prosseguia devagar, e Kane praguejou em voz baixa, embora não fosse um homem profano. Ele percebeu que o odor era sinal de alguma ameaça oculta, alguma malevolência invisível, inumana e mortífera, e sua mente sombria tirou conclusões sobrenaturais. Contudo, ele tinha perfeita confiança em sua habilidade para enfrentar qualquer demônio, blindado como ele era na inabalável confiança em sua fé e no conhecimento da retidão de sua causa. O que se seguiu aconteceu repentinamente. Ele tateava ao longo do caminho, quando, diante dele, dois estreitos olhos amarelos pularam para o alto na escuridão – olhos frios e inexpressivos, muito horrivelmente próximos um do outro para serem humanos, e muito altos para qualquer animal de quatro patas. Que horror se erguia daquele modo, à frente?

Este é Satã, pensou Kane, enquanto aqueles olhos oscilavam sobre ele, e no instante seguinte ele estava lutando pela própria vida contra a escuridão, que parecia ter tomado uma forma tangível, e se lançado ao redor de seu corpo e membros em grandes espirais lodosas. Aquelas espirais se enroscavam em seu braço da espada, imobilizando-o. Com a outra mão, ele tateou em busca da adaga ou da pistola, com sua pele arrepiada, enquanto seus dedos escorregavam das escamas lisas, ao mesmo tempo em que o assobio do monstro preenchia a caverna com terror.

Lá, na negra escuridão que acompanhara o bater das asas dos morcegos, Kane lutou como um rato nas presas de uma serpente, e ele pôde sentir suas costelas cedendo e sua respiração se esvaindo, antes que sua furiosa mão esquerda agarrasse o cabo de sua adaga.

Então, com uma vulcânica contorção e um puxão violento dos músculos de aço de seu corpo, ele soltou parcialmente o braço esquerdo, e mergulhou várias vezes a lâmina afiada, até o cabo, no sinuoso terror contorcido que o envolvera, até finalmente sentir as trêmulas espirais afrouxarem e escorregarem de seus membros, para caírem a seus pés como enormes cabos.

A poderosa serpente se sacudiu selvagemente em seus estertores de morte, e Kane, evitando suas pancadas capazes de quebrar ossos, cambaleou na escuridão, esforçando-se para respirar. Se seu antagonista não era o próprio Satã, era seu mais próximo satélite terrestre, pensou Solomon, esperando sinceramente não ter de enfrentar outro naquela escuridão.

Ele se sentia como se houvesse caminhado pelo escuro durante eras, e começou a se questionar se havia algum final na caverna, quando um vislumbre de luz perfurou as trevas. Ele imaginou ser uma entrada externa para um grande caminho lá fora, e começou a avançar rapidamente; mas, para seu espanto, ele se deparou bruscamente contra uma parede lisa após dar uns poucos passos.

Então, ele percebeu que a luz vinha de uma estreita fenda na parede, e notou que esta parede encontrada era de um material diferente daquele do resto da caverna, consistindo aparentemente de blocos regulares de pedra, ligados por algum tipo de argamassa – indubitavelmente, uma parede feita pela mão do homem. A luz fluía entre duas daquelas pedras, onde a argamassa se fizera em migalhas. Kane correu as mãos sobre a superfície com um interesse maior que suas necessidades presentes. O trabalho parecia muito antigo e bastante superior ao que se poderia esperar de uma tribo de selvagens ignorantes. Ele sentiu a emoção do explorador e descobridor. Certamente, nenhum homem branco tinha visto este lugar e vivido pra contá-lo, pois quando desembarcara na úmida Costa Oeste alguns meses antes, se preparando para mergulhar no continente, ele não ouvira alusão alguma sobre um país como aquele. Os poucos brancos que conheciam qualquer coisa em toda África, com os quais ele conversara, nunca haviam sequer mencionado a “Terra das Caveiras”, ou a demônia que a governava.

Kane pressionou cautelosamente o muro. A estrutura parecia enfraquecida pelo tempo – com um vigoroso empurrão, ela cederia perceptivelmente. Ele se arremessou contra a mesma, usando todo o seu peso, e uma parte inteira da parede cedeu com um estrondo, precipitando-o para dentro de um corredor mal-iluminado, entre uma pilha de pedras, poeira e argamassa.

Ele pulou para cima e olhou ao redor, esperando que o barulho trouxesse uma horda de lanceiros selvagens. Reinava o mais completo silêncio. O corredor onde ele estava agora mais parecia uma longa caverna estreita, exceto por ter sido feito pela mão do homem. Ela tinha vários pés de largura, e o teto estava a muitos pés sobre sua cabeça. A poeira no chão chegava à altura do tornozelo, como se nenhum pé houvesse pisado lá por incontáveis séculos; e a luz fraca, Kane percebeu, era filtrada de alguma forma pelo teto, pois em nenhum lugar ele viu qualquer porta ou janela. Pelo menos, ele percebeu que a origem era o próprio teto, que tinha uma peculiar qualidade fosforescente.

Ele desceu o corredor, se sentindo desconfortável como um fantasma cinza, caminhando ao longo das paredes cinzentas da morte e da decadência. A evidente antiguidade do ambiente o deprimia, fazendo-o sentir vagamente a efêmera a fútil existência da humanidade. Ele acreditava estar sobre a terra, uma vez que entrava algum tipo de luz, mas onde, ele não podia sequer oferecer uma conjectura. Esta era uma terra de bruxaria – uma terra de horror e medonhos mistérios, diziam a selva e os nativos do rio; e ele ouvira insinuações sussurradas a respeito de seus terrores, desde que deixou a Costa dos Escravos e se aventurou sozinho no interior. De vez em quando, ele ouvia um murmúrio baixo e indistinto que parecia vir de uma das paredes, e ele finalmente chegou à conclusão de que cambaleava e tropeçava numa passagem secreta em algum castelo ou casa. Os nativos que ousavam lhe falar sobre Negari, sussurravam sobre uma cidade juju feita de pedra, situada bem no meio dos sombrios penhascos negros das colinas mágicas.

Então, pensou Kane, talvez eu tenha me enganado sobre o que estava realmente procurando, e eu esteja no meio daquela cidade de terror. Ele parou e, escolhendo um lugar ao acaso, começou a soltar a argamassa com sua adaga. Enquanto trabalhava, ouviu novamente o murmúrio baixo, agora crescendo em volume enquanto ele perfurava a parede, e dali a pouco, abriu um furo; e, olhando pela abertura, ele viu uma cena estranha e fantástica.

Ele estava olhando para uma grande câmara, cujas paredes e piso eram de pedra, e cujo enorme teto era sustentado por gigantescas colunas de pedra, estranhamente entalhadas. Fileiras de emplumados guerreiros negros guarneciam as paredes, e uma dupla fileira deles permanecia como estátuas diante de um trono, situado entre dois dragões de pedra, os quais eram maiores que elefantes. Ele reconheceu aqueles homens, por seu porte e aparência geral, como sendo homens tribais dos guerreiros que enfrentara no precipício. Mas seu olhar foi irresistivelmente atraído para o grande trono, fantasticamente ornamentado. Lá, sobrepujada pelo maciço esplendor a seu redor, uma mulher se reclinava. Era uma mulher negra, jovem e com a beleza de uma tigresa. Estava nua, exceto por um elmo emplumado, braceletes, tornozeleiras e uma cinta com coloridas penas de avestruz; e ela se esparramava sobre as almofadas de seda, com seus membros lançados ao redor delas em voluptuoso abandono. Mesmo àquela distância, Kane pôde perceber que os traços dela eram régios, embora bárbaros; altivos e autoritários, embora sensuais, e com um toque de impiedosa crueldade no franzir de seus lábios cheios e vermelhos. Kane sentiu o pulso acelerar. Esta não podia ser outra, senão aquela cujos crimes se tornaram quase míticos: Nakari de Negari, rainha demoníaca de uma cidade diabólica, cuja ânsia monstruosa por sangue punha meio continente para tremer. Ao menos, ela parecia suficientemente humana. As narrativas das apavoradas tribos fluviais emprestavam a ela um aspecto sobrenatural. Kane quase esperava ver um repugnante monstro semi-humano de alguma demoníaca era passada.

O inglês olhava fixamente, fascinado apesar de repugnado. Nem mesmo nas cortes da Europa, ele tinha visto tamanha grandeza. A câmara e todos os seus equipamentos, das serpentes gêmeas esculpidas ao redor das bases dos pilares aos dragões mal-divisados das sombras do teto, estavam moldados numa escala gigantesca. O esplendor era pavoroso – elefantino –, inumanamente gigantesco e quase paralisante para a mente que tentasse medir e compreender a magnitude daquilo. Para Kane, parecia que aquilo havia sido mais trabalho de deuses que de homens, pois esta única câmara sobrepujaria grandemente a maioria dos castelos que ele conhecera na Europa.

Os guerreiros que apinhavam aquela enorme sala pareciam grotescamente em desacordo. Eles não eram os arquitetos daquele lugar antigo. Enquanto Kane percebia isto, a importância sinistra da Rainha Nakari diminuía. Esparramada naquele trono majestoso em meio à terrível gloria de outra era, ela parecia assumir suas verdadeiras proporções: uma criança mimada e petulante, empenhada num jogo de faz-de-conta, e usando para seu divertimento um brinquedo descartado pelos seus antecessores. E, ao mesmo tempo, um pensamento entrou pela mente de Kane: quem eram estes antecessores? Mesmo assim, a criança poderia se tornar mortífera, como o inglês logo viu. Um guerreiro alto e imponente saiu das fileiras em frente ao trono, e após ter se prostrado quatro vezes diante deste, permaneceu de joelhos, evidentemente esperando permissão para falar. O ar de preguiçosa indolência da rainha caiu dela, e ela se endireitou com um movimento rápido e flexível, o qual lembrou a Kane um leopardo se erguendo. Ela falou, e as palavras chegaram fracas até ele, enquanto ele se esforçava para ouvir. Ela conversava numa linguagem muito similar à das tribos do rio.

- Fale!

- Grande e Terrível – disse o guerreiro ajoelhado, e Kane o reconheceu como o chefe que primeiro se dirigira a ele no planalto... o chefe dos guardas nos penhascos –, não deixe o fogo de sua fúria consumir seu escravo.

Os olhos da jovem mulher se estreitaram maldosamente:

- Você sabe por que foi convocado, filho de um abutre?

- Fogo de Beleza, o forasteiro chamado Kane não trouxe nenhum presente.

- Nenhum presente? – ela cuspiu as palavras – O que eu tenho a ver com presentes?

O chefe hesitou, agora sabendo que havia alguma importância especial neste estrangeiro.

- Gazela de Negari, ele veio subindo os penhascos à noite, como um assassino, com uma adaga do tamanho do braço de um homem na mão. O bloco que lançamos não o atingiu, o encontramos sobre o planalto e o levamos à Ponte-Através-do-Céu, onde, como é o costume, pensamos em matá-lo; pois era sua informação, de que estava cansada de homens que viessem cortejá-la.

- Idiota! – ela rosnou – Idiota!

- Seu escravo não sabia, Rainha de Beleza. O estranho lutava como um leopardo da montanha. Ele matou dois homens, caiu no abismo com o último, e assim morreu, Estrela de Negari.

- Sim. – o tom de voz da rainha era venenoso – O primeiro grande homem que já chegou até Negari! Aquele que poderia ter... levante-se, idiota!

O homem ficou de pé:

- Poderosa Leoa, ele não poderia estar procurando...

A frase nunca foi completada. Enquanto ele se erguia, Nakari fez um gesto rápido com a mão. Dois guerreiros saltaram das fileiras silenciosas, e duas lanças se cruzaram dentro do corpo do chefe tribal, antes que ele pudesse se virar. Um grito gorgolejante lhe saiu dos lábios, o sangue esguichou alto no ar e o corpo caiu estirado no chão do grande trono.

As fileiras não recuaram, mas Kane percebeu o brilho enviesado de olhos estranhamente vermelhos, e o umedecer involuntário de lábios grossos. Nakari estava meio erguida quando as lanças se moveram, e agora ela se deitava de volta, com uma expressão de cruel satisfação em seu belo rosto e um estranho brilho meditativo em seus olhos cintilantes.

Um gesticular indiferente de sua mão, e o cadáver foi arrastado dali pelos calcanhares, os braços mortos se arrastando flácidos na larga marcha de sangue, deixada pela passagem do corpo. Kane pôde ver outras manchas largas cruzadas sobre o chão de pedra, algumas quase indistintas, outras menos fracas. Quantas cenas selvagens de sangue e cruel frenesi, os grandes dragões de pedra do trono tinham visto com seus olhos esculpidos?

Agora ele não duvidava das histórias contadas a ele pelas tribos do rio. Aquele povo havia sido criado em rapina e horror. Sua bravura lhes havia arrebentado os cérebros. Eles viviam, como uma terrível fera, só para destruir. Havia estranhos brilhos por trás de seus olhos, que às vezes iluminavam aqueles mesmos olhos com fogos ascendentes e sombras do Inferno. O que as tribos do rio haviam dito sobre aquele povo montanhês, que os havia devastado por incontáveis séculos?

“Que eram partidários da morte, a qual espreitava entre eles, e à qual cultuavam”. Mas o pensamento ainda pairava na mente de Kane, enquanto ele olhava: quem construiu este lugar, e por que este povo estava evidentemente no poder? Guerreiros como eles eram, jamais conseguiriam alcançar a cultura evidenciada por aqueles entalhes. Mas as tribos do rio não falaram de outros homens, senão daqueles aos quais ele observava. O inglês se livrou, com esforço, do fascínio da cena bárbara. Ele não tinha tempo a perder; enquanto o tivessem como morto, mais chance ele tinha de burlar possíveis guardas e procurar o que veio achar. Ele deu a volta e caminhou pelo corredor fosco. Nenhum plano de ação lhe apareceu na mente, e uma direção era tão boa quanto outra. A passagem não seguia em linha reta; ela fazia curvas e serpenteava, seguindo a linha das paredes; Kane supôs, e achou tempo para se perguntar sobre a evidente e enorme grossura daquelas paredes. Esperava encontrar, a qualquer momento, algum guarda ou escravo; mas, à medida que os corredores continuavam a se estenderem vazios diante dele, com os chãos poeirentos sem nenhuma pegada, concluiu que, ou as passagens eram desconhecidas ao povo de Negari, ou, por algum motivo, nunca foram usadas.

Ele procurou atentamente por portas secretas, e finalmente achou uma, embutida no lado mais interno, com uma tranca enferrujada encaixada num sulco na parede. Ele a manipulou cuidadosamente e, dentro em pouco, com um rangido que parecia terrivelmente alto no silêncio, a porta se abriu para dentro. Olhando ao redor, ele não viu ninguém e, atravessando cautelosamente a abertura, ele puxou a porta atrás de si, notando que esta fazia parte de uma fantástica gravura pintada na parede. Ele fez um risco com sua adaga, no ponto onde acreditava que a porta escondida dava para o lado de fora, pois não sabia quando poderia ter de usar a passagem novamente.

Ele estava num grande salão, através do qual corria um labirinto de pilares gigantes, muito semelhantes àqueles da câmara do trono. Por entre eles, ele se sentia como uma criança numa grande floresta, mas elas lhe davam uma leve sensação de segurança, vez que acreditava que, deslizando entre elas como um fantasma através de uma selva, ele poderia iludir os guerreiros apesar da astúcia destes.

Ele se moveu, escolhendo sua direção ao acaso e andando cuidadosamente. Por um momento, ele ouviu um murmúrio de vozes e, saltando para a base de uma coluna, agarrou-se ali enquanto duas mulheres passavam logo abaixo dele. Mas, além delas, ele não encontrou ninguém. Era uma sensação sobrenatural, passar através deste vasto salão que parecia desprovido de vida humana – mas em outro lugar, conhecido por Kane, poderia haver multidões escondidas da visão pelos pilares.

Finalmente, após o que parecia uma eternidade seguindo estes labirintos monstruosos, ele se deparou com uma enorme parede, que parecia ser um lado do salão ou uma parede divisória, e, continuando ao longo desta, viu à sua frente uma entrada, diante da qual dois lanceiros se postavam como estátuas negras.

Kane, espiando ao redor do lado da base de uma coluna, percebeu duas janelas no alto da parede, uma de cada lado, e ao notar os entalhes enfeitados que cobriam as paredes, se determinou a fazer um plano desesperado.

Ele achou obrigatório ver o que ficava dentro daquele compartimento. O fato de ser guardado sugeria que a sala atrás da porta era uma câmara de tesouro ou um calabouço, e se sentiu convicto de que sua tentativa irrevogável provaria que ali era um calabouço.

Kane recuou até um ponto fora da vista dos guardas, e começou a escalar a parede, usando os entalhes profundos como apoios para as mãos e os pés. Verificou-se ser bem mais fácil do que ele havia esperado, e tendo galgado até um ponto do mesmo nível que as janelas, ele rastejou cautelosamente ao longo de uma linha horizontal, sentindo-se como uma formiga numa parede. Os guardas lá embaixo nunca olhavam para cima, e ele finalmente alcançou a janela mais próxima e ficou sobre o batente. Baixou o olhar para uma grande sala vazia, mas equipada de maneira sensual e bárbara. Leitos de seda e travesseiros de veludo se espalhavam profusamente pelo chão, e tapeçarias carregadas de acabamento dourado pendiam das paredes de ladrilho. O teto também era trabalhado a ouro.

De forma estranhamente incongruente, bugigangas rudes de marfim e pau-ferro, inconfundivelmente selvagens no feitio, também se espalhavam pelo local, bastante simbólicas deste estranho reino onde sinais de barbarismo competiam com uma estranha cultura. A porta externa estava fechada e, na parede oposta, havia outra porta, também fechada.

Kane desceu da janela, deslizando para baixo pela beirada da tapeçaria, como um marinheiro faz na corda de uma vela, e atravessou a sala. Seus pés afundaram silenciosamente no espesso tecido do tapete felpudo que cobria o chão, e que, como todas as outras mobílias, parecia antigo a ponto de estar em decadência.

Ele hesitou ao chegar à porta. Caminhar para dentro da próxima sala poderia ser algo desesperadamente perigoso a ser feito; se estivesse cheia de guerreiros, sua fuga seria barrada pelos lanceiros do lado de fora da porta externa. Mesmo assim, ele estava acostumado a correr todos os tipos de riscos violentos, e agora, de espada em punho, ele abriu violentamente a porta, com uma subtaneidade que visava paralisar de surpresa, por um instante, qualquer inimigo que pudesse estar no outro lado. Kane deu um passo rápido para dentro, pronto para qualquer coisa... logo, ele parou subitamente, mudo e imóvel por um segundo. Ele havia chegado procurando algo por milhares de quilômetros, e lá estava, diante dele, o objeto de sua busca.


3) Lilith

Havia um leito no meio da sala e, na sua superfície de seda, jazia uma mulher – uma mulher cuja pele era branca, e cujo cabelo de ouro avermelhado. Ela agora se erguia de um pulo, o medo lhe inundando os belos olhos cinzas, os lábios abertos para soltarem um grito, o qual ela repentinamente conteve.

- Você! – ela exclamou – Como foi que você...?

Solomon Kane fechou a porta atrás dele e caminhou em direção a ela, com um raro sorriso no rosto moreno.

- Você lembra-se de mim, não, Marylin?

O medo já havia desaparecido dos olhos dela, antes que ele falasse, para ser substituído por um olhar de incrível admiração e deslumbrada perplexidade:

- Capitão Kane! Não consigo entender... parecia que ninguém iria aparecer...

Cansada, ela passou a pequena mão pela testa, cambaleando subitamente.

Kane a pegou nos braços – ela era apenas uma criança – e colocou-a gentilmente sobre o leito. Lá, esfregando-lhe gentilmente os pulsos, ele falou numa voz monótona, baixa e apressada, vigiando a porta o tempo todo – aquela porta, por sinal, parecia ser a única entrada ou saída da sala. Enquanto falava, ele mecanicamente deu uma olhada nos aposentos, notando que era quase uma duplicata da sala externa, no que se refere às cortinas e à mobília em geral.

- Primeiro – ele disse –, antes que entremos em quaisquer outros assuntos, diga-me: você está sendo rigorosamente vigiada?

- Muito rigorosamente, senhor. – ela murmurou indefesa – Não sei como você chegou aqui, mas nunca conseguiremos escapar.

- Deixe-me contar rapidamente como cheguei até aqui, e talvez você fique mais esperançosa quando eu lhe falar das dificuldades já vencidas. Acalme-se agora, Marylin, e vou lhe contar como vim em busca de uma herdeira inglesa na cidade diabólica de Negari.

“Matei Sir John Taferel num duelo. Quanto ao motivo, não vem ao caso, mas há difamação e uma negra mentira por trás disso. Antes de morrer, ele confessou ter cometido um crime sórdido alguns anos antes. Você se lembra, é claro, da afeição dada a você por seu primo, o velho Lorde Hildred Taferal, tio de Sir John? Sir John temia que o velho lorde, morrendo sem descendentes, pudesse deixar as grandes propriedades dos Taferal para você.

“Anos atrás, você desapareceu, e Sir John espalhou o boato de que você teria se afogado. Mas, enquanto morria com minha espada atravessada no corpo, ele ofegou que havia lhe raptado e vendido a um pirata berbere, ao qual deu um nome – um pirata sangrento, cujo nome não era desconhecido nas costas da Inglaterra antes. Desse modo, vim lhe procurar, e foi uma trilha longa e cansativa, que se estendeu por longas léguas e anos amargos.

“Primeiro, naveguei os mares em busca de El Gar, o pirata berbere mencionado por Sir John. Eu o encontrei no estrondo e rugido de uma batalha no oceano; ele morreu, mas enquanto morria, me contou que havia lhe vendido a um comerciante vindo de Istambul. Então, fui ao Levante e lá, por acaso, me deparei com um marinheiro grego, a quem os mouros haviam crucificado na praia por pirataria. Eu o libertei e fiz a ele a mesma pergunta que havia feito a todos os homens: se ele havia, em suas perambulações, visto uma menina inglesa cativa, de cachos amarelos. Eu soube que ele havia pertencido à tripulação de mercadores de Istambul, e que ela havia, em sua viagem para casa, sido capturada por um escravista português, e afundado – esse renegado grego e a criança estavam entre os poucos que foram levados a bordo pelo escravista.

“Então, este escravista, navegando para o sul em busca de mármore negro, fora emboscado numa pequena baía na Costa Oeste africana, e o grego nada sabia de seu destino posterior, pois ele havia escapado do massacre total e, seguindo para o mar num barco aberto, fora capturado por um navio de piratas genoveses.

“Então, cheguei à Costa Oeste, na remota chance de que você ainda vivia, e lá, ouvi por entre os nativos que, alguns anos atrás, uma criança branca havia sido levada por um navio, cuja tripulação havia sido assassinada, e mandada terra adentro como parte do tributo que as tribos do litoral pagavam aos chefes do rio de cima.

“Depois, todos os rastros sumiram. Durante meses, perambulei sem nenhuma pista de seu paradeiro; não, nem sequer uma insinuação de que você estivesse viva. Depois, ouvi por acaso, entre as tribos do rio, sobre a cidade demoníaca de Negari e a rainha maligna que mantinha uma mulher estrangeira como escrava. Vim para cá”.

O tom prático de Kane, sua narração sem lustre, não davam qualquer insinuação do total significado daquela história... o que havia por trás daquelas palavras calmas e medidas... as lutas no mar e em terra... os anos de privação e dolorosa labuta, o perigo incessante, a constante perambulação através de terras hostis e desconhecidas; o trabalho tedioso e enfraquecedor de investigar a informação que desejava de selvagens ignorantes, taciturnos e hostis.

- Vim para cá. – disse Kane com simplicidade, mas que mundo de coragem e esforço era simbolizado por aquela frase! Uma longa trilha vermelha, sombras negras e escarlates entrelaçando uma dança de demônios... marcada por espadas faiscantes e pela fumaça da batalha... pelas palavras balbuciadas, caindo como gotas de sangue dos lábios de homens moribundos.

Solomon Kane certamente não era um homem conscientemente dramático. Ele contou sua história da mesma forma como havia vencido terríveis obstáculos – fria e brevemente, sem poemas épicos.

- Como vê, Marylin – ele concluiu brandamente –, eu não teria percorrido esta distância e feito tudo isto, para agora conhecer a derrota. Coragem, criança. Encontraremos um caminho para fora deste lugar terrível.

- Sir John me levou na sela de seu cavalo. – a garota disse deslumbrada e falando devagar, como se sua linguagem nativa lhe fosse estranha, devido a anos de desuso, enquanto expressava, em palavras claudicantes, um anoitecer inglês de muito tempo atrás: – Ele me carregou até o litoral marinho, onde o bote de uma galé esperava, cheio de homens ferozes, morenos, usando bigodes, cimitarras e grandes anéis nos dedos. O capitão, um muçulmano com rosto de gavião, me pegou, enquanto eu chorava de medo, e me levou para sua galé. Mas ele foi bondoso comigo, ao modo dele; eu era pouco mais que uma criancinha, e finalmente me vendeu a um mercador turco, como ele lhe contou. Ele encontrou esse mercador na costa sul da França, após muitos dias de viagem no mar.

“Este homem não fez mau uso de mim, mas eu o temia, pois ele era um homem de rosto cruel, e me fez entender que eu seria vendida a um sultão negro dos mouros. Entretanto, nos Portões de Hércules, sua embarcação foi atacada por um navio negreiro de Cadiz, e as coisas aconteceram quase como você havia dito.

“O capitão do navio negreiro acreditava que eu fosse filha de alguma família inglesa rica, e pretendia me segurar em busca de um resgate; mas, numa baía sombria da costa africana, ele morreu com todos os seus homens, exceto o grego que você havia mencionado, e fui capturada por um selvagem chefe tribal.

“Eu estava terrivelmente assustada, e pensei que ele fosse me matar, mas ele não me fez mal e me enviou para fora dali com uma escolta, a qual também carregava muita pilhagem tirada do navio. Esta pilhagem, junto comigo, era, como você sabe, destinada a um poderoso rei dos povos do rio. Mas ela nunca o alcançou, pois um bando nômade de negaris caiu sobre os guerreiros litorâneos e matou todos eles. Então, fui trazida até esta cidade e, tendo sido sobrevivente, me tornei escrava da Rainha Nakari.

“Como vivi através de todas aquelas terríveis cenas de batalha, crueldade e assassinato, eu não sei”.

- Uma providência divina cuidou de você, criança – disse Kane –; o poder que realmente cuida de mulheres fracas e crianças indefesas; que me guiou até você, apesar de todos os obstáculos, e que ainda há de nos guiar para fora deste lugar, se Deus quiser.

- Meu povo! – ela exclamou subitamente, como quem acorda de um sonho – Como está ele?

- Todos em boa saúde e fortuna, criança, exceto pelo fato de que lamentaram por você através de longos anos. Não, o velho Sir Mildred tem certa enfermidade e jura, por esse motivo, que eu tema por sua alma às vezes. Mas me parece que, se ele lhe ver, pequena Marylin, ele irá se consertar.

- Mesmo assim, Capitão Kane – disse a menina –, não consigo entender por que você veio só.

- Seus irmãos viriam comigo, menina, mas não havia a certeza de que você vivia, e eu não queria que nenhum outro Taferal morresse numa terra distante do bom solo inglês. Eu percorri a região de um Taferal maligno... ninguém, senão eu, deveria trazer de volta ao seu lugar uma boa Taferal, se, nesse caso, ainda estivesse viva... eu, e somente eu.

O próprio Kane acreditava nesta explicação. Ele nunca procurou analisar seus motivos, e nunca hesitava uma vez que tomasse uma decisão. Embora sempre agisse por impulso, acreditava firmemente que todas as suas ações eram governadas por razões frias e lógicas. Era um homem nascido fora de seu tempo – uma mistura de puritano com cavaleiro, com um toque do antigo filósofo, e com mais que um toque do pagão, embora esta última afirmação o deixasse chocado e mudo. Ele era um atavista dos tempos da cavalaria cega, um cavaleiro errante nas cúpulas sombrias do fanático. Uma fome em sua alma o impelia sem parar, um impulso de corrigir todos os males, proteger todas as coisas fracas, vingar todos os crimes contra o direito e a justiça. Errante e inquieto como o vento, ele era constante em apenas um aspecto: era fiel aos seus ideais de justiça. Assim era Solomon Kane.

- Marylin – ele agora dizia bondosamente, pegando-lhe as pequenas mãos em seus dedos calejados pela espada –, parece-me que você mudou muito com o passar dos anos. Você era uma mocinha rosada e roliça, quando eu costumava lhe embalar em meu joelho, na velha Inglaterra. Agora você parece ter o rosto contraído e pálido, embora seja tão bonita quanto as ninfas dos livros pagãos. Há fantasmas assombrando seus olhos. Eles lhe maltratam aqui?

Ela se deitou no leito, e o sangue lhe fugiu lentamente do rosto já pálido, até ficar com uma brancura semelhante à morte. Kane se curvou assustado sobre ela. A voz dela veio num sussurro:

- Não me pergunte. Há atos que são melhores se escondidos na escuridão da noite e do esquecimento. Há visões que arruínam os olhos, e deixam para sempre sua marca ardente no cérebro. Os muros de cidades antigas, negligenciadas pelos homens, testemunham cenas que não devem ser faladas, nem mesmo em sussurros.

Os olhos dela se fecharam cansados, e os preocupados olhos sombrios de Kane inconscientemente percorreram as linhas azuis das veias dela, proeminentes contra a brancura não-natural de sua pele.

- Há alguma coisa demoníaca aqui. – ele murmurou – Um mistério...

- Sim – murmurou a garota –; um mistério que era velho quando o Egito era jovem! Um mal sem nome, mais antigo que a obscura Babilônia... o qual se proliferou em terríveis cidades negras, quando o mundo era jovem e estranho.

Kane franziu a testa, preocupado. Diante das estranhas palavras da menina, ele sentiu um medo estranho e arrepiante no fundo de seu cérebro, como se obscuras memórias raciais se agitassem nos golfos das profundezas de eras, evocando sombrias visões caóticas, ilusórias e de pesadelo.

Súbito, Marylin se sentou ereta, os olhos se arregalando de medo. Kane ouviu uma porta se abrir em algum lugar.

- Nakari! – a garota sussurrou de forma urgente.

- Rápido! Ela não pode lhe encontrar aqui. Esconda-se rápido, e – enquanto Kane se virava – fique em silêncio, aconteça o que acontecer!

Ela se deitou no leito, fingindo dormir, enquanto Kane atravessava a sala e se escondia atrás de algumas tapeçarias que, pendendo sobre a parede, ocultavam um nicho que outrora deveria conter algum tipo de estátua.

Ele mal havia feito isso, quando a única porta da sala se abriu, e uma estranha figura bárbara se destacou nela. Nakari, rainha de Negari, havia chegado em busca de sua escrava.

A negra estava vestida como havia estado quando ele a vira no trono, e os braceletes e tornozeleiras coloridas retiniram quando ela fechou a porta atrás de si, e adentrou a sala. Ela se movia com a desembaraçada sinuosidade de um leopardo e, apesar de si mesmo, o observador foi tomado de admiração por sua beleza flexível. Mas, ao mesmo tempo, um estremecimento de repulsa o sacudiu, pois os olhos dela brilhavam com ódio vibrante e magnético, mais velho que o mundo.

“Lilith!”, pensou Kane. “Ela é bela e terrível como o Purgatório. Ela é Lilith – aquela mulher repugnante e amável da antiga lenda”.

Nakari parou próxima ao leito, ficou olhando para baixo, em direção à prisioneira, e então, com um sorriso enigmático, se curvou e a sacudiu. Marylin abriu os olhos, sentou-se e então deslizou de seu leito e se ajoelhou diante de sua selvagem senhora – um ato que fez Kane praguejar em voz baixa. A rainha riu, e, sentando-se sobre o leito, gesticulou para que a garota se levantasse, e logo lhe pôs um braço ao redor da cintura e sentou-a no colo. Kane olhava perplexo, enquanto Nakari acariciava a garota de maneira preguiçosa e divertida. Isto poderia ser afeição, mas para Kane mais parecia um leopardo sentado, caçoando de sua vítima. Havia um ar de zombaria e zelosa crueldade naquilo tudo.

- Você é tão delicada e linda, Mara – Nakari murmurou languidamente –; muito mais linda que as outras jovens que me servem. A hora de suas núpcias se aproxima, pequena. E uma noiva mais bela nunca foi levada para as Escadas Negras.

Marylin começou a tremer, e Kane achou que ela iria desmaiar. Os olhos de Nakari brilhavam estranhamente sob as longas pestanas curvadas de suas pálpebras, e seus lábios carnudos e vermelhos se curvavam num leve sorriso atormentador. Cada ação dela parecia carregada de algum significado sinistro. Kane começou a suar profusamente.

- Mara – disse a rainha negra –; você é mais honrada que todas as outras garotas, e, no entanto, não está contente. Pense no quanto as garotas de Negari irão invejá-la, Mara, quando os sacerdotes cantarem a canção nupcial e a Lua das Caveiras olhar sobre a crista negra da Torre da Morte. Pense, pequena noiva do Mestre, quantas garotas já deram suas vidas para serem noivas dele!

E Nakari riu ao seu modo odioso e musical, como se de uma rara piada. Então, ela subitamente parou. Seus olhos se estreitaram até parecerem fendas, enquanto perscrutavam a sala, e seu corpo inteiro ficou tenso. Sua mão dirigiu-se ao cinto, e dele saiu com uma longa e fina adaga. Kane apontou o cano de sua pistola, o dedo no gatilho. Apenas uma hesitação natural contra atirar numa mulher o deteve de mandar a morte para dentro do selvagem coração de Nakari, pois ele acreditava que ela estava prestes a assassinar a garota.

Então, com um movimento flexível e felino, ela ergueu a garota de um puxão e pulou de volta para o outro lado da sala, seus olhos fixos com intensidade ardente na tapeçaria atrás da qual Kane se encontrava. Será que aqueles olhos agudos o descobriram? Ele logo soube.

- Quem está aí? – ela disse, de forma abrupta e feroz – Quem se esconde atrás dessas cortinas? Não lhe vejo nem ouço, mas sei que há alguém aí!

Kane continuou em silêncio. O instinto de fera selvagem de Nakari o havia traído, e ele estava incerto sobre qual rumo tomar. Suas próximas ações dependeriam da rainha.

- Mara! – a voz de Nakari estalou feito um chicote – Quem está atrás dessas cortinas? Responda-me! Será que devo lhe dar novamente o sabor do chicote?

A garota parecia incapaz de falar. Ela se encolheu no lugar onde havia caído, seus belos olhos cheios de terror. Nakari, cujo olhar ardente nunca hesitava, dirigiu a mão livre atrás dela e agarrou uma corda de cortina, na parede. Ela puxou perversamente. Kane sentiu as tapeçarias recuarem a ambos os lados dele, e foi revelado. Por um momento, o estranho quadro vivo se manteve: o aventureiro magro em roupas ensangüentadas e esfarrapadas, a longa pistola segura em sua mão direita; do outro lado da sala, a rainha negra em seus adereços bárbaros; a garota aprisionada, se encolhendo no chão. Então, Kane falou:

- Fique em silêncio, Nakari, ou você morre!

A rainha parecia paralisada e muda pela súbita aparição. Kane saiu de entre as tapeçarias, e lentamente se aproximou dela.

- Você! – ela finalmente encontrou sua voz – Você deve ser aquele de quem os guardas falaram! Não há dois homens brancos em Negari! Disseram que você caiu para sua morte! Então, como...

- Silêncio! – a voz de Kane lhe interrompeu os balbucios espantados; ele sabia que a pistola nada significava para ela, mas ela sentia a ameaça daquela longa lâmina em sua mão esquerda – Marylin – ainda falando inconscientemente na linguagem das tribos do rio –, pegue cordas das cortinas e amarre-a... – Ele estava quase no meio do quarto agora. O rosto de Nakari havia perdido muito de sua perplexidade indefesa, e dentro de seus olhos ardentes, se movia furtivamente um brilho ardiloso. Ela deliberadamente deixou sua adaga cair, como em sinal de rendição; e, subitamente, suas mãos dispararam acima de sua cabeça e agarraram outra corda grossa. Kane ouviu Marylin gritar, mas antes que ele pudesse puxar o gatilho, ou até mesmo pensar, o chão lhe caiu sob os pés e ele despencou em negrura abismal. Ele não caiu muito e aterrissou de pé; mas a força da queda o colocou de joelhos e, enquanto caía, sentindo uma presença na escuridão ao seu lado, algo se espatifou contra seu crânio, e ele caiu no abismo ainda mais negro da inconsciência.


4) Sonhos de Império

Lentamente, Kane saiu dos reinos obscuros para onde o invisível porrete do agressor o havia lançado. Algo o impedia de mover as mãos, e houve um ruído metálico quando ele tentou erguê-las até sua cabeça dolorida e palpitante. Ele estava em total escuridão, mas não conseguia ter certeza se era a ausência de luz, ou se ele ainda estava cego pelo golpe. Aturdido, ele reuniu suas faculdades dispersas, e percebeu que jazia num úmido chão de pedra, algemado pelos pulsos e tornozelos com pesadas correntes de ferro, as quais eram ásperas e enferrujadas ao toque.

Por quanto tempo ficou lá, ele nunca soube. O silêncio era quebrado apenas pelo pulsar de tambor de sua própria cabeça dolorida, e pela correria e chiado de ratos. Por fim, um brilho vermelho apareceu na escuridão e cresceu diante de seus olhos. Destacado contra a medonha radiação, se ergueu o rosto sinistro e sardônico de Nakari. Kane sacudiu a cabeça, esforçando-se para se livrar da ilusão. Mas a luz cresceu e, quando seus olhos se acostumaram a ela, ele viu que a mesma era proveniente de uma tocha na mão da rainha.

Na iluminação, ele não viu que jazia numa pequena cela úmida, cujas paredes, teto e chão eram de pedra. As pesadas correntes que o prendiam estavam ligadas a anéis de metal cravados profundamente na parede. Só havia uma porta, a qual era aparentemente de bronze.

Nakari encaixou a tocha num nicho próximo à porta, e caminhando para a frente, se ergueu sobre seu cativo, descendo o olhar para ele, de uma forma mais especulativa que zombeteira.

- Você é aquele que enfrentou os homens nos penhascos. – A observação era mais uma afirmação do que uma pergunta – Disseram que você caiu dentro do abismo... eles mentiram? Você os subornou para que mentissem? Você é um mago, ou voou até o fundo do precipício, e de lá para meu palácio? Fale!

Kane continuou em silêncio. Nakari praguejou.

- Fale, ou arrancarei seus olhos! Deceparei os dedos de suas mãos e queimarei seus pés! – Ela o chutou maldosamente, mas Kane ficou em silêncio, até o brilho feroz desaparecer dos olhos dela para ser substituído por um ávido interesse e admiração.

Ela se sentou num banco de pedra, descansando os cotovelos nos joelhos, e o queixo nas mãos.

- Nunca vi um homem branco antes. – ela disse – Será que todos os homens brancos são como você? Bah! Não pode ser. Quase todos os homens são tolos, sejam negros ou brancos. Sei que os brancos não são deuses, como as tribos do rio dizem... são apenas homens. Eu, que conheço todos os mistérios antigos, digo que são apenas homens.

“Mas os homens brancos têm mistérios estranhos também, eles dizem – os aventureiros das tribos do rio e Mara. Eles têm porretes de guerra, que fazem um barulho semelhante ao trovão e matam à distância – aquilo que você segurava em sua mão direita era um daqueles porretes?”.

Kane se permitiu um sorriso sombrio:

- Nakari, se você conhece todos os mistérios, como posso lhe falar de algo que você já não conhece?

- Como seus olhos são profundos, frios e estranhos! – a rainha disse, como se ele não tivesse falado – Como sua aparência é completamente estranha... e você tem o porte de um rei! Você não tem medo de mim... Nunca encontrei um homem que não me amasse nem temesse. Você jamais me temeria, mas poderia aprender a me amar. Olhe para mim, homem destemido... não sou bonita?

- Você é bonita. – respondeu Kane.

Nakari sorriu, e logo franziu a testa:

- Da maneira como você diz, não é elogio. Você me odeia, não?

- Como um homem odeia uma serpente. – Kane respondeu rudemente.

Os olhos de Nakari queimaram numa fúria quase insana. Suas mãos se fecharam até suas unhas longas lhe afundarem nas palmas das mãos; logo, tão repentinamente quanto sua fúria havia surgido, ela desapareceu.

- Você tem o coração de um rei – ela disse calmamente –; ou, do contrário, me temeria. Você é um rei em sua terra?

- Sou apenas um andarilho sem terra.

- Você poderia ser um rei aqui. – Nakari disse lentamente.

Kane riu de forma sombria:

- Você me oferece minha vida?

- Ofereço-lhe mais do que isso!

Os olhos de Kane se estreitaram quando a rainha se curvou sobre ele, vibrante de excitação oculta:

- Kane, o que você quer mais do que qualquer outra coisa no mundo?

- Pegar a garota branca que você chama de Mara, e partir.

Nakari recuou, com uma exclamação impaciente:

- Você não pode tê-la; ela é a noiva prometida do Mestre. Nem mesmo eu posso salvá-la; nem que eu quisesse. Esqueça-a. Vou lhe ajudar a esquecê-la. Ouça, ouça as palavras de Nakari, rainha de Negari! Você diz ser um homem sem terra... farei de você um rei! Darei-lhe o mundo como brinquedo! Não, não; fique em silêncio até eu terminar! – ela prosseguiu apressadamente, suas palavras tropeçando umas nas outras em sua ânsia. Seus olhos ardiam, e todo o seu corpo tremia com intensidade dinâmica: – Já conversei com viajantes, cativos e escravos, homens de países distantes. Sei que esta terra de montanhas, rios e selva não é o mundo inteiro. Há nações e cidades bem distantes, e reis e rainhas para serem esmagados e derrotados.

“Negari está desaparecendo e seu poder está se desagregando, mas um homem forte ao lado de sua rainha pode reconstruí-la... pode restaurar toda a sua glória que está desaparecendo. Ouça, Kane! Sente-se ao meu lado no trono de Negari! Peça os porretes de trovão ao seu povo, para armar meus guerreiros! Minha nação ainda é senhora da África central. Juntos, uniremos as tribos conquistadas – traremos de volta os dias em que o reino da antiga Negari atravessava a terra de mar a mar! Subjugaremos todas as tribos do rio, da planície e do litoral marinho, e, ao invés de matarmos a todos, faremos deles um poderoso exército! E depois, quando toda a África estiver sob nosso domínio, avançaremos sobre o mundo como um leão faminto, para dilacerar, rasgar e destruir!”.

O cérebro de Solomon vacilava. Talvez fosse a feroz personalidade magnética da mulher, e o poder dinâmico que ela vertia em suas palavras ardentes; mas, naquele momento, seu plano não parecia nada desvairado nem impossível. Visões sinistras e caóticas flamejavam pela mente do puritano... a Europa rasgada por conflitos civis e religiosos, dividida contra si mesma, traída por seus governantes, cambaleando... sim, a Europa estava em situações desesperadamente difíceis agora, e poderia ser uma vítima fácil para uma forte raça selvagem de conquistadores. Qual homem pode dizer sinceramente que, em seu coração, não se esconde um anseio por poder e conquista?

Por um momento, o Demônio inflamadamente tentou Solomon Kane. Logo, diante dos olhos de sua mente, apareceu o rosto ansioso e triste de Marylin Taferal, e Solomon praguejou:

- Para trás, filha de Satã! Vai-te! Acaso sou uma fera da floresta, para liderar seus demônios selvagens contra meu próprio povo? Não, nenhuma fera já fez isso. Vai-te! Se deseja minha amizade, liberte-me e deixe-me ir com a garota.

Nakari se ergueu de um pulo, como um tigre, seus olhos agora queimando com fúria ardente. Uma adaga lhe brilhou na mão, e ela a ergueu acima do peito de Kane com um grito felino de ódio. Por um momento, ela pairou como uma sombra de morte acima; então, seu braço desabou e ela riu:

- Liberdade? Ela encontrará liberdade, quando a Lua das Caveiras olhar para o altar negro. Quanto a você, irá apodrecer neste calabouço. Você é um idiota; a maior rainha da África lhe ofereceu seu amor e o império do mundo... e você a insulta! Você ama a jovem escrava, talvez? Até a Lua das Caveiras, ela é minha, e eu lhe deixo pensar sobre isto: que ela será castigada como eu a castiguei antes... pendurada pelos pulsos, nua e chicoteada até desmaiar!

Nakari riu enquanto Kane puxava selvagemente seus grilhões. Ela se dirigiu à porta, a abriu e então hesitou e voltou para dizer mais alguma coisa:

- Este é um lugar desagradável, caro destemido; e talvez você me odeie mais ainda por lhe acorrentar aqui. Talvez, na bela sala do trono de Nakari, com riqueza e luxúria espalhadas diante de você, você a olhe com mais aprovação. Muito em breve, mandarei lhe buscar, mas primeiro vou deixá-lo aqui por algum tempo, para refletir. Lembre-se... ame Nakari, e o reino do mundo será seu; odeie-a... e esta cela será seu reino.

A porta de bronze se fechou com um tinido sombrio, mas, mais odiosa para o aprisionado inglês era a risada venenosa e prateada de Nakari.

O tempo passou devagar na escuridão. Após o que pareceu ser um longo tempo, a porta se abriu novamente; desta vez, para entrar um enorme guerreiro, que trouxe comida e uma espécie de vinho aguado. Kane comeu e bebeu avidamente, e depois dormiu. O esforço dos últimos poucos dias o havia cansado bastante – mental e fisicamente –, mas quando ele acordou, sentiu-se revigorado e fortalecido.

A porta se abriu novamente, e dois grandes guerreiros selvagens entraram. À luz das tochas que carregavam, Kane viu que eram gigantes, vestidos com tangas e cocares de plumas de avestruz, e segurando longas lanças em suas mãos.

- Nakari deseja que você vá até ela, homem branco. – foi tudo o que disseram, enquanto lhe tiravam as correntes. Ele se ergueu, exultante em sua breve liberdade, seu cérebro agudo trabalhando ferozmente em busca de um meio de escapar.

Evidentemente, a fama de sua bravura havia se espalhado, pois os dois guerreiros mostravam grande respeito por ele. Gesticularam para que ficasse à frente deles, e caminharam cautelosamente atrás dele, as pontas de suas lanças lhe espetando as costas. Embora fossem dois contra um e ele estivesse desarmado, eles não se arriscavam. Os olhares que dirigiam para ele eram cheios de temor respeitoso e suspeita.

Seguiram através de um corredor longo e escuro, seus captores o guiando com as leves pontas de suas lanças, para uma estreita e serpenteante escada ascendente, através de outro corredor, para subir outra escada, e finalmente chegaram ao vasto labirinto de pilares gigantescos pelo qual Kane havia chegado inicialmente. Quando se moveram por este enorme salão, os olhos de Kane pousaram subitamente numa figura estranha e fantástica, pintada na parede à sua frente. Seu coração deu um pulo repentino, ao reconhecê-la. Estava a alguma distância dele, e ele imperceptivelmente se moveu aos poucos em direção à parede, até que ele e os guardas caminhassem de forma paralela e bem próxima a ela. Agora ele estava quase lado a lado com a figura, e podia até perceber a marca que sua adaga havia feito sobre ela.

Os guerreiros que seguiam Kane ficaram espantados, ao ouvi-lo ofegar subitamente, como um homem golpeado por uma lança. Ele hesitou em seus passos e começou a agarrar o ar, em busca de apoio.

Eles olhavam duvidosos um para o outro, e o cutucaram com as pontas das lanças, mas ele gritou como um homem moribundo e se amarrotou lentamente ao chão, onde ficou numa posição estranha e não-natural, uma perna dobrada para trás sob ele e um dos braços lhe apoiando o corpo deitado.

Os guardas olharam temerosos para ele. Tudo indicava que estava morrendo, mas não havia ferimentos sobre ele. Eles o ameaçaram com suas lanças, mas ele não deu atenção. Então, eles abaixaram suas armas, incertos, e um dos guardas se curvou sobre ele.

Então aconteceu. No instante em que o guarda se abaixou, Kane avançou como uma mola de aço libertada. Seu punho direito, seguindo-lhe o movimento, curvou-se para cima, vindo do quadril, num sibilante semicírculo, e se espatifou contra o maxilar do guerreiro. Desferido com toda a força do braço e ombro, e impulsionado pelo levantar de suas poderosas pernas quando Kane se ergueu, o golpe foi como o tiro de uma funda. O guarda despencou ao chão, inconsciente antes que seus joelhos dobrassem.

O outro guerreiro saltou para diante com um bramido, mas enquanto sua vítima caía, Kane se retorceu para o lado, sua mão frenética encontrou a mola secreta na pintura e a pressionou.

Tudo aconteceu num instante. Embora o guerreiro fosse rápido, Kane era mais ainda, pois ele se movia com a dinâmica rapidez de um lobo faminto. Por um instante, o corpo cadente do guarda sem sentidos impediu a arremetida do outro guerreiro; e, naquele instante, Kane sentiu a porta oculta se abrir. Com o canto do olho, ele viu um longo brilho de aço disparar em busca de seu coração. Ele se virou e retorceu, e lançou-se contra a porta, desaparecendo atrás dela, enquanto a lança perfurante lhe cortava a pele do ombro.

Para o guerreiro aturdido e desorientado, que se erguia lá com a arma levantada para outra arremetida, parecia que o prisioneiro havia simplesmente desaparecido através de uma parede sólida, pois somente uma figura fantástica foi vista por ele, e esta não cedeu aos seus esforços.


5) “Durante Mil Anos...”

Kane fechou, com um estrondo, a porta secreta atrás dele, apertou a mola e, por um instante, se inclinou sobre ela, com todos os músculos tensos, na expectativa de segurá-la contra os esforços de uma horda de lanceiros. Mas não aconteceu nada do tipo. Ele ouviu seu guarda remexendo algo atrapalhadamente por um tempo; depois, aquele som também parou. Parecia impossível aquele povo ter vivido neste palácio por tanto tempo, sem descobrir as portas e passagens secretas, mas era uma conclusão que se forçou sobre a mente de Kane. Finalmente, ele reconheceu que estava a salvo de perseguição por enquanto e, dando a volta, pôs-se a caminhar pelo longo corredor estreito, com sua poeira de eons de idade e sua fosca luz cinza. Ele se sentiu frustrado e furioso, embora estivesse livre dos grilhões de Nakari. Ele não tinha idéia de quanto tempo havia ficado no palácio; pareciam eras. Deveria ser dia agora, pois havia luz nos salões externos, e ele não tinha visto tochas depois que eles haviam deixado as masmorras subterrâneas. Ele se perguntava se Nakari havia cumprido a ameaça de vingança contra a garota indefesa. Livre por enquanto, sim; mas desarmado e caçado por este palácio infernal, feito um rato. Como ele poderia ajudar a si mesmo ou a Marylin? Mas sua confiança nunca vacilava. Ele estava com a razão, e alguma solução se apresentaria. Súbito, uma escadaria estreita se ramificou do corredor principal, e ele subiu por ela, a luz ficando cada vez maior, até ele se encontrar em pleno fulgor da luz solar africana. A escada terminava numa espécie de pequeno patamar, diante do qual havia uma pequena janela, fortemente gradeada. Através desta, ele viu o céu azul com matizes dourados da ardente luz do sol; a visão era como vinho para ele, e ele respirou profundamente o ar fresco e puro, como se para livrar seus pulmões da aura de pó e esplendor decadente pela qual estava passando.

Ele olhava para fora, sobre uma paisagem fantástica e bizarra. De longe, à direita e à esquerda, avultavam grandes penhascos negros e, sob eles, se erguiam castelos e torres de pedra, de estranha arquitetura – era como se gigantes de algum outro planeta tivessem erguido-os numa selvagem e caótica orgia de criação. Estas construções eram solidamente apoiadas contra os rochedos, e Kane sabia que o palácio de Nakari também devia estar construído dentro da parede do penhasco que se erguia atrás. Ele parecia estar na frente daquele palácio, num tipo de minarete construído na parede externa. Mas havia apenas uma janela nele, e sua visão estava limitada.

Bem abaixo dele, por entre as sinuosas ruas estreitas daquela estranha cidade, enxames humanos circulavam, assemelhando-se a formigas negras para o observador lá no alto. A leste, norte e sul, os rochedos formavam uma muralha natural; apenas a oeste havia um muro artificial.

O sol afundava a oeste. Relutante, Kane deu as costas à janela e desceu as escadas de volta. Novamente, ele atravessou o corredor estreito e cinza, sem rumo nem planos, pelo que pareciam ser milhas e milhas. Ele descia cada vez mais por passagens que ficavam sob passagens. A luz ficou mais obscura, e um lodo úmido apareceu nas paredes. Logo, Kane parou; um som fraco, atrás da parede, lhe prendia a atenção. O que era isso? Um chocalhar fraco... o chocalhar de correntes.

Kane se curvou perto da parede, e na semi-escuridão, sua mão encontrou uma mola enferrujada. Ele a manuseou cautelosamente, e logo sentiu uma porta oculta à qual ela anunciava se mover para dentro. Ele olhou cautelosamente para fora.

Estava olhando para dentro de uma cela, duplicata da outra na qual havia sido confinado. Uma tocha ardente estava enfiada num nicho da parede e, através de sua luz avermelhada e palpitante, ele percebeu uma forma no chão, acorrentada pelos pulsos e tornozelos como ele havia sido.

Um homem; a princípio, Kane pensou que fosse um nativo, mas uma segunda olhada o fez duvidar. Sua pele era escura, mas suas feições eram finamente entalhadas, ele possuía uma testa alta e magnífica, olhos firmes e vibrantes, e lisos cabelos escuros.

O homem falou num dialeto não-familiar, o qual era estranhamente distinto e bem-definido, em contraste com o jargão gutural dos nativos, com os quais Kane estava familiarizado. O inglês falou em sua própria língua, e depois na linguagem das tribos do rio.

- Você, que veio através da porta antiga – disse o outro, neste último dialeto –, quem é você? Você não é um selvagem... a princípio, pensei que você fosse alguém da Velha Raça, mas agora vejo que não é como eles. De onde você veio?

- Eu sou Solomon Kane – disse o puritano –, um prisioneiro nesta cidade diabólica. Vim do outro lado do salgado mar azul.

Os olhos do homem se iluminaram diante da palavra:

- O mar! O antigo e eterno! O mar, que eu nunca vi, mas que foi o berço da glória de meus ancestrais! Diga-me, estranho, você já navegou, como eles, de um lado a outro do peito do grande monstro azul, e seus olhos já viram os pináculos dourados da Atlântida e os muros escarlates de Mu?

- Realmente – Solomon respondeu incerto –, já naveguei pelos mares, até o Indostão e Cathay, mas nada sei dos países que você mencionou.

- Não – o outro suspirou –; eu sonho... eu sonho. A sombra da grande noite já cai sobre meu cérebro, e minhas palavras devaneiam. Estranho, houve épocas em que estas paredes e este chão frio pareciam se dissipar em profundezas verdes e ondulantes, e minha alma era preenchida com o profundo bramido do mar eterno. Eu, que nunca vi o mar!

Kane estremeceu involuntariamente. Este homem, com certeza, era insano. Súbito, o outro estendeu uma mão murcha e em forma de garra, e lhe segurou o braço, apesar das correntes que o prendiam.

- Você, cuja pele é tão estranhamente clara... Você já viu Nakari, a demônia que governa esta cidade em decadência?

- Eu já a vi – disse Kane sombriamente –, e agora fujo dos assassinos dela, como um rato caçado.

- Você a odeia! – o outro gritou – Há, eu sei! Você procura Mara, a garota branca que é escrava dela?

- Sim.

- Ouça... – o homem acorrentado falou com estranha solenidade – Estou morrendo. O cavalete de tortura de Nakari fez seu trabalho. Eu morro, e comigo morre a sombra da glória que pertenceu à minha nação. Pois eu sou o último de minha raça. Em todo o mundo, não há ninguém como eu. Ouça agora a voz de uma raça moribunda.

E Kane, se inclinando ali, na trêmula penumbra da cela, ouviu a história mais estranha já ouvida por qualquer homem, trazida da bruma das eras obscuras do amanhecer pelos lábios do delírio. Claras e distintas, as palavras caíam do moribundo, e Kane alternadamente ardia e congelava, enquanto vista após gigantesca vista de tempo e espaço se movia diante dele.

- Longos eons atrás... eras, eras atrás... o império de minha raça se erguia orgulhosamente sobre as ondas. Há tanto tempo, que nenhum homem se lembra de um ancestral que o lembrasse. Numa grande terra a oeste, se erguiam nossas cidades. Nossas torres douradas arranhavam as estrelas; nossas galés de proas púrpuras rompiam as ondas ao redor do mundo, pilhando os tesouros do sol poente e as riquezas do nascente.

“Nossas legiões avançavam para o norte e o sul, oeste e leste; e ninguém era capaz de resistir a elas. Nossas cidades uniram o mundo; espalhamos nossas colônias por todas as terras para subjugar todos os selvagens, vermelhos, brancos ou negros, e escravizá-los. Eles trabalharam para nós nas minas e nos remos das galés. Por todo o mundo, o povo marrom da Atlântida reinou supremo. Éramos um povo marinho, e investigávamos as profundezas de todos os oceanos. Os mistérios nos eram conhecidos, e as coisas secretas da terra, do mar e do céu. Nós líamos as estrelas e éramos sábios. Filhos do mar, nós o exaltávamos acima de tudo.

“Adorávamos Valka, Hotah, Honen e Golgor. Muitas virgens, muitos jovens fortes, morreram em seus altares e a fumaça de seus santuários ocultava o sol. Então, o mar se ergueu e sacudiu. Ele trovejou de seu abismo, e os tronos do mundo caíram diante dele! Novas terras se ergueram das profundezas, e Atlântida e Mu foram engolidas pelo abismo. O mar verde rugiu pelos templos e castelos, e as ondas do mar se incrustaram nas cúpulas douradas e torres de topázio. O império da Atlântida desapareceu e foi esquecido, submergindo no abismo eterno do tempo e do esquecimento. Da mesma forma, as cidades coloniais em terras bárbaras, isoladas de seu reino materno, pereceram. Os selvagens negros e brancos se insurgiram, queimaram e destruíram, até que, no mundo todo, somente a cidade colonial de Negari permaneceu como símbolo do império perdido.

“Aqui, meus ancestrais governaram como reis, e os ancestrais de Nakari – a felina – se ajoelharam como seus escravos. Anos se passaram, se transformando em séculos. O império de Negari decaiu. Tribo após tribo se revoltou e arrebentou os grilhões, empurrando as fronteiras de volta, desde o mar, até que finalmente os filhos da Atlântida recuaram completamente e se retiraram pra dentro da própria cidade – a última fortaleza da raça. Não eram mais conquistadores, estavam encurralados por tribos ferozes, embora eles tenham mantido aquelas tribos acuadas durante mil anos. Negari era invencível: suas paredes se mantiveram firmes; mas influências malignas internas trabalhavam.

“Os filhos da Atlântida haviam trazido seus escravos com eles para dentro da cidade. Os governantes eram guerreiros, eruditos, sacerdotes e artesãos; eles não faziam trabalhos subalternos. Para isso, eles dependiam dos escravos. Havia mais destes escravos do que senhores. E eles cresciam, enquanto o povo marrom diminuía.

“Eles se miscigenavam uns com os outros cada vez mais, enquanto a raça se degenerava, até que finalmente, só os sacerdotes estavam livres da mácula de sangue selvagem. Governantes que possuíam pouco do sangue da Atlântida, se sentaram no trono de Negari, e permitiram cada vez mais que selvagens homens tribais entrassem na cidade como servos, mercenários e amigos.

“Então, veio um dia em que estes escravos ferozes se revoltaram e mataram todos os que tinham um traço de sangue marrom, exceto os sacerdotes e suas famílias. A estes, eles aprisionaram como ‘povo-talismã’. Durante mil anos, selvagens têm governado Negari, com seus reis orientados pelos sacerdotes cativos, que embora prisioneiros, ainda eram mestres dos reis”.

Kane ouvia, fascinado. Para sua mente imaginativa, a história queimava viva como estranho fogo do tempo e espaço cósmicos.

- Depois que todos os filhos da Atlântida, exceto os sacerdotes, foram mortos, subiu um grande rei ao trono profanado da antiga Negari. Ele era um tigre, e seus guerreiros eram como leopardos. Eles se auto-intitulavam negaris, arrebatando até mesmo o nome de seus antigos mestres, e ninguém conseguia resistir a eles. Eles varreram a terra de mar a mar, e a fumaça da destruição apagou as estrelas. O grande rio correu vermelho, e os novos lordes de Negari caminharam sobre os cadáveres de seus inimigos tribais. Depois, o grande rei morreu e o império se esmigalhou, exatamente como ocorrera com o reino atlante de Negari.

“Eles eram habilidosos na guerra. Os filhos mortos da Atlântida, seus primeiros mestres, haviam treinado-os bem na arte da batalha, e contra os selvagens homens das tribos eles eram invencíveis. Mas eles só haviam aprendido a guerrear, e o império foi dilacerado em guerras internas. Assassinato e intriga espreitavam, com as mãos ensangüentadas, pelos palácios e ruas, e as fronteiras do império foram minguando cada vez mais. O tempo todo, reis selvagens com mentes furiosas e sanguinárias sentavam no trono, e atrás das cortinas, não-vistos, mas grandemente temidos, os sacerdotes marrons guiavam a nação, mantendo-a unida e preservando-a da absoluta destruição.

“Nós éramos prisioneiros na cidade, pois não tínhamos lugar algum no mundo pra onde ir. Caminhávamos como fantasmas pelas passagens secretas e sob a terra, espionando as intrigas e fazendo magias secretas. Nós apoiamos a causa da família real – os descendentes daquele rei-tigre de muito tempo atrás – contra todos os líderes conspiradores, e sombrias são as histórias que estas paredes silenciosas poderiam contar.

“Estes selvagens não são como os outros nativos da região. Uma insanidade latente se esconde nos cérebros de todos. Eles provaram tão intensamente, e por tanto tempo, a matança e a vitória, que eles são como leopardos humanos, com eterna sede de sangue. Com seus milhares de escravos infelizes, eles saciaram todas as luxúrias e desejos, até se tornarem sórdidas e terríveis bestas, sempre procurando por alguma nova sensação, sempre saciando suas temíveis sedes em sangue.

“Como um leão, eles espreitaram por estes penhascos durante mil anos, para se lançarem à frente e destruírem a selva e o povo do rio, escravizando e devastando. Eles ainda são invencíveis por quem venha de fora, embora seus domínios tenham se reduzido às próprias muralhas da cidade, e seus primeiros grandes conquistadores e invasores houvessem se restringido a ataques em busca de escravos.

“Mas, enquanto eles definhavam, também definhavam seus mestres secretos, os sacerdotes marrons. Um a um, eles morreram, até restar apenas eu. No último século, eles também se miscigenaram com seus senhores e escravos, e agora – oh, que vergonha sobre mim! – eu, o último filho da Atlântida, carrego em minhas veias a mácula do sangue bárbaro. Eles morreram; restei eu, fazendo magia e guiando os reis selvagens; eu, o último sacerdote de Negari. Então, surgiu a demônia Nakari”.

Kane se curvou para a frente, com interesse reanimado. Uma nova vida rolou dentro da história, quando esta lhe tocou sua própria época.

- Nakari! – o nome foi cuspido, como o sibilar de uma cobra – Escrava e filha de um escravo! Mas ela triunfou, quando chegou sua hora, e toda a família real morreu.

“E a mim, o último filho da Atlântida, a mim ela aprisionou e acorrentou. Ela não temia os silenciosos sacerdotes atlantes, pois era filha de um Satélite – um dos sacerdotes nativos menores. Eram homens que faziam o trabalho servil dos amos – realizando os sacrifícios menores, fazendo adivinhações com fígados de galinhas e serpentes, e mantendo os fogos sagrados eternamente acesos. Ela conhecia muito sobre nós e nossos meios, e ambição maligna ardeu nela.

“Quando criança, ela dançava na Marcha da Lua Nova, e na adolescência, era uma das Donzelas das Estrelas (*). Muitos dos mistérios menores eram conhecidos por ela, e ela aprendeu mais, espionando os ritos secretos dos sacerdotes, os quais encenavam rituais ocultos, que eram velhos quando a terra era jovem.

“Pois os remanescentes da Atlântida, secretamente, mantiveram vivos os velhos cultos de Valka, Hotah, Honen e Golgor, há muito esquecidos e que não eram para serem entendidos por este povo selvagem, cujos ancestrais morreram gritando em seus altares. De todos os negaris negros, somente ela não nos temia, e ela não apenas derrubou o rei e se sentou no trono, mas também dominou os sacerdotes – os Satélites e os poucos amos atlantes que foram deixados. Todos estes últimos, exceto eu, morreram sob as adagas de seus assassinos, ou nas mesas de tortura dela. Somente ela, de todos os milhares selvagens que viveram e morreram entre estas paredes, conhecia as passagens secretas e corredores subterrâneos – segredos que nós, sacerdotes, havíamos escondido zelosamente do povo durante mil anos.

“Há, há! Idiotas cegos e selvagens! Passarem uma era eterna nesta cidade, sem nunca saberem os segredos dela! Macacos... idiotas! Nem sequer os sacerdotes menores sabem dos longos corredores cinzas, iluminados por tetos fosforescentes, através dos quais estranhas formas deslizaram silenciosamente, em eras passadas. Pois nossos ancestrais construíram Negari como construíram a Atlântida, numa escala poderosa, e com uma arte desconhecida. Nós a construímos não apenas para homens, mas para os deuses que se moviam invisíveis entre nós. E estas antigas muralhas guardam profundamente os segredos!

“A tortura não conseguiria arrancar estes segredos de nossos lábios; mas, acorrentados nos calabouços dela, não mais poderíamos caminhar nos nossos corredores ocultos. Durante anos, o pó se acumulou ali, intocado por pés humanos, enquanto nós, e finalmente apenas eu, ficamos acorrentados nestas celas repugnantes. E, por entre os templos e os escuros e misteriosos relicários de tempos antigos, se movem vis Satélites, elevados por Nakari para glórias que outrora foram minhas – pois eu sou o último sumo-sacerdote atlante.

“A perdição deles é certa, e vermelha será sua ruína. Valka e Golgor, deuses perdidos e esquecidos, cuja lembrança morrerá comigo, derrubem seus muros e os humilhem ao pó! Quebrem os altares de seus cegos deuses pagãos...”.

Kane percebeu que o homem estava delirando. O cérebro agudo estava finalmente começando a se desintegrar.

- Diga-me – ele falou –; você mencionou a garota branca Mara. O que sabe dela?

- Ela foi trazida para Negari, anos atrás por incursores – respondeu o outro –, apenas uns poucos anos após a ascensão da rainha selvagem, da qual é escrava. Pouco sei sobre ela, pois logo após sua chegada, Nakari se voltou contra mim... e os anos posteriores têm sido sombrios e escuros, avermelhados pela tortura e agonia. Aqui estou, tolhido por minhas correntes da fuga, a qual fica naquela porta através da qual você entrou... e por cujo conhecimento, Nakari me dilacerou nas mesas de tortura e me suspendeu sobre fogueiras.

Kane estremeceu:

- Você não sabe se maltrataram a garota branca? Os olhos dela estão assombrados, e ela debilitada.

- Ela dançou com as Donzelas das Estrelas, sob o comando de Nakari, e assistiu aos sangrentos e terríveis ritos do Templo Negro. Ela tem vivido, durante anos, entre um povo para o qual o sangue é mais barato que água; que se deleita em matança e repugnante tortura, e tais visões às quais ela presenciou arruinariam os olhos e murchariam a carne de homens fortes. Ela tem visto as vítimas de Nakura morrerem entre horríveis tormentos, e a visão é gravada a fogo para sempre no cérebro do espectador. Os ritos dos atlantes foram tomados pelos selvagens, para honrarem seus próprios deuses toscos e, embora a essência daqueles ritos esteja perdida nos anos de desperdício, embora os lacaios de Nakari os realizem, eles não são inabaláveis, como os homens imaginam.

Kane estava pensando: “Um belo dia para o mundo, quando esta Atlântida afundou, pois é quase certo que ela gerou uma raça de estranha e desconhecida maldade”. Em voz alta, ele disse:

- Quem é este Mestre, do qual Nakari falou, e o que ela quis dizer ao chamar Mara de noiva dele?

- Nakura... Nakura. A caveira do mal, o símbolo de Morte que eles cultuam. O que sabem estes selvagens sobre os deuses da Atlântida cercada pelo mar? O que sabem eles sobre os deuses terríveis e invisíveis aos quais seus senhores cultuavam com ritos majestosos e misteriosos? Eles nada entendem da essência oculta, a divindade invisível que reina no ar e nos elementos; eles precisam cultuar um objeto material, dotado de forma humana. Nakura foi o último grande mago da Negari atlante. Ele era um renegado marrom, que conspirou contra seu próprio povo e ajudou a revolta das feras negras. Eles o seguiram quando vivo, e o deificaram depois de morto. No alto da Torre da Morte, se encontra sua caveira sem carne, e daquela caveira dependem os cérebros de todo o povo de Negari.

“Não, nós da Atlântida cultuávamos a Morte, mas cultuávamos igualmente a Vida. Esta gente cultua apenas a Morte e se autodenomina Filhos da Morte. E a caveira de Nakura tem sido, para eles, durante mil anos, o símbolo do poder deles, a evidência de suas grandezas”.

- Você quer dizer – Kane interrompeu impacientemente estes ribombos – que vão sacrificar a garota ao deus deles?

- Na Lua das Caveiras, ela irá morrer no Altar Negro.

- O que é esta Lua das Caveiras, em nome de Deus? – Kane gritou furioso.

- A lua cheia. A cada lua cheia, à qual chamamos de Lua das Caveiras, uma virgem morre no Altar Negro, diante da Torre da Morte, na qual, séculos atrás, virgens morriam em honra a Golgor, o deus da Atlântida. Agora, da frente da torre que outrora abrigava a glória de Golgor, mira para baixo a caveira do sacerdote renegado, e o povo acredita que seu cérebro ainda vive lá dentro para guiar a estrela da cidade. Pois vejas, estrangeiro, quando a cheia brilha sobre a borda da torre e o canto dos sacerdotes silencia, então a caveira de Nakura troveja uma grande voz, despertada num antigo cântico atlante, e o povo se prostra sobre os rostos diante dela.

“Mas escute: há um caminho secreto, uma escada que sobe para um nicho oculto atrás da caveira, e lá um sacerdote se esconde e canta. Em dias passados, os filhos da Atlântida tinham este ofício, e por todos os direitos dos homens e deuses, este dia deveria ser meu. Pois, embora nós, filhos da Atlântida, cultuássemos nossos deuses antigos em segredo, estes selvagens não tinham nenhum para eles. Para mantermos nosso poder, éramos devotos de seus deuses repugnantes, e cantávamos e sacrificávamos para aquele cuja memória amaldiçoávamos.

“Mas Nakari descobriu o segredo, outrora apenas conhecido pelos sacerdotes atlantes, e agora um de seus Satélites sobe a escada oculta e entoa o estanho e terrível cântico, o qual não passa de tagarelice sem sentido para ele, assim como para aqueles que o ouvem. Eu, e apenas eu, conheço seu significado sombrio e medonho”.

O cérebro de Kane rodopiava, em seus esforços para formular algum plano de ação. Pela primeira vez, durante toda a busca pela garota, ele se sentiu numa parede sem porta. O palácio era um labirinto, um emaranhado, no qual ele não conseguia decidir uma direção. Os corredores pareciam correr sem plano nem propósito; e como ele conseguiria encontrar Marilyn, prisioneira como ela sem dúvida era, num desses milhares de quartos ou celas? Ou teria ela já cruzado a fronteira da vida, ou sucumbido ao brutal desejo de tortura de Nakari?

Ele mal ouvia os delírios e murmúrios do moribundo.

- Estranho, você é realmente um vivo, ou não mais do que um dos fantasmas que têm me assombrado ultimamente, deslizando pela escuridão de minha cela? Não, você é de carne e osso... mas você é um selvagem, assim como a raça de Nakari é de selvagens negros. Eons atrás, quando seus antepassados defendiam suas cavernas contra o tigre e o mamute, com toscas lanças de sílex, os pináculos de ouro do meu povo alcançavam as estrelas. Eles se foram e estão esquecidos, e o mundo é uma desolação de bárbaros. Deixe-me partir também, como um sonho que é esquecido nas névoas das eras...

Kane se ergueu e caminhou pela cela. Seus dedos se fechavam, como garras de aço num cabo de espada, e uma cega onda vermelha de fúria rolou através de seu cérebro. Oh, Deus! Ter seus inimigos diante da lâmina afiada que lhe fora tomada – enfrentar a cidade inteira; um homem contra todos eles...

Kane pressionou as mãos contra as têmporas.

- A lua estava quase cheia, na última vez em que a vi. Mas não sei há quanto tempo foi isso. Não sei por quanto tempo estive neste maldito palácio, nem por quanto tempo fiquei naquele calabouço onde Nakari me lançou. O momento da lua cheia pode já ter passado e... ó Deus misericordioso!... Marilyn pode já estar morta.

- Esta noite é a Lua das Caveiras – murmurou o outro –; ouvi um de meus carcereiros falar dela.

Kane agarrou o ombro do moribundo, com força involuntária:

- Se você odeia Nakari ou ama a humanidade... em nome de Deus, me diga como salvar a criança.

- Amar a humanidade? – o sacerdote riu insanamente – O que um filho da Atlântida e sacerdote do esquecido Golgor tem a ver com amor? O que são os mortais, senão comida para a boca dos deuses? Garotas mais delicadas que a sua Mara morreram gritando sob estas mãos, e meu coração era como ferro para seus gritos. Mas o ódio... – os olhos estranhos arderam com luz medonha – pelo ódio, lhe contarei o que quer saber!

“Vá até a Torre da Morte, ao erguer da lua. Mate o falso sacerdote que se esconde atrás da caveira de Nakura, e então, quando o canto dos adoradores lá embaixo cessar e o matador mascarado ao lado do Altar Negro erguer a adaga sacrificial, fale em voz alta para que o povo possa entender, ordenando-lhes que libertem a vítima e ofereçam, no lugar dela, Nakari, rainha de Negari!

“Quanto ao resto, você depois deve confiar em sua astúcia e bravura, caso se liberte”.

Kane o sacudiu:

- Rápido! Diga-me como alcançar essa torre!

- Volte pela porta por onde você veio. – O homem estava esmorecendo rapidamente, suas palavras declinando em sussurros – Vire à esquerda e avance cem passos. Suba a escadaria pela qual você veio, até chegar ao topo. No corredor onde ela pára, siga direto mais cem passos, e quando você chegar ao que parece ser uma parede sem porta, apalpe até encontrar uma mola se projetando. Pressione-a e entre pela porta que se abrirá. Você logo estará fora do palácio e nos rochedos contra os quais ele é construído, e no único dos corredores secretos conhecido pelo povo de Negari. Vire à sua direita e siga diretamente pela passagem por 500 passos. Lá, você chegará a uma escadaria, a qual sobe até o nicho atrás da caveira. A Torre da Morte está construída dentro do penhasco e se projeta acima dele. Há duas escadarias...

Súbito, a voz se arrastou. Kane se curvou para a frente e sacudiu o homem, e o sacerdote se ergueu subitamente com um grande esforço. Seus olhos ardiam com uma luz selvagem e sobrenatural, e ele lançou os braços acorrentados para os lados.

- O mar! – ele gritou, numa voz intensa – Os pináculos dourados da Atlântida e o sol sobre as profundas águas azuis! Estou chegando!

E, quando Kane se aproximou para deitá-lo novamente, ele despencou para trás, morto.


6) O Despedaçar da Caveira

Kane limpou o suor frio de sua testa pálida, enquanto se apressava pela passagem sombreada. Do lado de fora deste terrível palácio, deveria ser noite. Agora mesmo, a lua cheia – a sombria Lua das Caveiras – deveria estar se erguendo no horizonte. Ele caminhou cem passos e chegou à escadaria que o sacerdote moribundo havia mencionado. Ele a galgou e, adentrando o corredor acima, mediu outros cem passos e se deparou com o que parecia ser uma parede sem porta. Pareceu ter se passado uma era, antes que seus dedos frenéticos achassem um pedaço de metal se projetando. Houve um ranger de dobradiças enferrujadas, quando a porta escondida se abriu e Kane olhou para dentro de um corredor, mais escuro do que aquele no qual estava.

Ele entrou, e quando a porta se fechou atrás dele, virou à direita e tateou seu caminho por 500 passos. Lá, o corredor estava mais claro; a luz se infiltrava de fora, e Kane distinguiu uma escadaria. Ele a subiu por vários degraus, e logo parou, frustrado. Numa espécie de patamar, a escadaria se tornava duas, uma conduzindo à esquerda e a outra para a direita. Kane praguejou. Ele sentiu que não poderia se dar ao luxo de cometer um erro – o tempo era muito precioso –, mas como saber qual delas o levaria até o nicho onde o sacerdote se escondia?

O atlante estava prestes a lhe falar sobre estas escadarias, quando foi atacado pelo delírio que precede a morte, e Kane desejou ardorosamente que ele vivesse apenas alguns momentos a mais.

De qualquer forma, ele não tinha tempo a perder; certo ou errado, deveria arriscar. Ele escolheu a escadaria do lado direito e a subiu rapidamente. Não havia tempo para cautela agora.

Sentiu instantaneamente que a hora do sacrifício estava prestes a chegar. Ele adentrou outra passagem e distinguiu, pela mudança na alvenaria, que estava novamente fora dos penhascos e em alguma construção – presumivelmente a Torre da Morte. Esperava, a qualquer momento, subir outra escadaria; e, subitamente, suas expectativas foram realizadas – mas, ao invés de ir para cima, ela descia. De algum lugar à sua frente, Kane ouviu um murmúrio vago e rítmico, e uma mão fria lhe agarrou o coração. O canto dos adoradores diante... do Altar Negro!

Ele correu temerariamente para diante, deu uma volta no corredor, deparou-se com uma porta e olhou através de uma pequena abertura. Seu coração afundou. Ele escolhera a escadaria errada e havia perambulado por dentro de alguma outra construção, adjacente à Torre da Morte.

Ele olhava para baixo, em direção a uma cena sombria e terrível. Num largo espaço aberto, diante de uma grande torre negra cujo pináculo se erguia acima dos penhascos atrás dela, duas longas fileiras de dançarinos selvagens oscilavam e se contorciam. Suas vozes se erguiam num estranho cântico sem significado, e eles não saíam de seus lugares.

De seus joelhos para cima, seus corpos oscilavam em fantásticos movimentos rítmicos; e, em suas mãos, tochas se sacudiam e rodopiavam, espalhando uma sinistra e móvel luz vermelha sobre o cenário. Atrás deles, se enfileirava uma vasta multidão, a qual se mantinha silenciosa.

A luz dançante das tochas brilhava num mar de olhos brilhantes e rostos ansiosos. Diante dos dançarinos, se erguia a Torre da Morte – gigantescamente alta, negra e aterradora. Nenhuma porta ou janela se abria em sua superfície, mas no alto, numa espécie de estrutura ornamentada, mirava um símbolo medonho de morte e decadência. A caveira de Nakura! Um brilho fraco e lúgubre a cercava, iluminada, de alguma forma, de dentro da torre, Kane sabia, e se perguntava: através de qual arte mística, os sacerdotes haviam preservado a caveira da decadência e dissolução por tanto tempo?

Mas não foi nem a caveira, nem a torre, que atraiu e prendeu o olhar aterrorizado do puritano. Entre as linhas convergentes de adoradores que gritavam e oscilavam, erguia-se um grande altar negro. Neste altar, jazia uma forma esguia e branca.

- Marylin! – a palavra irrompeu dos lábios de Kane, num grande soluço.

Por um momento, ele ficou congelado, indefeso e confuso. Não havia tempo agora para voltar pelo mesmo caminho, e encontrar o nicho onde a caveira do sacerdote se escondia.

Agora mesmo, um brilho fraco aparecia atrás do pináculo da torre, destacando esse pináculo obscuramente contra o céu. A lua havia se erguido. O canto dos sacerdotes se ergueu até um som de frenesi e, dos silenciosos observadores atrás deles, começou um sinistro e baixo ribombar de tambores. Para a mente atordoada de Kane, parecia que ele descia o olhar para alguma orgia vermelha de um Inferno mais baixo.

Que horrível culto de eons passados estes ritos pervertidos e degenerados simbolizavam? Kane sabia que esta gente imitava os rituais de seus amos anteriores em sua forma tosca; e, mesmo em seu desespero, ele achou tempo para estremecer diante do pensamento de como aqueles ritos originais deveriam ser.

Agora, uma forma medonha se erguia ao lado do altar onde jazia a garota silenciosa. Uma figura alta e totalmente nua, exceto por uma horrenda máscara pintada no rosto e um grande cocar de plumas ondulantes. O zumbido do cântico ficou baixo por um instante, e logo se ergueu novamente até alturas desvairadas. Foram as vibrações de sua canção que fizeram o chão vibrar sob os pés de Kane?

Kane, com os dedos trêmulos, começou a destrancar a porta. Nada mais podia ser feito agora, exceto correr desarmado para fora e morrer ao lado da garota que não pôde salvar. Então, sua visão foi bloqueada por uma forma gigante, que abriu caminho com o ombro diante da porta. Um homem enorme – um chefe, a julgar pelo seu porte e traje – se recostou ociosamente contra a parede, enquanto assistia aos procedimentos. O coração de Kane deu um grande pulo. Isto era bom demais para ser verdade! Enfiada no cinto do chefe, estava a pistola que ele próprio havia carregado! Ele sabia que suas armas devem ter sido divididas entre seus captores. A pistola nada significava para o chefe tribal, mas ele deve tê-la pegado por causa de sua estranha forma, e a carregava como os selvagens fazem com bugigangas sem uso. Ou talvez ele pensasse que ela fosse uma espécie de porrete de guerra. De qualquer forma, lá estava ela. E, mais uma vez, o chão e a construção pareceram tremer.

Kane puxou a porta silenciosamente para dentro, e se agachou nas sombras atrás de sua vítima, como um grande tigre pensativo.

Seu cérebro trabalhou rapidamente, e formulou seu plano de ação. Havia uma adaga no cinto ao lado da pistola. As costas do chefe estavam viradas diretamente para ele, e ele deveria atacar da esquerda, para alcançar o coração e silenciá-lo rapidamente. Tudo isso passou pelo cérebro de Solomon num clarão, enquanto se agachava.

O chefe não sabia da presença de seu inimigo, até a magra mão direita de Kane lhe disparar através do ombro e apertar a boca, puxando-o para trás. No mesmo instante, a mão esquerda do puritano arrancou a adaga do cinto e, num mergulho desesperado, afundou a lâmina afiada.

O guerreiro caiu silenciosamente e, num instante, a pistola de Kane estava na mão de seu dono. Uma segunda investigação mostrou que ela ainda estava carregada e com a pederneira ainda no lugar. Ninguém tinha visto o rápido assassinato. Aqueles poucos que estavam próximos à portada, estavam todos encarando o Altar Negro, envolvidos no drama, o qual ainda iria se desenrolar. Enquanto Kane pulava o cadáver, o cântico dos dançarinos cessou abruptamente. No instante de silêncio que se seguiu, Kane ouviu, acima do latejar do próprio pulso, o vento da noite sussurrar nas plumas, semelhantes à morte, do horror mascarado ao lado do altar. Uma aba da lua brilhava acima do pináculo. Então, lá do alto, na superfície da Torre da Morte, uma voz profunda ribombou num estranho cântico. Talvez o sacerdote, que falava atrás da caveira, não soubesse o que suas palavras significavam, mas Kane acreditava que ele pelo menos imitava a própria entoação dos há muito mortos acólitos atlantes. Profunda, mística e ressonante, a voz soava como o fluir incessante de longas marés nos largos galhos brancos.

O mascarado ao lado do altar se estirou em toda a sua grande altura, e ergueu uma longa lâmina reluzente. Kane reconheceu sua própria espada, mesmo enquanto apontava sua pistola e atirava – não no sacerdote mascarado, mas bem na caveira que brilhava na superfície da torre. Pois, num clarão cegante de intuição, ele se lembrou das palavras do atlante moribundo: “Os cérebros deles dependem da caveira de Nakura!”.

Simultaneamente com o disparar da pistola, veio um estrondo de abalar os nervos; a caveira seca se partiu em mil pedaços e desapareceu, e atrás dela, o cântico se quebrou subitamente num guincho de morte. A longa espada estreita caiu da mão do sacerdote mascarado, e muitos dos dançarinos caíram ao chão enquanto os outros paravam de repente, enfeitiçados. Através do silêncio mortal que reinou por um instante, Kane correu em direção ao altar; logo, todo o Inferno se libertou.

Um tumulto de gritos bestiais se ergueu até as estrelas trêmulas. Durante séculos, apenas a fé no falecido Nakura havia mantido juntos os cérebros manchados de sangue dos negaris selvagens. Agora, o símbolo deles havia desaparecido, fora desfeito em nada diante de seus olhos. Para eles, era como se seus céus tivessem se partido, a lua caído e o mundo terminado. Todas as visões vermelhas, que se escondiam na parte de trás de seus cérebros corroídos, despertaram em vida terrível; toda a insanidade latente, que era a herança deles, se ergueu para reclamar sua posse, e Kane presenciou uma nação inteira se transformar em loucos que berravam.

Gritando e rugindo, eles se voltaram uns para os outros – homens e mulheres –, rasgando com unhas desvairadas, cortando com lanças e adagas, e batendo uns nos outros com as tochas flamejantes, enquanto, acima de tudo, se erguia o rugido de desvairadas feras humanas.

Usando a pistola como porrete, Kane abria seu caminho através do oceano de carne, que rolava e se contorcia, até o pé das escadas do altar. Unhas o procuravam, facas o arranhavam, tochas lhe chamuscavam as roupas, mas ele não prestava atenção.

Então, enquanto ele alcançava o altar, uma figura terrível irrompeu da massa que se debatia, e o atacou. Nakari, rainha de Negari, enlouquecida como qualquer um de seus súditos, correu em direção ao inglês, com a adaga desembainhada e os olhos horrivelmente flamejantes.

- Você não vai escapar desta vez! – ela gritava; mas, antes que o alcançasse, um grande guerreiro, pingando sangue e cego devido a um corte nos olhos, cambaleou no caminho dela e em direção a ela. Ela gritou como um gato ferido e enfiou a adaga nele, e então, as mãos tateantes se fecharam nela. O gigante cego a girou no alto com um esforço moribundo, e o último grito dela apunhalou o estrépito da batalha quando Nakari, rainha de Negari, se espatifou contra as pedras do altar e caiu, despedaçada e morta, aos pés de Kane. Kane subiu aos pulos os degraus negros, desgastados pelos pés de milhares de sacerdotes e vítimas, e quando ele chegou, a figura mascarada, que ficara como que petrificada, voltou subitamente à vida. Ele se curvou rapidamente, pegou a espada à qual deixara cair e estocou selvagemente em direção ao inglês que atacava. Mas a rapidez dinâmica de Solomon Kane era tal, que poucos homens conseguiam igualar. Com uma contorção e inclinação de seu corpo de aço, ele estava dentro da estocada e, enquanto a lâmina deslizou inofensiva entre o braço e o peito, ele desceu o cano da pesada pistola entre as plumas ondulantes, destruindo cocar, máscara e crânio num só golpe. Então, antes que se voltasse para a garota desfalecida que jazia amarrada sobre o altar, ele lançou a pistola destroçada para o lado e agarrou avidamente sua espada roubada da mão insensível que ainda a agarrava, sentindo uma feroz vibração de confiança renovada diante da sensação familiar do cabo. Marylin jazia pálida e silenciosa, seu rosto cadavérico voltado cegamente para a luz da lua, qual brilhava calma sobre o cenário desesperado. A princípio, Kane pensou que ela estivesse morta, mas seus dedos investigadores detectaram um fraco palpitar de pulsação. Ele cortou-lhe as amarras e ergueu-a delicadamente... só para deixá-la cair de novo e girar rapidamente, quando uma horrenda e ensangüentada figura de insanidade veio pulando e grulhando pelos degraus acima. A criatura correu bem em direção à lâmina apontada de Kane, e desabou para trás, em direção ao turbilhão vermelho lá embaixo, agarrando seu ferimento mortal como um animal. Então, sob os pés de Kane, o altar tremeu; um súbito tremor o lançou de joelhos, e seus olhos horrorizados viram a Torre da Morte balançar de um lado a outro. Algum horror da Natureza estava acontecendo, e este fato apunhalou os cérebros em decadência dos demônios que lutavam e gritavam lá embaixo. Um novo elemento se adicionou aos seus gritos agudos, e então a Torre da Morte balançou com uma terrível e aterradora majestade, se desprendeu dos penhascos balouçantes e cedeu com um trovejar de mundos a se despedaçarem. Grandes pedras e pedaços de alvenaria caíram como chuva, trazendo morte e destruição para milhares de humanos que gritavam lá embaixo. Uma destas pedras se espatifou em pedaços sobre o altar ao lado de Kane, borrifando-o com poeira.

- Terremoto! – ele arfou; e, tomado por este novo terror, ele ergueu a garota inconsciente e saltou temerariamente para baixo, em direção aos degraus que se quebravam, cortando e apunhalando seu caminho através dos redemoinhos escarlates de humanidade bestial que ainda rasgavam e rapinavam. O resto era um pesadelo vermelho, do qual o cérebro atordoado de Kane se recusava a lembrar de todos os horrores. Parecia que, durante estridentes séculos escarlates, ele cambaleava através de estreitas ruas sinuosas, onde berrantes demônios a guincharem lutavam e morriam, entre paredes titânicas e colunas negras que tremiam contra o céu e se espatifavam para quebrarem ao seu redor, enquanto a terra se erguia e tremia sob seus pés vacilantes, e o trovejar de torres se despedaçando preenchia o mundo.

Demônios grulhantes em forma humana tentavam agarrá-lo, para morrerem diante de sua espada, e pedras cadentes o machucavam e golpeavam repetidamente. Ele se agachava ao cambalear pelo caminho, cobrindo a garota com o próprio corpo o melhor que podia, protegendo-a tanto de pedra cega quanto de humanos ainda mais cegos.

Finalmente, quando a resistência mortal havia alcançado seu limite, ele viu a grande e negra muralha externa da cidade avultar à sua frente, arrancada da terra – o parapeito caído e a muralha a ponto de desabar. Ele se lançou através de uma fenda e, usando toda a sua força, fez uma última corrida. Ele mal estava fora de alcance, quando o muro desabou, caindo para dentro como uma grande onda negra.

O vento da noite estava em seu rosto e, atrás de si, erguia-se o clamor da cidade condenada, enquanto Kane cambaleava pela trilha da colina, que tremia sob seus pés.


7) A Fé de Solomon

A aurora jazia como uma refrescante mão branca sobre a testa de Solomon Kane. Os pesadelos lhe desapareceram da alma, enquanto ele inspirava profundamente o vento da manhã, o qual soprava desde a selva lá embaixo de seus pés – um vento carregado com o almíscar de vegetação deteriorada. Mas era como o hálito de vida para ele, pois os cheiros eram os da limpa desintegração natural de coisas do campo, e não a aura repugnante de antiguidade decadente que se esconde nas paredes de cidades com eons de idade... Kane estremeceu involuntariamente.

Ele se curvou sobre a garota adormecida que jazia aos seus pés, arrumada o mais confortavelmente possível com os poucos galhos macios de árvore, que ele havia conseguido encontrar para fazer a cama dela. Agora, ela abria os olhos e olhava a esmo ao redor, por um instante; então, quando seu olhar encontrou o rosto de Kane, iluminado por um de seus raros sorrisos, ela soltou um pequeno soluço de gratidão e se agarrou a ele.

- Oh, Capitão Kane! Será que escapamos realmente daquela cidade medonha? Agora, tudo parece um sonho... após você cair pela porta secreta, em meu quarto, Nakari se dirigiu mais tarde ao seu calabouço, como ela havia me dito... e retornou em péssimo humor. Ela disse que você era um idiota, pois ela lhe oferecera o reino do mundo, e você só fez insultá-la. Ela gritou, delirou e praguejou como uma insana, e jurou que ainda iria, sozinha, construir um grande império de Negari.

“Então, ela se voltou para mim e me injuriou, dizendo que você me tinha – uma escrava – em maior estima do que uma rainha e toda a sua glória. E, apesar de minhas súplicas, ela me arrastou de joelhos e me chicoteou até eu desmaiar.

“Depois, jazi meio sem sentidos por um longo tempo, e só estava vagamente consciente de que homens foram até Nakari e disseram que você havia escapado. Disseram que você era um feiticeiro, pois havia desaparecido através de uma parede sólida, como um fantasma. Mas Nakari matou os homens que haviam lhe trazido da cela e, durante horas, ela parecia uma besta selvagem.

“Quanto tempo jazi desde então, eu não sei. Naquelas terríveis salas e corredores, onde a luz natural do sol não entrava, alguém perde qualquer sinal de tempo. Mas, entre a hora em que você foi capturado por Nakari e a hora em que eu fui posta no altar, pelo menos um dia, uma noite e outro dia devem ter passado. Faltavam apenas poucas horas para o sacrifício, quando chegou a notícia de que você havia escapado.

“Nakari e suas Donzelas das Estrelas vieram me preparar para o rito”. Diante da lembrança desnudada daquela medonha provação, ela chorou e escondeu o rosto nas mãos. “Eu devo ter sido drogada. Só sei que me vestiram com o robe branco do sacrifício e me carregaram para dentro de uma grande câmara negra, preenchida com estátuas horrendas.

“Eu fiquei lá por um tempo, como alguém em transe, enquanto as mulheres realizavam vários ritos estranhos e vergonhosos, de acordo com sua religião sombria. Então, caí sem sentidos e, quando acordei, jazia sobre o Altar Negro – as tochas se agitavam e os devotos cantavam; atrás da Torre da Morte, a lua ascendente estava começando a brilhar – tudo isto eu sabia vagamente, como num sonho profundo. E, como num sonho, vi a caveira brilhante lá no alto da torre – e o sacerdote magro e nu, segurando uma espada acima de meu coração; depois, não me lembro de mais nada. O que aconteceu?”.

- Por volta daquele momento – Kane respondeu –, saí de uma construção, dentro da qual havia perambulado por engano, e despedacei a caveira infernal deles com uma bala de pistola. Depois disso, toda essa gente, amaldiçoada por demônios desde o nascimento e estando igualmente possuída por demônios, começou a matar umas às outras; no meio do tumulto, aconteceu um terremoto, que sacudiu e derrubou os muros. Então, eu lhe peguei e, correndo ao acaso, saltei uma fenda na muralha externa e assim escapei, carregando você, que parecia desmaiada.

“Somente agora você acordou, após eu ter cruzado a Ponte-Através-do-Céu, como o povo de Negari a chamava, a qual estava desmoronando sob nossos pés devido ao terremoto. Depois, cheguei até estes penhascos, mas não ousei descê-los na escuridão, a lua estando perto de se pôr naquela hora; você acordou, gritou e se agarrou a mim, eu logo lhe acalmei o melhor que pude e, após um tempo, você caiu num sono natural”.

- E agora, o quê...? – perguntou a garota.

- Inglaterra! – os olhos intensos de Solomon se iluminaram com a palavra – Acho difícil permanecer em minha terra natal por mais de um mês; embora eu esteja amaldiçoado pelo desejo de perambular, este é um nome que sempre desperta uma paixão em meu peito. E quanto a você, criança?

- Oh, céus! – ela gritou, entrelaçando suas pequenas mãos – Meu lar! Algo com que nunca sonhei... e que eu temia nunca alcançar. Oh, Capitão Kane, como vamos atravessar todas as vastas léguas de selva que ficam entre este lugar e a costa?

- Marylin – ele disse gentilmente, afagando-lhe o cabelo cacheado –, parece-me que lhe falta um pouco de fé, tanto na Providência quanto em mim. Não, eu sozinho sou uma criatura fraca, sem força nem poder; mas, em tempos passados, Deus fez de mim um grande navio de ira e uma espada de libertação. E, eu acredito, o fará novamente.

“Veja, pequena Marylin: nas últimas poucas horas passadas, vimos o fim de uma raça maligna e a queda de um império repugnante. Homens morreram às centenas ao nosso redor, e a terra se ergueu sob nossos pés, derrubando torres que arranhavam os céus; sim, a morte caiu ao nosso redor numa chuva vermelha, mas escapamos ilesos.

“Há nisso... mais do que a mão do homem! Não, um Poder... o Poder maior! Aquele que me guiou através do mundo, direto a esta cidade do demônio... que me guiou até seu quarto... que me ajudou a escapar novamente e me guiou ao único homem, em toda a cidade, que me daria a informação que devo ter – o estranho e maligno sacerdote de uma raça antiga, o qual jazia moribundo numa cela subterrânea –; e que me guiou para o muro externo, enquanto eu corria cegamente e ao acaso... pois se eu tivesse vindo sob os penhascos que formavam o resto do muro, certamente teríamos morrido. O mesmo Poder nos trouxe a salvo para fora da cidade moribunda, e a salvo pela ponte que tremia – a qual se despedaçava, partia e caía para dentro do precipício, no exato momento em que meus pés tocavam a terra firme!

“Você acha que, tendo me guiado por esta distância e realizado tais maravilhas, o Poder irá nos derrubar agora? Não! O mal floresce e governa nas cidades dos homens, e nos lugares desolados do mundo, mas logo o grande gigante, que é Deus, se ergue e castiga em favor dos justos, e eles continuam fiéis a Ele.

“Eu digo isto: desceremos este penhasco em segurança, atravessaremos aquela selva úmida também em segurança e, na velha Devon, seu povo lhe abraçará novamente no peito, tão certo quanto você está aqui”. E agora, pela primeira vez, Marylin sorria, com a rápida ânsia de uma garota normal, e Kane suspirava aliviado. Os fantasmas já lhe desapareciam dos olhos assombrados, e Kane esperava pelo dia em que suas horríveis experiências seriam como um sonho obscurecido. Ele lançou um olhar atrás de si, onde, além das colinas carrancudas, a cidade de Negari jazia despedaçada e silenciosa, entre as ruínas de suas próprias muralhas e os penhascos caídos que a mantiveram invencível por tanto tempo, mas que finalmente traíram-na para sua condenação.

Uma angústia momentânea o atacou, quando ele pensou nas milhares de formas, esmagadas e inertes, que jaziam entre aquelas ruínas; logo, a lembrança explosiva de seus crimes malignos rolou sobre ele, e seus olhos endureceram:

- E assim será, que aquele que escapar do grito do medo cairá no fosso; e aquele que saiu da névoa da fossa será preso na armadilha; pois as janelas no alto estão abertas, e as fundações da terra realmente tremem.

“Pois Tu fizeste de uma cidade uma pilha; de uma cidade defendida, uma ruína; um palácio de estranhos já não é mais cidade; ela jamais será construída.

“Além disso, a multidão será para Ti como pó, e a multidão dos terríveis será como pequena palha, que subitamente se foi; sim, será num instante súbito.

“Parem e se assombrem; chorem e gritem; eles estão bêbados, mas não de vinho; eles cambaleiam, mas não com bebida forte.

“Na verdade, Marylin”, disse Kane, com um suspiro, “eu vi, com meus próprios olhos, as profecias de Isaías acontecerem. Estavam bêbados, mas não de vinho. Não, o sangue era a bebida deles, e naquela inundação vermelha, eles mergulharam profunda e terrivelmente”.

Então, pegando a garota pela mão, ele se dirigiu para a beirada do penhasco. Neste mesmo ponto, ele havia subido na noite – há quanto tempo isso parecia ter acontecido!

As roupas de Kane pendiam em frangalhos ao seu redor. Ele estava rasgado, arranhado e machucado. Mas, em seus olhos, brilhava a clara luz calma da serenidade, enquanto o sol nascia, inundando penhascos e selva com uma luz dourada, que era como uma promessa de contentamento e alegria.



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(*) – Espécie de astrônoma tribal amadora (Nota do Tradutor).



Tradução: Fernando Neeser de Aragão.

Digitação: Edilene Brito da Cruz e Fernando Neeser de Aragão.

Fontes: http://www.amazon.com/Savage-Tales-Solomon-Kane/dp/0345461509#reader_0345461509 e http://gutenberg.net.au/ebooks06/0600841h.html
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